Em um cenário global marcado por tensões comerciais, ameaças de sanções econômicas e reconfiguração das cadeias produtivas, a advocacia enfrenta um desafio inédito que combina geopolítica, tecnologia e pressão regulatória.
Políticas ambientais como instrumento de barganha internacional, a expansão das práticas de compliance e a transformação digital conferem ao Direito um papel estratégico na governança global.
Para analisar esses impactos e indicar caminhos para uma advocacia preparada para as novas exigências, este site entrevistou Marcus Vinicius Furtado Coêlho, ex-presidente nacional da OAB, atual presidente da Comissão de Estudos Constitucionais do Conselho Federal, presidente do Comitê Executivo para Implementação do Legal G20 e Coordenador da Comissão Especial Executiva do BRICS Legal Forum.
Referência em Direito Constitucional e Empresarial, Furtado Coêlho comenta os riscos, tendências e oportunidades que moldarão a prática jurídica brasileira no cenário internacional.

Furtado Coêlho comanda a Comissão de Estudos Constitucionais do Conselho Federal da OAB
Veja os principais trechos da entrevista:
ConJur — Como os escritórios de advocacia devem se preparar para o cenário internacional que se anuncia com as ameaças de sanções do presidente dos Estados Unidos?
Marcus Vinicius Furtado Coêlho — O cenário geopolítico contemporâneo, marcado pelo fortalecimento da China, pela ascensão dos BRICS, pela utilização estratégica da pauta ambiental e pela reconfiguração das estruturas comerciais globais, exige dos escritórios de advocacia preparação abrangente e alinhada às dinâmicas internacionais.
Essa preparação deve concentrar-se em três eixos prioritários: Tributário e Aduaneiro, diante do aumento de tarifas, da adoção de mecanismos como a taxação de carbono e da necessidade de um planejamento tributário internacional sólido; arbitragem e mecanismos internacionais de resolução de conflitos, considerando a intensificação de litígios decorrentes das mudanças no comércio global; e Direito Digital e proteção de dados, à luz do rigor normativo imposto por legislações como a GDPR (Regulamento Europeu de Proteção de Dados) e a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados), bem como da crescente integração tecnológica entre blocos econômicos. O avanço da inteligência artificial e a utilização de contratos inteligentes ampliam os desafios de governança de dados, impondo soluções jurídicas inovadoras em compliance digital e gestão de riscos tecnológicos.
Paralelamente, é imperativo diversificar áreas de atuação, ampliar a capacidade analítica e estruturar equipes multidisciplinares aptas a mapear riscos regulatórios e geopolíticos, antecipar cenários críticos e identificar oportunidades estratégicas.
ConJur — Que áreas se recomenda reforçar?
Marcus Vinicius — Além dos três eixos prioritários — Tributário e Aduaneiro, Arbitragem Internacional e Direito Digital —, é igualmente essencial fortalecer o Direito Societário e os Contratos Internacionais.
A reorganização das cadeias produtivas globais tende a intensificar a constituição de joint ventures (associações entre empresas, nacionais ou estrangeiras, que compartilham recursos, riscos e lucros para executar projetos comuns), fusões e demais operações societárias transnacionais, sobretudo envolvendo players oriundos da Ásia e do Sul Global.
Para acompanhar esse movimento, é indispensável contar com profissionais experientes em compliance contratual internacional e na execução de operações transfronteiriças, com domínio de legislações estrangeiras, especialmente a chinesa e a russa.
Outro vetor estratégico é o Direito Comercial Internacional e Aduaneiro, considerando barreiras tarifárias, regimes especiais de importação e exportação e litígios do comércio exterior. Esse cenário exige advogados com conhecimento de mecanismos como o drawback — regime que permite a restituição, isenção ou suspensão de tributos sobre insumos importados destinados à produção de bens exportáveis — e o Recof (Regime Aduaneiro Especial de Entreposto Industrial sob Controle Informatizado), que autoriza a importação ou aquisição no mercado interno com suspensão de tributos para posterior exportação, mediante controle informatizado. A atuação em contencioso administrativo-aduaneiro também se torna essencial.
Por fim, a consolidação de competências em arbitragem internacional assume caráter inadiável, assim como a aptidão para acionar organismos multilaterais, como a Organização Mundial do Comércio (OMC), e para avaliar a viabilidade de litígios perante cortes estrangeiras, considerando os custos, oportunidades e riscos envolvidos.
ConJur — As políticas ESG ainda são relevantes?
Marcus Vinicius — Sem dúvida. O Direito Ambiental e as práticas de compliance ESG (Environmental, Social and Governance) mantêm papel central, especialmente diante da crescente pressão internacional por responsabilidade climática, pressão esta que, não raro, é instrumentalizada como elemento de barganha geopolítica.
Nesse contexto, os escritórios devem dispor de especialistas em taxonomia verde — classificação que define quais atividades econômicas são ambientalmente sustentáveis — e em due diligence ambiental, destinada a avaliar passivos e riscos socioambientais em operações empresariais.
A agenda ESG está diretamente vinculada ao compliance regulatório global, exigindo das empresas conformidade com normas internacionais, como as diretrizes da União Europeia, tratados multilaterais e padrões de disclosure financeiro[1].
Tais competências são indispensáveis para empresas que exportam ou atuam em mercados sujeitos a exigências rigorosas, como União Europeia e países asiáticos.
ConJur — A solvência das empresas afetadas é um risco real?
Marcus Vinicius — Mais que nunca. Embora não constitua, à primeira vista, o eixo central de preocupação, o reforço na área de Recuperação Judicial e Reestruturação Empresarial revela-se recomendável, sobretudo de forma preventiva. A volatilidade econômica e a possível elevação dos custos de insumos podem comprometer a saúde financeira de companhias altamente alavancadas ou com margens reduzidas.
É prudente dispor de equipes especializadas em renegociação e reestruturação de passivos, com sensibilidade financeira e capacidade de gestão de crises.
No plano trabalhista, ganha relevância a assessoria para mobilidade internacional e adaptação de modelos contratuais, diante da realocação de plantas industriais para outras jurisdições (reshoring[2] e nearshoring[3]). Essa realidade impõe atenção às normas de trabalho transnacional, à regulamentação de expatriados e à observância rigorosa dos padrões de conformidade internacional.
ConJur — No campo do Direito Internacional, o que se recomenda?
Marcus Vinicius — É crucial acompanhar mercados em ascensão. A China exige atenção especial, pois adota regime normativo rigoroso em áreas como proteção de dados, investimentos e práticas concorrenciais, impactando empresas estrangeiras que pretendem operar no país.
A Rússia, embora estratégica nos setores energético e de segurança cibernética, enfrenta severas sanções internacionais, o que limita sua atratividade. Já o Mercosul preserva relevância em segmentos como agronegócio, infraestrutura e energia, embora sua diversificação comercial seja restrita.
ConJur — É válido considerar recurso à Justiça americana ou órgãos internacionais?
Marcus Vinicius — O recurso à Justiça norte-americana ou a organismos multilaterais não deve ser descartado, mas analisado com pragmatismo. A jurisdição dos Estados Unidos continua sendo estratégica para empresas que detêm ativos relevantes naquele país ou que se veem envolvidas em litígios com corporações norte-americanas, especialmente em matérias sensíveis como propriedade intelectual, contratos internacionais e aplicação de legislações anticorrupção. No entanto, os custos expressivos e a morosidade processual tornam essa via, em regra, pouco viável para empresas brasileiras de médio porte.
Quanto à Organização Mundial do Comércio, ainda que sua estrutura sofra abalos institucionais, permanece como foro jurídico de referência para controvérsias entre Estados. Suas decisões influenciam disputas comerciais domésticas e políticas públicas, mesmo sem acesso direto pelas empresas.
Nesse contexto, os escritórios que buscam se manter competitivos devem investir no fortalecimento de áreas como Direito Societário, Comércio Internacional, ESG, contratos com países emergentes e litígios estratégicos. Isso envolve, além da contratação de especialistas, o desenvolvimento de inteligência jurídica e parcerias internacionais para mapear riscos regulatórios e geopolíticos.
Nesse novo cenário, tecnologia, regulação e geopolítica convergem, exigindo da advocacia não apenas excelência técnica e rigor ético, mas também visão estratégica para oferecer soluções jurídicas inovadoras, capazes de promover segurança jurídica, desenvolvimento sustentável e respeito aos valores fundamentais do Direito em um ecossistema global em constante transformação.
A advocacia que pretende se manter relevante nesse novo ciclo deve incorporar práticas de compliance digital e compreender o impacto regulatório da inteligência artificial, atuando como agente de segurança jurídica em um ambiente global cada vez mais tecnológico.
[1] Termo usado para designar a divulgação obrigatória de informações financeiras e não financeiras relevantes por parte das empresas, de forma transparente, clara e acessível aos investidores, reguladores e demais stakeholders.
[2]É o movimento pelo qual uma empresa traz de volta para o país de origem (onde está sua matriz) atividades produtivas que antes estavam localizadas no exterior.
[3] Realocar operações produtivas para países próximos geograficamente, em vez de mantê-las em regiões muito distantes.
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