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Direito da Insolvência

Sucumbência e IDPJ: a orientação atual do STJ

10 de novembro de 2025, 11h13

O objetivo do texto é trazer considerações sobre o incidente de desconsideração da personalidade jurídica (IDPJ), à luz da teoria maior, nos termos do artigo 50, do Código Civil (que exige desvio de finalidade e confusão patrimonial), com procedimento regulado nos artigos 133 a 137, do Código de Processo Civil, e sobre a orientação recente da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, em relação à condenação ao pagamento de honorários de sucumbência, julgado improcedente o incidente.

O IDPJ é instrumento importante na repressão à fraude e no combate ao mau uso da personalidade jurídica, nas execuções de títulos extrajudiciais, cumprimentos de sentença, como também no âmbito das falências e da recuperação judicial e é cabível em quaisquer fases do processo de conhecimento em geral.

A Lei de Falências e Recuperação de Empresas (Lei nº 11.101/2005), por força da reforma implementada pela Lei nº 14.112/20, vedou em seu artigo 82-A a extensão da falência ou de seus efeitos aos sócios de responsabilidade limitada, permitindo, contudo, a desconsideração da personalidade jurídica.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça [1], até algum tempo, em vários julgados entendia que o IDPJ, por sua natureza de mero incidente processual e por ausência de previsão específica sobre sucumbência, nos artigos 133 a 137 no CPC, não deveria resultar em condenação às verbas de sucumbência, uma vez julgado improcedente ou rejeitado o incidente.

Esse entendimento, porém, foi abandonado, principalmente neste ano de 2025, com a edição de vários precedentes [2] nos quais se decidiu que, se o autor do IDPJ leva alguém a litigar de forma indevida, isso deve implicar em condenação ao pagamento de verbas de sucumbência, com base nos princípios da causalidade e da sucumbência, que inspiram a regra geral do artigo 85, do CPC, no sentido de que a sentença condenará o vencido a pagar honorários ao advogado do vencedor.

O Tribunal da Cidadania passou a considerar o IDPJ uma demanda, por ter partes, causa de pedir e pedido, reformando decisões da instância ordinária, que haviam deixado de impor ônus de sucumbência, em casos de IDPJ rejeitados ou julgados improcedentes.

Quais os reflexos dessa mudança, em especial no contexto da insolvência empresarial?

O administrador judicial, em seu vasto rol de deveres previstos no artigo 22 da Lei nº 11.101/2005, tem um dever fundamental, previsto no inciso III, alínea i, que é o dever de praticar os atos necessários à realização do ativo e ao pagamento dos credores.

Spacca

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Suponhamos que no âmbito de um processo de falência ou recuperação judicial, num cumprimento de sentença ou numa execução de título extrajudicial movidos pela massa falida, o administrador judicial, que a representa em juízo, constate a existência de indícios de que houve abuso da personalidade jurídica por determinado sócio da devedora, à luz do artigo 50 do Código Civil (desvio de finalidade ou confusão patrimonial).

Ele deverá (não se trata de mera faculdade), nesse contexto, no exercício de seu munus público de auxiliar do Poder Judiciário e em nome da coletividade de credores, propor o IDPJ, instrumento que o Ministério Público também tem legitimidade para propor nos termos do art. 133, do Código de Processo Civil.

Trata-se de combater a fraude, o desvio de finalidade, que se dá quando a sociedade empresária, por exemplo, se distancia de sua função social, de seu objeto social, e em lugar de produzir bens, serviços, riquezas, gerar empregos e pagamento de tributos, se converte em instrumento de enriquecimento de seus sócios, em detrimento da coletividade de credores, o que também pode ocorrer por confusão patrimonial, que se dá, por exemplo, com a criação de camadas de estruturas societárias complexas, para as quais os ativos da devedora principal são transferidos por meio de manobras contratuais muitas vezes obscuras e também complexas.

Mas esse trabalho no IDPJ não consiste em somente combater a fraude.

Trata-se também de buscar a tutela jurisdicional, para que voltem a compor a massa falida objetiva determinados ativos que dela foram subtraídos ou desviados, com fraude, e que devem se destinar ao pagamento dos credores (liquidação dos ativos e pagamento dos credores – razão de ser do processo de falência [3]).

A prevalecer o novo entendimento do STJ, a massa falida, que em tese faz jus à gratuidade processual, nos termos do artigo 98, caput, do Código de Processo Civil, e da Súmula 481, do Superior Tribunal de Justiça, pois ainda que disponha de recursos, estes devem se destinar com prioridade ao pagamento dos credores, poderá ser onerada com honorários sucumbenciais expressivos, de até 20% do valor da causa, além das custas e despesas processuais, o que tornará ainda maior o prejuízo da coletividade de credores, já lesados pela falência da empresa com que contrataram ou na qual aportaram bens ou recursos.

Com o novo entendimento do STJ, a cautela para propositura do IDPJ deverá ser bem maior, pelo risco da sucumbência.

Vale lembrar que não se permite a fixação de honorários de forma equitativa em causas de valor muito elevado, nos termos do Tema 1.076, do STJ. Nesse sentido, recente decisão do egrégio TJ-SP:

“Direito Processual Civil. Agravo Interno em Recurso Especial. Honorários advocatícios sucumbenciais. Necessidade de observância à regra geral do art. 85, §§2º e 3º, do CPC ou da sua fixação por equidade nas situações previstas no art. 85, §8º, do CPC. Decisão em consonância com o tema 1076 do E. STJ. Desprovimento. I. Caso em exame 1. Agravo Interno contra decisão que negou seguimento a Recurso Especial, que versa sobre as regras aplicáveis no arbitramento de honorários advocatícios sucumbenciais. II. Questão em discussão 2. Aplicação do regime de recursos repetitivos ao caso concreto. III. Razão de decidir 3. Ao julgar o tema 1076, o E. STJ assim decidiu: “i) A fixação dos honorários por apreciação equitativa não é permitida quando os valores da condenação, da causa ou o proveito econômico da demanda forem elevados. É obrigatória nesses casos a observância dos percentuais previstos nos §§ 2º ou 3º do artigo 85 do CPC – a depender da presença da Fazenda Pública na lide -, os quais serão subsequentemente calculados sobre o valor: (a) da condenação; ou (b) do proveito econômico obtido; ou (c) do valor atualizado da causa. ii) Apenas se admite arbitramento de honorários por equidade quando, havendo ou não condenação: (a) o proveito econômico obtido pelo vencedor for inestimável ou irrisório; ou (b) o valor da causa for muito baixo”. 4. Acórdão em consonância com o entendimento firmado sob o regime dos recursos repetitivos, ao arbitrar os honorários sucumbenciais, ante as peculiaridades do caso concreto. 5. Agravo que não trouxe elementos aptos à reforma da decisão. IV. Dispositivo 6. Agravo Interno a que se nega provimento.” (TJ-SP; Agravo Interno Cível 1018879-87.2021.8.26.0071; Relator (a): Heraldo de Oliveira (Pres. Seção de Direito Privado); Órgão Julgador: Câmara Especial de Presidentes; Foro de Bauru – 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 08/11/2025; Data de Registro: 08/11/2025) (negritos apostos).

No dia 3 de novembro de 2025, tivemos a oportunidade de participar do VII Seminário Internacional de Rastreamento de Ativos, organizado pelo Instituto Brasileiro de Rastreamento de Ativos (Ibra), e pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), abordando esse tema.

Ao final do evento, a presidência do Ibra sugeriu a aprovação de Enunciado (redação proposta por Ronaldo Vieira, promotor de Justiça do estado do Mato Grosso do Sul e Secretário-Executivo da Unidade Nacional de Capacitação do CNMP, sendo certo que o Enunciado depende ainda de validação da Presidência do CNMP), nos seguintes termos:

“A condenação em honorários advocatícios no incidente de desconsideração da personalidade jurídica, instaurado no âmbito da falência ou recuperação judicial, somente se justifica quando inexistirem indícios prévios minimamente suficientes da prática de abuso, fraude ou desvio patrimonial, ou quando comprovada a má-fé da parte requerente. Havendo elementos objetivos que sustentem a instauração do incidente, a mera improcedência do pedido não autoriza, por si só, a condenação em sucumbência”.

O enunciado proposto privilegia o credor prejudicado, em detrimento do devedor contumaz, especialmente daquele que se especializa em ocultar ativos, para que esses recursos não sejam alcançados pela coletividade de credores, o que pode resultar na ineficiência do processo de insolvência, que reverbera negativamente no ambiente de negócios.

Diante do risco da sucumbência, o administrador judicial se verá diante de um dilema: será omisso num de seus principais deveres de buscar ativos por meio do IDPJ, se deixar de propor o incidente. Ou, diante de elementos razoáveis que apontem para os requisitos do artigo 50, do Código Civil, ao propor o incidente, poderá prejudicar a massa falida e a coletividade de credores, se o julgamento for pela improcedência, com imposição de ônus sucumbenciais, como tem sinalizado o colendo STJ.

A eficiência [4] do processo é atualmente um verdadeiro princípio, erigido à condição de dever do Magistrado e porque não dizer um dever também dos demais atores do processo, incluído pelo legislador na parte final do artigo 8º, do CPC de 2015.

Por esses motivos, esse importante tema (sucumbência no IDPJ) – à luz das particularidades do caso concreto –, talvez comporte mais reflexão e eventual revisão, à luz do princípio do consequencialismo das decisões, previsto no art. 20, da Lindb, e sem perder de vista a própria eficiência e a resolutividade do processo de insolvência, que não raras vezes, entre outros fatores, dependem do manejo de IDPJs por credores, Administrador Judicial (na falência ou na recuperação judicial e nas ações correlatas) ou pelo Ministério Público, nos casos em que lhe caiba intervir.

 


[1] PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. HONORÁRIOS. INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DE PERSONALIDADE JURÍDICA. DESCABIMENTO. PRECEDENTES DO STJ. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO.

  1. A jurisprudência da Quarta Turma desta Corte Superior mantém o entendimento de que, “em virtude da ausência de previsão legal específica, não é cabível condenação ao pagamento de honorários sucumbenciais em incidente de desconsideração da personalidade jurídica, sendo irrelevante a qual das partes se possa imputar a sucumbência ou a responsabilidade por dar causa à instauração do incidente” (AgInt no AREsp 2.131.090/SP, Relator Ministro MARCO BUZZI, Quarta Turma, julgado em 27/3/2023, DJe de 31/3/2023).
  2. Agravo interno desprovido. (AgInt no REsp n. 2.075.977/PR, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 26/2/2024, DJe de 29/2/2024.) (negritos apostos).

[2] PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO EM AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. HONORÁRIOS DE SUCUMBÊNCIA. CABIMENTO. PRECEDENTE DA CORTE ESPECIAL.

  1. A controvérsia diz respeito à possibilidade de fixação de honorários advocatícios sucumbenciais na hipótese de improcedência do Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica.
  2. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem se consolidado, mais recentemente, no sentido de que o indeferimento do pedido de desconsideração da personalidade jurídica, quando acarreta a exclusão do sócio (ou da empresa) do polo passivo da demanda, enseja a condenação do requerente ao pagamento de honorários advocatícios em favor do patrono da parte indevidamente chamada a juízo.
  3. “O indeferimento do pedido de desconsideração da personalidade jurídica, tendo como resultado a não inclusão do sócio (ou da empresa) no polo passivo da lide, dá ensejo à fixação de verba honorária em favor do advogado de quem foi indevidamente chamado a litigar em juízo”. (REsp nº 2.072.206/SP, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Corte Especial, DJEN de 12/3/2025). Agravo interno provido.

(AgInt no AREsp n. 2.721.657/SP, relator ministro Humberto Martins, 3ª Turma, julgado em 1/9/2025, DJEN de 4/9/2025.)  (negritos apostos).  No mesmo sentido: REsp n. 2.072.206/SP, Ministro Villas Bôas Cueva; AgInt no Ag Int no AREsp 2.562.970/PR, ministro Moura Ribeiro. Há alguns julgados anteriores – importante registrar – que já admitiam sucumbência no IDPJ, como o  REsp 1.925.959/SP, ministro Paulo de Tarso Sanseverino, relator para Acórdão Ministro Villas Bôas Cueva.

[3] Art. 75. A falência, ao promover o afastamento do devedor de suas atividades, visa a:

(…) II – permitir a liquidação célere das empresas inviáveis, com vistas à realocação eficiente de recursos na economia (…)

§2º. A falência é mecanismo de preservação de benefícios econômicos e sociais decorrentes da atividade empresarial, por meio da liquidação imediata do devedor e da rápida realocação útil de ativos na economia.

[4] Uma irradiação, na lei ordinária, do princípio constitucional da eficiência da administração pública, previsto no art. 37, da CF, ao lado dos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade.

CPC, art. 8º.  Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência (negrito aposto).

Fernando Célio de Brito Nogueira

é promotor de Justiça de Falências e Liquidação Extrajudicial em São Paulo.

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