Em 8 de janeiro de 2025, os restos mortais de José Maria de Eça de Queiroz foram finalmente trasladados para o Panteão Nacional, em Lisboa. O ato encerrou um debate que durou décadas, e que, nos últimos anos, chegou até os tribunais portugueses. A controvérsia envolveu familiares divididos, uma decisão do Parlamento, a intervenção do Ministério Público e, por fim, o julgamento unânime do Supremo Tribunal Administrativo de Portugal, que autorizou o traslado. Por trás da solenidade pública, há um fascinante embate entre o direito, a memória e a política. É o tema dos embargos culturais dessa semana.
O caso e o símbolo
Eça de Queiroz nasceu em 1845, morreu em 1900, e é reputado como um dos maiores escritores da língua portuguesa. Em “Os Maias” e “O Crime do Padre Amaro”, expôs a hipocrisia social e o moralismo de fachada com um humor que beirava o sarcasmo. Meus prediletos são “A Relíquia”, “As Cidades e as Serras” e o “Primo Basílio”. Foi também diplomata e cronista do seu tempo; que descreveu Portugal como uma sociedade paralisada pela aparência e pela convenção. Não tenho dúvidas de que estava correto.
Mais de um século após sua morte, a Assembleia da República decidiu conceder-lhe honras de Panteão Nacional, a mais alta homenagem cívica de Portugal. Mas a decisão encontrou resistência de uma minoria dos descendentes — seis bisnetos — que preferiam manter o escritor sepultado em Baião, onde repousava desde 1989. Em Baião há a famosa Casa de Tormes, onde se encontra um museu queirosiano. É o ponto imaginário do retorno do personagem de “As Cidades e as Serras”, que em princípio é o ponto literário que faz um amálgama entre Eça e seu retorno às tradições portuguesas. Há muito simbolismo nessa escolha.
Outros treze familiares, contudo, eram favoráveis à trasladação. Essa divisão levou à intervenção do Supremo Tribunal Administrativo, que, em junho de 2024, fixou um precedente importante sobre a vontade da família, a natureza pública da homenagem e a própria noção de dignidade post mortem.
A decisão judicial
O acórdão, relatado pelo juiz Adriano Cunha, enfrentou uma questão inédita: quem decide o destino dos restos mortais de um cidadão ilustre quando não há vontade expressa do falecido? O tribunal entendeu que, havendo divergência entre familiares, prevalece a vontade da maioria dos descendentes mais próximos, conforme o Decreto-Lei nº 411/98, que regula a remoção e trasladação de cadáveres no direito português.
O Supremo afastou a exigência de unanimidade, que alguns pretendiam derivar do artigo 2091º do Código Civil, relativo à administração da herança, e recordou que as ossadas não integram a herança. O cadáver não é um bem transmissível; mas é passível de tutela moral e administrativa. Por isso, as normas de direito sucessório seriam inaplicáveis ao caso.
O Tribunal também rejeitou a tese de violação dos direitos de personalidade do falecido (artigos 70 e 71 do Código Civil). A homenagem pública não constitui ofensa à dignidade pessoal: é ato político de reconhecimento nacional. A sua legitimidade repousa na decisão soberana do Parlamento, desde que respeitado o princípio da dignidade humana e assegurada a inexistência de oposição substancial dos familiares. A minoria que discorda, disse o acórdão, não pode “reter o corpo” contra a vontade da maioria e do Estado.
O direito à memória
Essa conclusão projeta um tema maior: o direito à memória e ao esquecimento, que começa onde a herança termina. O corpo morto não pertence aos vivos como bem patrimonial, mas permanece sujeito a formas de respeito e proteção. A lei portuguesa, à semelhança de outras tradições europeias, considera o cadáver objeto de um interesse público, cultural, histórico e ético, administrado sob o signo da dignidade humana.

Nesse sentido, a decisão do Tribunal Administrativo de Portugal não é apenas uma interpretação de um decreto funerário: é uma afirmação do que se pode chamar de juridicização da memória. Eça de Queiroz, cuja pena desnudou as ficções morais da sociedade, tornou-se, paradoxalmente, tema de um litígio moral e jurídico sobre a sua própria lembrança.
O que se discutia não era apenas onde repousaria o escritor, mas quem teria o poder de falar em nome da sua memória, a família, o Estado ou a própria literatura. Ao reconhecer que a trasladação é um ato político de consagração nacional, o tribunal estabeleceu que, nesse campo, o interesse coletivo prevalece sobre o interesse familiar restrito. A homenagem pública é expressão da continuidade cultural da nação. Seja.
O símbolo e o gesto
O funeral de 2025, com honras de Estado, foi a última página de um longo romance jurídico. A urna coberta pela bandeira nacional, transportada da Assembleia da República ao Panteão, marcou o reencontro de Portugal com o seu escritor mais corrosivo, e ao mesmo tempo mais criativo. Ali, entre reis, presidentes e poetas, Eça ocupa agora o espaço da permanência, a imortalidade civil que o direito, por meio do Estado, concede aos seus mortos ilustres.
Em certo sentido, trata-se de uma ironia à maneira do próprio Eça. O autor que desmascarou as solenidades e denunciou os rituais de prestígio terminou acolhido no mais solene dos lugares. Mas talvez seja também uma justiça tardia. O Eça que criticou a mediocridade da sociedade portuguesa é o mesmo que agora, por vontade do Parlamento e da maioria de seus descendentes, se transforma em instituição de memória, portuguesa, bem entendido.
Entre a literatura e o direito, a trasladação de Eça de Queiroz revela algo essencial sobre o modo como se administra burocraticamente o passado. O corpo morto é, juridicamente, um bem extrapatrimonial; mas o prestígio de um escritor é patrimônio moral da coletividade. E se o direito pode proteger a reputação dos vivos, também pode, e deve, preservar a dignidade simbólica dos mortos que moldaram a cultura.
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