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Opinião

Cide-Remessas e Condecine redefinem cenário da economia digital

19 de novembro de 2025, 19h38

123RF

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O cenário tributário brasileiro para a economia digital acaba de ser redefinido por uma convergência de decisões judiciais e legislativas. A carga fiscal sobre o setor tecnológico se manifesta em uma dupla frente extrafiscal: a judicial, com a validação da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide-Remessas) sobre a base de custos, e a legislativa, com a criação da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine) progressiva sobre a base de receitas do streaming audiovisual.

Dois tributos de natureza singular, representam instrumentos cruciais de intervenção estatal com impactos diretos no planejamento fiscal e nas estratégias de investimento das empresas.

Cide-Remessas: validação da extrafiscalidade sobre os custos operacionais

A Cide incidente sobre remessas ao exterior foi instituída pela Lei nº 10.168/2000, com alíquota de 10%, visando financiar o Programa de Estímulo à Interação Universidade-Empresa para o Apoio à Inovação.

Este tributo, de competência exclusiva da União e classificado como contribuição de intervenção no domínio econômico, tem como objetivo primordial estimular o desenvolvimento tecnológico brasileiro, incentivando atividades de pesquisa e desenvolvimento (P&D). No caso do streaming, ele não incide sobre o preço da assinatura, mas sim sobre as remessas de valores ao exterior (pagamentos por serviços, tecnologia e conteúdos) feitos pela filial brasileira à sua matriz estrangeira.

O Tema 914 do STF e a ampla incidência

A validade formal e material da Cide-Remessas foi confirmada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Tema nº 914 de Repercussão Geral (RE 928.943) em agosto de 2025.

A principal controvérsia jurídica centrou-se na ampliação da base de cálculo promovida pela Lei nº 10.332/2001, que expandiu a incidência para incluir “royalties a qualquer título” e remuneração por “serviços técnicos, de assistência administrativa e semelhantes”, mesmo sem explícita transferência de tecnologia.

O cerne do debate no STF residiu na questão em saber se essa ampliação desvirtuava a finalidade original da Cide, especialmente ao alcançar remessas que não envolviam exploração de tecnologia, tais como remuneração de direitos autorais, exploração de softwares sem transferência de tecnologia e serviços administrativos ou jurídicos sem conteúdo tecnológico.

Spacca

Spacca

O ministro relator (Luiz Fux), corrente minoritária, argumentou que o campo de incidência do tributo deveria se restringir às hipóteses que envolvem, de fato, a importação de tecnologia, sob pena de quebra da coerência normativa e do princípio da intervenção no domínio econômico.

No entanto, a corrente majoritária, que prevaleceu na tese final (redator ministro Flávio Dino), entendeu que ampliação da base material foi uma opção legislativa deliberada e consciente, e a Cide, por ser um tributo de intervenção, não exige referibilidade direta (vínculo) entre o contribuinte e o benefício fomentado.

As teses que prevaleceram no Plenário do STF e que definem o perfil constitucional da Cide-Remessas no mercado digital, foram as seguintes:

1. É constitucional a contribuição de intervenção no domínio econômico (Cide) destinada a financiar o Programa de Estímulo à Interação Universidade-Empresa para o Apoio à Inovação, instituída e disciplinada pela Lei nº 10.168/2000, com as alterações empreendidas pelas Leis nº 10.332/2001 e 11.452/2007;

2. A arrecadação da Cide, instituída pela Lei nº 10.168/2000, com as alterações empreendidas pelas Leis nº 10.332/2001 e 11.452/2007, deve ser integralmente aplicada na área de atuação ciência e tecnologia, nos termos da lei.

A decisão validou a ampla incidência da Cide instituída pela Lei nº 10.168/2000, com alíquota de 10%.

Para o STF, essa finalidade interventiva ajusta-se adequadamente aos princípios da ordem econômica (CF, artigo 170), possuindo intrínseca relação com a promoção do desenvolvimento tecnológico e a qualificação da ordem econômica nacional.

Ausência de referibilidade direta e o caráter extrafiscal

Um ponto crucial do julgamento do Tema nº 941 pelo STF é a desnecessidade de referibilidade direta.

Prevaleceu por maioria, o seguinte entendimento:

1. A Cide, por ser um tributo de intervenção no domínio econômico, não exige referibilidade (vínculo direto) entre o contribuinte e o benefício fomentado;

2. O foco está na finalidade pública extrafiscal (o desenvolvimento tecnológico) e na vinculação integral da receita a essa finalidade, e não na correlação estrita com o critério material (o fato gerador).

Isto significa que o fato gerador da Cide não precisa corresponder a uma contraprestação ou a um benefício direto em favor do contribuinte, como ocorre com as taxas. Basta que a contribuição esteja vinculada à atuação estatal na área do domínio econômico onde ocorre a intervenção (o setor de tecnologia, neste caso).

O resultado prático dessa decisão foi a consolidação de um custo de 10% sobre a base de custos das plataformas e multinacionais, obrigando empresas que não recolheram a Cide ou ajuizaram ação e estavam aguardando a decisão do Tema nº 914 pelo STF, registrar um passivo fiscal referente a períodos anteriores e planejar o custo operacional para o futuro.

Ressalva essencial: por força da Lei nº 11.452/2007, a remuneração por licença de uso ou direitos de comercialização de programa de computador (software) não incide na Cide, salvo se envolver a transferência da tecnologia correspondente.

Condecine: intervenção no domínio audiovisual e o fenômeno do streaming

Em contraste com a Cide-Remessas, que foca no desenvolvimento tecnológico de forma ampla, a Condecine (Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional) tem um foco setorial específico: o fomento da indústria audiovisual e cinematográfica brasileira.

No contexto do mercado digital, a Condecine passa a incidir sobre a receita bruta anual das empresas de streaming audiovisual que permite a transmissão de conteúdo multimídia (vídeo e áudio) pela internet.

Incidência no ambiente digital

O projeto de Lei nº 8.889/17 aprovado na Câmara em novembro de 2025 estabelece a cobrança progressiva da Condecine sobre a receita bruta anual das empresas de streaming audiovisual, abrangendo:

– Conteúdo Audiovisual por Demanda (CAvD), como Netflix e similares;

– Serviços de televisão por aplicativos;

– Serviços de Compartilhamento de Conteúdo (UGC), como o YouTube

Estrutura das alíquotas e deduções

O tributo é escalonado em faixas e alíquotas que variam conforme o tipo de serviço:

– Vídeo sob demanda e televisão por app: Alíquotas entre 0,5% e 4%, com parcelas dedutíveis fixas variando de R$ 24 mil a R$ 7,14 milhões.

– Serviço de compartilhamento: Alíquotas entre 0,1% a 0,8%, com parcelas dedutíveis de R$ 4,8 mil a R$ 1,4 milhão.

Incentivo e destinação setorial

Assim como a Cide-Remessas, a Condecine possui um forte caráter extrafiscal, mas seu mecanismo de intervenção é mais sofisticado. Para garantir o estímulo à produção nacional, o projeto permite que as empresas deduzam até 60% da contribuição devida anualmente (podendo chegar a 75% se o conteúdo brasileiro superar 50% do catálogo total) para fins de investimento na própria indústria audiovisual nacional (produção própria, compra de direitos de conteúdo independente, ou capacitação).

Essa destinação vinculada visa promover a cultura nacional e fortalecer a capacidade produtiva interna no setor.

Este dispositivo transforma o tributo em um instrumento de política pública e regulamentação econômica. As plataformas são forçadas a escolher entre pagar a contribuição integral ao governo ou utilizar o recurso para investir estrategicamente no mercado local, gerando emprego, fomentando a cultura e, ao mesmo tempo, reduzindo o custo tributário final.

Implicações estratégicas: a dupla carga e o risco para o investimento

A superposição da Cide e da Condecine impõe uma tributação dupla sobre a economia digital: uma sobre a base de custos operacionais (Cide de 10% sobre remessas) e outra sobre a base de receita bruta (Condecine de até 4%).

Setores imediatamente afetados

A tese consolidada na Cide (Tema nº 914 do STF) afeta toda e qualquer multinacional com filiais brasileiras que remetam pagamentos ao exterior por serviços técnicos, licenças de uso ou royalties a qualquer título.

Já a Condecine incide diretamente sobre o setor de conteúdo audiovisual digital, abrangendo:

– Plataformas de streaming (VoD e TV por Apps): Custo de conformidade elevado e necessidade de provisionamento da CIDE, somado ao novo custo de receita da Condecine;

– Provedores de tecnologia (SaaS/cloud): Continuam sob a incidência da Cide sobre a remessa de valores por uso de software e serviços em nuvem.

Estratégia de mitigação e o repasse de custos

Para as empresas, o foco estratégico em um planejamento tributário deve ser:

– Gestão e provisionamento do passivo Cide: A “avaliação imediata do passivo fiscal acumulado” e o consequente provisionamento contábil são mandatórios para as empresas que, baseadas em discussões judiciais (Tema 914), não efetuaram o recolhimento da Cide nos períodos anteriores. Para as empresas já em compliance, o provisionamento se refere apenas ao recolhimento futuro. Adicionalmente, a mitigação de custo passa pela análise rigorosa dos contratos de remessa para identificar e segregar licenças de software puro (exceção da Cide);

– Planejamento Condecine: Transformar a Condecine em vantagem competitiva. Empresas com alta receita deverão utilizar o mecanismo de dedução (até 75%) para financiar a produção de conteúdo brasileiro, mitigando o desembolso tributário e cumprindo metas de conteúdo nacional, que também serão regulamentadas.

A consequência mais provável dessa dupla carga é o inevitável repasse de custos ao consumidor final, aumentando os preços das assinaturas e serviços digitais no Brasil, consolidando um custo fiscal mais alto no setor de tecnologia e mídia.

Conclusão e implicações estratégicas para o mercado digital

A análise conjunta da Cide-Remessas e da Condecine demonstra o uso intensivo, por parte da União, das Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico (Cide) como ferramenta de regulação e incentivo em setores econômicos estratégicos, em linha com o papel do Estado como agente normativo e regulador (CF, artigo 174).

A constitucionalidade da Cide-Remessas foi reafirmada, consolidando a exigência do tributo sobre as remessas ao exterior, mesmo que a base de incidência (incluindo “royalties, a qualquer título” e “serviços técnicos”) seja ampla e nem sempre diretamente vinculada à transferência de tecnologia. Contudo, a destinação dos recursos deve ser rigorosamente integral à área de ciência e tecnologia.

Deve-se recordar que, por força da Lei nº 11.452/2007, a remuneração por licença de uso ou direitos de comercialização de programa de computador (software) não incide na Cide, salvo se envolver transferência da tecnologia correspondente. Esse é um nicho de grande relevância para o mercado digital.

A Condecine estabelece um modelo claro de incentivo via dedução fiscal para o setor audiovisual, permitindo que as empresas de streaming transformem o ônus tributário em investimento produtivo no mercado interno.

Em síntese, a intervenção tributária no mercado digital brasileiro, por meio dessas contribuições, busca equilibrar a necessidade de arrecadação para o fomento de políticas públicas com a indução de comportamento econômico, protegendo o mercado interno e a soberania tecnológica e cultural do país.

O conhecimento aprofundado do perfil constitucional dessas exações é fundamental para o desenvolvimento de um planejamento tributário robusto e em conformidade com o entendimento do Poder Judiciário.

 


Referências:

STF – RE 928943 SP, relator.: Luiz Fux, Data de Julgamento: 13/08/2025, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 18/10/2025

BRASIL. Lei nº 10.168, de 29 de dezembro de 2000. Institui contribuição de intervenção de domínio econômico destinada a financiar o Programa de Estímulo à Interação Universidade-Empresa para o Apoio à Inovação e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 29 dez. 2000. Disponível aqui.

BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 8.889, de 2017. Dispõe sobre a atividade de comunicação audiovisual de acesso condicionado e altera as Leis nº 12.485, de 12 de setembro de 2011, e nº 10.168, de 29 de dezembro de 2000. Diário da Câmara dos Deputados, Brasília, DF, 05 de novembro de 2025. Autor Paulo Teixeira – PT-SP.

Cristina Caroline da Silva Pires

é advogada tributária, MBA em Gestão de Tributos pela USP/Esalq, pós-graduada em Direito Tributário e Empresarial pela Faculdade Cândido Medas (Ucam - Rio De Janeiro), graduada em Direito pela Universidade Católica do Salvador (Ucsal).

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