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SEGUNDA LEITURA

Firma-se a proteção do patrimônio cultural imaterial

16 de novembro de 2025, 08h05

Ouro Preto, 6 a 7 de novembro, 2º Seminário Nacional de Direito do Patrimônio Cultural, promovido por várias entidades altamente representativas, com foco na  Proteção Jurídica do Patrimônio Cultural Inventariado. O enorme auditório foi pequeno para abrigar nada menos do que 500 inscritos, a demonstrar o interesse pela matéria.

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Desde logo salienta-se o título Direito do Patrimônio Cultural, a mostrar que se trata de ramo autônomo do Direito, que lentamente vai se afastando dos que lhe deram origem (Direito Administrativo) e suporte (Direito Ambiental). O subtítulo Direito Patrimonial Inventariado ainda é pouco conhecido dos profissionais do Direito.

Com efeito, a Constituição de 1988 trouxe uma inovação absoluta com a proteção do patrimônio cultural imaterial. Com efeito, o Decreto-lei 38, de 1937, não tinha qualquer previsão a respeito, muito embora Mário de Andrade, seu idealizador, fosse preocupado com a cultura popular, tanto assim que filmou o folclore de populações do norte e nordeste. [1]

Com isto surgiu uma maior preocupação com o resguardo do nosso patrimônio cultural, em que pese o desafio da internacionalização de costumes, cujo exemplo máximo é o crescimento do halloween em nossa sociedade.

Patrimônio cultural imaterial

O artigo 216 da Constituição dispõe que constituem patrimônio cultural brasileiro, além dos bem materiais os imateriais, nos quais se incluem:

I – as formas de expressão;
II – os modos de criar, fazer e viver;
III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

Portanto, como lembra Danilo Fontenele Sampaio Cunha, “nossas língua e danças, canções música, celebrações, nossos artesanatos, literatura, artes plásticas, cinema, televisão, humor, cozinha e o nosso próprio modo de ser e interpretar a vida formam o nosso patrimônio imaterial. [2]

Vejamos alguns exemplos. Na hipóteses dos “modos de criar, fazer e viver”, cita-se a renda de bilro de Florianópolis, feita pelos imigrantes e seus descendentes seguindo tradições oriundas dos Açores. Segundo pesquisa da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), “Enquanto dedicavam-se à pesca os homens, as mulheres dedicavam-se à prática da Renda de Bilro. Durante séculos a renda de Bilro fez parte do complemento do orçamento familiar e também foi utilizada para troca por itens de maior necessidade”. [3]

Inventário de bens imateriais

O inventário, nas palavras de Marcos Paulo de Souza Miranda, “visa a identificação e ao registro dos bens culturais adotando-se, para sua execução, critérios técnicos de natureza histórica, artística, arquitetônica, sociológica, antropológica, dentre outras, possibilitando fornecer suporte primário às ações protetivas de competência do poder público”. [4]

Christiane H. Kalb e  Maria Bernardete R. Flores registram que “O inventário é um ato administrativo de natureza declaratória restritiva, pois importando no reconhecimento, por parte do poder público competente para tanto, dá importância cultural a determinado bem, passando a partir daí a gerar outros efeitos jurídicos objetivando a sua preservação”. [5]

O inventário não chega ao nível de restrição do tombamento, porém cria medidas restritivas, retirando do proprietário o uso e gozo absoluto de seu bem. Uma vez realizado, o inventário possibilita meios mais eficazes de proteção, como influir em políticas públicas ou na abertura de processo de tombamento. E mais, seus dados podem ser utilizados como meio de prova em ação civil pública ou popular.

Diante da importância do reconhecimento constitucional da proteção do patrimônio cultural imaterial, imaginava-se que uma lei viria a regulamentá-la. Todavia o Congresso, certamente perplexo diante daquele tema novo, ou quiçá pelas controvérsias que surgiriam da sua discussão, omitiu-se a respeito.

A proteção do patrimônio imaterial existente

Em 4 de agosto de 2000, o Presidente da República baixou o Decreto nº 3.551, que criou o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro e o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial. [6]

O Decreto, no artigo 1º, § 1º, citado fixa a existência de quatro livros destinados aos registros. São eles:

I – Livro de Registro dos Saberes, onde serão inscritos conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades;
II – Livro de Registro das Celebrações, onde serão inscritos rituais e festas que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social;
III – Livro de Registro das Formas de Expressão, onde serão inscritas manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas;
IV – Livro de Registro dos Lugares, onde serão inscritos mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde se concentram e reproduzem práticas culturais coletivas. [7]

O “Programa Nacional do Patrimônio Imaterial” foi previsto no  artigo 8º que estabelece ser seu objetivo a implementação de política específica de inventário, referenciamento e valorização do dito patrimônio. O PNPI, vinculado ao Iphan, vem estabelecendo parcerias com instituições públicas e privadas ligadas à cultura e pesquisa, bem como fazendo o  “acompanhamento e avaliação de ações de valorização e salvaguarda do patrimônio cultural imaterial”. [8]

Doutrina e jurisprudência

A conscientização sobre o tema vem crescendo constantemente. Prova disto é a publicação de vários livros sobre o tema patrimônio cultural em geral, outros específicos sobre o imaterial. Além dos já citados nesta coluna,  citam-se a “Lei do Tombamento Comentada”, Marcos Paulo de Souza Miranda, Del Rey, “Direito do patrimônio cultural: autonomia e efetividade”, Carlos Magno de Souza Paiva, Juruá , “Patrimônio cultural e meio ambiente”, Inês Virigínia Soares e Talden Farias (coord.), Podium, “A tutela do patrimônio cultural sob o enfoque do Direito Ambiental”, Ana Maria M. Marchesan, Livraria do Advogado e “Dos Delitos Contra o Patrimonio Cultural e o Ordenamento Urbano na Lei dos Crimes Ambientais”, Michael Schneider Flach, Del Rey.

A jurisprudência vem revelando maior preocupação com o assunto. Tema que sempre volta à discussão é o da possibilidade do Judiciário reconhecer um bem como sendo do patrimônio cultural. Bom exemplo disto acha-se em julgado do STJ em caso envolvendo negativa do Iphan em reconhecer o prédio da UFPR (Universidade Federal do Paraná) como de valor histórico e afetivo. O juiz de primeiro grau negou o pedido dizendo que já havia tombamento estadual.

O TRF-4 reformou a sentença determinando ao Iphan que procedesse ao tombamento federal do prédio da UFPR. O STJ manteve o acórdão com base no envolvimento histórico, uma vez que a UFPR, fundada em 1912, foi a primeira do Brasil. [9]

O TJ-SP, julgando caso em que se discutia o asfaltamento do bairro Vila Industrial, em Campinas, manteve liminar que impedia tal iniciativa, a fim de  garantir a proteção histórica de antigos calçamentos feitos com  paralelepípedos, fazendo explícita menção à necessidade de proteger o patrimônio imaterial do município. [10]

Conclusões

A proteção do patrimônio cultural brasileiro, em especial o imaterial, alcançou um estágio de evolução sem retorno e esta realidade reflete-se na edição de livros e na evolução da jurisprudência.

Os bens do patrimônio cultural imaterial já estão protegidos pelo artigo 216 da CF e pelo Decreto 3.551/2000. Mas, para que se resguarde o princípio da segurança jurídica, é importante que uma lei delimite como isto deve ser feito e as consequências do descumprimento. Do contrário corre-se o risco de alegação de ofensa ao devido processo legal (artigo 5º, inciso LIV da CF).

A possibilidade do Poder Judiciário reconhecer o valor de determinado bem cultural imaterial, contrariando posição do órgão do patrimônio histórico e cultural, está em consonância com a atual jurisprudência sobre todos os conflitos submetidos aos Tribunais.

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[1] PREFEITURA DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO.  Mário de Andrade. YouTube, Disponível aqui.

[2] CUNHA, Danilo Fontenele Sampaio. Patrimônio Cultural. Proteção Legal e Constitucional. Rio de Janeiro: Letra Legal, 2004, p. 119.

[3] UFSC. A prática de Renda de Bilro em Florianópolis. Disponível aqui.

[4] SOUZA MIRANDA, Marcos Paulo. Tutela do Patrimônio Cultural Brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 103.

[5] KALB, Christiane Heloisa  e  FLORES, Maria Bernardete Ramos. Tombamento, Inventário e Registro: nuances e efeitos jurídicos aos sistemas de proteção do patrimônio cultural brasileiro. Revista Vianna Sappiens. v. 8, nº 1, jan/jun 2017, p. 16.Disponível aqui.

[6] BRASIL. Decreto nº 3.551, de 4 de agosto de 2000. Disponível aqui.

[7] BRASIL. Decreto nº 3.551, de 4 de agosto de 2000. Disponível aqui.

[8] BRASIL. Govbr. Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI). Disponível aqui.

[9] STJ, RESP nº 1.542.035 – PR, Relator Ministro  Benedito Gonçalves, j. 10 de abril de 2017

[10] TJ-SP,  Agravo de Instrumento nº 2243921-93.2020.8.26.0000, 8ª Câmara de Direito Público, Rel Des. Leonel Costa, j. 17 out. 2020

Vladimir Passos de Freitas

é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, pós-doutor pela FSP/USP, mestre e doutor em Direito pela UFPR, desembargador federal aposentado, ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça, promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

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