Em discussão no Plenário virtual do Supremo Tribunal Federal, o julgamento sobre a constitucionalidade da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 14/2012, da Anvisa, que proíbe o uso da maioria dos ingredientes utilizados — há anos — na fabricação de produtos fumígenos, pode ter impactos negativos na saúde e na segurança pública. É o que analisa o advogado Fernando Neustein, ao chamar atenção para o mercado ilegal de cigarros, que tende a se fortalecer caso a resolução seja validada.

Fernando Neustein diz que Anvisa invadiu competência do Congresso
Neustein, que atua como advogado do Sinditabaco-RS no Agravo em Recurso Extraordinário 1.348.238, explica que a Anvisa invadiu a competência legislativa do Congresso Nacional já que, na prática, editou norma que representa um banimento dos produtos como são fabricados e comercializados historicamente, com autorização da própria Anvisa.
O advogado alerta que essa abrupta mudança — por simples resolução — na forma como os produtos fumígenos são fabricados, vendidos e consumidos no Brasil terá como efeito o aumento do mercado ilegal de cigarros e charutos, fortalecendo diretamente o crime organizado no país.
ConJur — O que está em discussão no STF é a inconstitucionalidade da RDC 14/2012 por eventual extrapolação de competência. Em termos claros, por que o setor defende que a Anvisa não poderia ter editado uma norma com esse teor?
Fernando Neustein — Ao proibir a maioria dos ingredientes usados na fabricação de produtos fumígenos, a Anvisa invadiu a esfera de competência do Poder Legislativo. A agência tem o poder regulatório para fiscalizar, monitorar e estabelecer requisitos sanitários, mas não o de promover uma alteração tão profunda na própria essência de qualquer produto, algo que que demandaria amplo debate no Congresso Nacional dados seus reflexos para toda a sociedade. A RDC 14/2012 se configura como uma verdadeira modificação legislativa disfarçada de regulação sanitária, já que, em vez de estabelecer parâmetros técnicos para orientar o setor, elimina – na prática – a produção legal de quase todos os produtos fumígenos (cigarro, charuto, fumo de corda) ao proibir praticamente 99% dos ingredientes tradicionalmente utilizados. Portanto, trata-se de um banimento disfarçado. E o curioso é que a própria Anvisa sempre autorizou esses produtos.
É importante destacar que não estamos falando apenas de ingredientes que conferem sabor ou aroma aos cigarros, e sim da composição de todos os produtos fumígenos, inclusive de ingredientes que nada têm a ver com essas características, como o açúcar usado para recompor propriedades da folha do tabaco que são perdidas ao longo do processo de produção. Essa abordagem não apenas deixa de cumprir a finalidade de regular, como também estimula o mercado ilegal, historicamente fortalecido por regulações altamente restritivas que estrangulam o setor formal.
ConJur — A indústria alega que resolução pode ter efeito contrário ao pretendido pela Anvisa, que é a proteção da saúde pública. De que forma?
Fernando Neustein — Ninguém questiona a importância da proteção à saúde. É exatamente por isso que precisamos assegurar a implementação de políticas públicas equilibradas, calcadas em leis e resoluções que não asfixiem completamente o mercado legal. Do contrário, o excesso de regulamentação poderá empurrar os consumidores para o mercado ilegal, cujos produtos representam ainda mais risco e danos à saúde pública. Assim, a forma como a Anvisa busca essa proteção, neste caso, é juridicamente viciada e socialmente ineficaz. A própria agência já admitiu que a eliminação dos ingredientes não torna os produtos mais seguros. O que a RDC faz é retirar características que o consumidor seguirá buscando no mercado ilícito, empurrando-o para a alternativa mais perigosa. Na prática, isso gera um problema maior de saúde pública, na medida em que o mercado ilegal não obedece a nenhuma regra sanitária de composição ou restrição de venda.
ConJur — O mercado ilegal de cigarros têm sido uma fonte de preocupação para o setor formal. Qual é o risco prático que a validação da resolução traria para o país neste sentido?
Fernando Neustein — Além do desafio para a saúde pública, representa um enorme risco para a segurança pública: o mercado ilegal de cigarros, hoje em 32% do volume total, já gera R$ 10,2 bilhões por ano para o crime organizado, sendo uma das principais fontes de financiamento de facções criminosas como o PCC e o Comando Vermelho. É algo que aflige diretamente o Estado e toda a sociedade. Mais recentemente, um estudo da FGV mostrou que o crescimento desse mercado está associado ao aumento de crimes como homicídios dolosos, latrocínios e roubo de carga. Se a RDC for validada, esse mercado ilícito, que alimenta a violência, será fortalecido porque passará a ser a única fonte de produtos com as características que o consumidor conhece e busca há décadas. Caem os empregos e os investimentos no setor, a arrecadação tributária, a qualidade do consumo e, por outro lado, aumenta a violência e o crime organizado.
ConJur — Qual é a expectativa em relação ao julgamento do STF?
Fernando Neustein — Juridicamente, o caso é muito objetivo: quais os limites para o exercício do poder normativo da Anvisa? Nota-se que não se trata de cigarro ou charuto. Vai muito além dos produtos que poderão ser ou não banidos. Está em jogo a forma como a Constituição e as leis disciplinam a atuação da Agência. O resultado servirá de precedente para outros julgamentos atualmente em andamento no STF e para edição de resoluções futuras pela Agência sobre os mais diversos setores.
O tema precisa ser debatido com profundidade para que sejam considerados todos os impactos deletérios dessa resolução e os reflexos desse precedente. É fundamental a criação de standards para delimitação da atuação da Anvisa já que, sem isso, a Agência poderá banir novos produtos no futuro, interferindo diretamente em matérias de competência do Poder Legislativo.
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