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Direito Civil Atual

A Faculdade de Direito do Recife e o processo da Justiça Federal

17 de novembro de 2025, 16h22

Num escorço histórico sobre o processo civil, Maurílio Wagner de Paula Reis descreve — de uma forma excelente, aliás — o cenário a partir da promulgação da Constituição de 1891:

“Não havia mais escravos no Brasil. A declaração de direitos é mais concisa que a de 1824. Nota-se a preocupação de oferecer garantias que tutelassem o exercício e a defesa dos direitos declarados, especialmente em juízo, contra os abusos do poder. Os Estados-Membros passaram a legislar sobre direito processual civil e penal; é adotado o controle jurisdicional da constitucionalidade das leis; é abolido o contencioso administrativo; o habeas corpus ganhou dignidade e ficou instituída a dualidade de justiça (a Federal e a Estadual)” [1].

Ao findar o Império, o estado da arte da legislação processual era constituído pelo Código de Processo Criminal de 1832, no que concerne ao processo penal, e, com relação aos demais processos judiciais, bipartido entre o Regulamento nº 737 e 1850, para as causas comerciais, e a Consolidação Ribas de 1876, quanto às civis [2].

O governo republicano, às proximidades da edição do Decreto nº 848, de 11 de dezembro de 1890, que modelou a organização da Justiça Federal, editou o Decreto nº 763, de 19 de setembro de 1890, determinando a aplicação do Regulamento nº 737 de 1850 às causas cíveis em geral, ressalvados os procedimentos especiais.

Com a promulgação da Constituição de 24 de fevereiro de 1891, delineou-se um novo cenário, figurando à ribalta o quebrantamento do modelo de unidade processual. A estruturação constitucional da Justiça Federal, inclusive e especialmente quanto à sua competência (artigos 59 e 60), implicou necessidade de se repensar a legislação aplicável ao correspondente processo. A edição da Lei nº 221, de 20 de novembro de 1894, não foi o bastante.

Decreto nº 3.084

Decidiu-se pela elaboração de uma consolidação das leis sobre a matéria [3], tarefa incumbida a José Higino Duarte Pereira. Bacharel aos 20 anos de idade em 1867, com a obtenção do capelo doutoral em 1876, ingressou neste ano nos quadros docentes da Faculdade de Direito do Recife, inicialmente, como lente substituto, passando em 1884 à condição de lente proprietário de Direito Administrativo [4]. Integrou o Supremo Tribunal Federal desde 1892 até 1902, ano de seu falecimento.

Sobreveio, então, o Decreto nº 3.084, de 5 de novembro de 1898, integrado por cinco partes, assim distribuídas: 1ª) Organização e funções da Justiça Federal; 2ª) Processo Criminal; 3ª) Processo Civil; 4ª) Processo Comercial; 5ª) Processo nas causas cíveis de ordem pública ou administrativa. Totalizava 1.963 artigos. Para uma melhor compreensão pelo seu aplicador, abaixo de cada preceito, encontra-se, à maneira de rodapé, a referência ao seu diploma de origem. Uma visão dos seus aspectos mais interessantes será a nossa pretensão.

Spacca

Spacca

A inspiração do constituinte de 1891 em favor do modelo da Constituição dos Estados Unidos (artigo III, Seção 1, primeira parte), reduzindo a excessiva minudência da disciplina da matéria constitucional, permitiu uma maior competência em favor da legislação. Por isso, coube à Consolidação delinear os órgãos da Justiça Federal, integrada pelo Supremo Tribunal Federal, Juízes Seccionais, substitutos e suplentes, e Tribunais do Júri. Lastreado em permissivo constitucional (artigo 55), fixou-se em 15 os integrantes do primeiro, cabendo a um deles o cargo de procurador-geral da República (artigo 109º). Na realidade, contém uma embrionária estruturação do Ministério Público Federal (artigos 109 a 139).

O exercício da advocacia perante a Justiça Federal — incluída a capacidade postulatória — foi regulado (artigo 215 a 240), podendo fazê-lo qualquer pessoa graduada em Direito, ou legalmente autorizada a tanto na forma das leis estaduais ou distrital, desde que não incidissem em nenhuma das incompatibilidades enumeradas pelo artigo 217.

Competência da Justiça Federal e os processos penal, civil e comercial

Vê-se uma discriminação das competências do STF (privativa e originária, segunda instância, de revisão e causas das justiças estaduais), dos juízes seccionais e do júri federal. A este se conferiu uma vasta jurisdição (crimes políticos, sedição, resistência, desacato e desobediência à autoridade federal e retirada de presos do poder da justiça federal, crimes funcionais e falsificação de atos de autoridade federal).

Desperta atenção a largueza com a qual se consagrou o princípio favor libertatis, pois o artigo 28 dispunha que, em matéria criminal, “o empate equivale à decisão favorável ao réu”, orientação que retornou ao Código de Processo Penal (artigo 615, §1º) com a Lei nº 14.836/2024.

Revelou-se traço, característico e inovador, o do juiz das leis e dos regulamentos (artigo 266 e 267). Competindo à Justiça Federal a guarda e a aplicação da Constituição e das leis nacionais (rectius, federais), os seus juízes estavam habilitados para examinar a validade das leis e dos regulamentos. Constituía pressuposto para tanto a existência de controvérsia concreta. Assimilava-se o modelo norte-americano quanto ao controle de constitucionalidade, enquanto ao de legalidade, o contencioso administrativo francês e a jurisdição administrativa italiana.

A Parte Segunda, relativa ao processo criminal, iniciou-se com a referência aos direitos fundamentais (juiz natural, as limitações à prisão e direito à defesa plena), evidenciando, estreme de dúvidas, a sua influência destes sobre o legislador e o juiz (artigo 1º a 4º) [5], seguindo-se a regra geral de competência em razão do lugar onde o delito foi praticado (artigo 5º). Há disposições específicas sobre a competência criminal internacional (artigo 6º e 7º).

No plano dos recursos, privilegiando mais uma vez o favor libertatis, adotou-se a voluntariedade (artigo 310), inexistindo remessa necessária, ao contrário do artigo 574 do CPP. Ao emprego do Habeas Corpus, compilou-se restrições (artigo 354), inferindo-se uma delas (desterro durante estado de sítio) do texto constitucional (artigo 80). Nas demais, a justificativa se achava vinculada à natureza e fundamento da restrição à liberdade (prisão disciplinar militar e prisão administrativa). Consagrou-se a sua concessão de ofício (artigo 359). Disciplinou-se a revisão das sentenças pelo STF, elencando-se uma variedade de hipóteses de admissibilidade (artigo 343). Consignou ainda normas materiais sobre a extinção da punibilidade (artigo 408 a 436).

A mais extensa, contendo 844 artigos, foi a Parte Terceira, dedicada ao processo civil. Iniciando-se pela capacidade para ser parte (artigos 1º a 12), há previsão de intervenção de terceiros (nomeação à autoria, assistência e oposição). Destaque-se o cuidado com a competência (artigos 19 a 35), com a adoção do foro do domicílio do réu e a prevalência da competência da Justiça Federal quando se cuidasse de causas conexas. As sentenças eram definitivas ou interlocutórias (artigo 81), conforme julgassem a causa, decidindo a questão principal, ou simplesmente ordenassem o processo ou decidissem seus incidentes.

Aqui se tem uma classificação das ações, as quais eram ordinárias, sumárias e especiais. O elenco destas era extenso e variado (ação decendial, de depósito, possessórias, embargo de obra nova, executiva, despejo, remissão de imóvel hipotecado e ação do credor hipotecário contra o adquirente). Disciplinou-se o processo de execução de sentenças (artigos 470 a 601).

Os recursos cabíveis eram os embargos à sentença, de declaração ou de restituição, a apelação para o STF, nas causas que excedessem a 2 mil réis, cabível das sentenças definitivas ou com força de definitivas (artigo 688), dotada de efeito suspensivo nas ações ordinárias e nos embargos à execução ou de terceiro; o agravo de petição (artigo 714) e a carta testemunhável, no caso do indeferimento do agravo pelo juiz ou quando este obstasse que fosse escrito (artigo 753). Contemplou-se um regramento extenso do compromisso arbitral (artigos 767 a 838).

A ausência de um Código Civil fez com que a Consolidação se ocupasse da prescrição das ações cíveis (artigos 839 a 844), adotando-se, como regra, o prazo de dez anos para as ações reais entre presentes, ou vinte anos, entre ausentes, e, quanto às ações pessoais, a regra geral de 30 anos, além de estatuir prazos específicos.

Já a Parte Quarta se ocupava do processo comercial, abrangendo as causas: a) de direito marítimo e de navegação, no oceano como nos rios e lagos brasileiros; b) de Direito Internacional privado, desde que regidas pelas leis e usos comerciais; c) da competência da Justiça Federal quando uma das partes fosse comerciante ou auxiliar do comércio (artigo 1º).

Aplicando-se as regras gerais da anterior, calha realçar a previsão de múltiplo rol de processos preparatórios, preventivos e assecuratórios (artigos 12 a 53), bem assim de ações sumárias e especiais (artigos 54 a 144), então típicas da matéria comercial, dentre as quais há algumas de importância atual para a Justiça Federal, como é a propriedade industrial (ação de nulidade dos privilégios de invenção e ações referentes a marcas de fábrica).

Internacional e administrativo

À derradeira, mas de relevante importância para a afirmação da Justiça Federal nas questões de Direito Internacional Público e relativas à administração pública, tem-se o processo das causas cíveis de ordem pública ou administrativa. Iniciou-se pelos litígios entre nação estrangeira e a União, ou alguns dos seus Estados, cuja competência originária era do STF, admitindo-se da decisão final apenas embargos de declaração (artigos 1º a 6º). Em seguida, havia o processo de homologação das sentenças estrangeiras, cuja interpretação e efeitos são determinados pela lei do país onde proferida, não sendo admissível nos casos de sentença de falência de comerciante aqui domiciliado, se brasileiro (artigos 7º a 20).

Higino modelou o procedimento da ação de nulidade de atos da administração, tomando por base o artigo 13 da Lei nº 221 de 1894 (ação sumária especial). Cabível contra atos ou decisões de autoridades administrativas da União, tidas por ilegais em virtude da não aplicação ou aplicação indevida do direito vigente, estando o juiz interdito em examinar o merecimento do ato administrativo, sob o prisma de sua oportunidade ou conveniência.

À primeira vista, poder-se-ia cogitar de confusão entre “mérito” e discricionariedade administrativa, impressão que vem a ser desfeita quando se ressalvou a possibilidade do exame desta em casos de incompetência ou pela demonstração de excesso de poder, hipótese inspirada na jurisprudência do Conselho de Estado da França e que é dotada de notável amplitude para a tutela do administrado diante de arbitrariedades do poder público [6]. Julgado procedente o pedido, a Fazenda Nacional (FN) tinha ação de regresso contra o funcionário, para cobrar a importâncias das custas que viesse a suportar (artigo 34).

Nas causas em que a FN for parte, é possível se visualizar a presença de prerrogativas processuais em seu favor. Assim, cabendo a sua representação pelo procurador da República, os prazos para responder, arrazoar ou dar provas eram o triplo dos previstos no processo comum (artigo 37), comportando as suas condenações, quando superiores a dois contos de réis, remessa oficial para STF (artigo 40). Impenhoráveis os bens públicos nacionais, a execução da sentença transitada em julgado comportava o oferecimento de embargos e o pagamento pressupunha a expedição de precatória ao Tesouro (artigo 41). A FN dispunha do benefício da restituição in integrum, na mesma forma dos menores (artigo 45) e do prazo de prescrição de suas dívidas de cinco anos (artigo 175), enquanto que a cultura predominante sobre o interesse público justificava a prescrição para a cobrança da dívida ativa em quarenta anos (artigo 182).

Modelou-se o processo executivo fiscal, juntamente com o da desapropriação por utilidade pública, para construção de estradas de ferro e de águas, tocando a fixação da reparação a árbitros e com a previsão de imissão na posse após a fixação (artigos 98 e 114). Assim, a elaboração da Consolidação, mais uma vez, considerou a supremacia da constituição, ao assegurar ao expropriado reparação prévia (artigo 72, §17).

Mesmo a partir de único aspecto, é possível perceber a densa obra de José Higino, para quem, no dizer de Hermes Lima, “a sua cultura levara já até o seio dos deuses de borla e capelo a notícia das correntes modernas do pensamento que transformavam, de alto a baixo, a visão do direito, a filosofia do mundo jurídico” [7].

 

esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma2, To Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e Ufam).

 


[1] REIS, Maurílio Wagner de Paula. História do processo civil. In: Digesto do processo. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 42.

[2] Encontrando-se as causas civis sob a regência das ordenações, a Lei nº 2.033 de 1871 (art. 29, §14), determinou a sua consolidação, sendo designado para esse fim o Conselheiro Antônio Joaquim Ribas, a qual obteve força de lei com a resolução imperial de 28 de dezembro de 1876.

[3] Código e consolidação não se confundem, afirmou Cirne Lima: “Redação e consolidação destinam-se, apenas, a dar a conhecer as disposições redigidas ou consolidadas (…) Opera-se, pela consolidação, exatamente o oposto do que se alcança, pela redação do direito não-escrito ou pela consolidação do direito. Redação e consolidação mantêm em vida o passado; a codificação elimina-o, de um golpe, regulando de novo, exaustivamente, toda a matéria que se abrange no direito anterior” (LIMA, Ruuy Cirne. Introdução ao estudo do direito administrativo. Porto Alegre Livraria do Globo, 1942, p. 71).

[4] Escreveu “Lições de direito natural” (1883) e “Lições de direito administrativo” (1884), além de ter realizado tradução do “Tratado de direito penal” de Franz List (1899), precedida de denso prefácio.

[5] É de se recordar, com Geraldo Neves, o exemplo de Teixeira de Freitas que, por ocasião da elaboração da Consolidação das Leis Civis, não considerou como válidas, para nesta serem inseridas, as regras que chocassem com a Constituição de 1824 (NEVES, Geraldo. Uma bibliografia comentada de fontes diretas e indiretas para o estudo do Esboço, Apontamentos, Anteprojetos e Código Civil Brasileiro, de 1855 a 2001, Anuário dos Cursos de Pós-Graduação em Direito, nº 11, p. 363, 2000).

[6] O Conselho de Estado vivenciara, com o recours pour excès de pouvoir, o desenvolvimento do controle da incompetência, do defeito de forma, do desvio de poder, da violação das leis e dos direitos adquiridos.

[7] LIMA, Hermes. Tobias Barreto – A época e o homem. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1939, p. 205.

Edilson Pereira Nobre Júnior

é professor titular da Faculdade de Direito do Recife (UFPE — Universidade Federal de Pernambuco). Desembargador presidente do TRF-5 (Tribunal Regional Federal da 5ª Região).

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