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Opinião

Ampliação das cotas no Judiciário: avanço normativo e limites práticos

20 de novembro de 2025, 06h01

A aprovação pelo Conselho Nacional de Justiça do ato normativo que eleva de 20% para 30% a reserva mínima de vagas para pessoas negras nos concursos do Poder Judiciário representa um marco relevante para as ações afirmativas no país. A medida, aprovada em 11 de novembro de 2025, em pleno Mês da Consciência Negra, busca alinhar o Judiciário às diretrizes mais amplas da política de cotas no serviço público apresentadas pela Lei nº 15.142/2025. Mais do que uma alteração técnica, ela reafirma o compromisso institucional com a promoção da igualdade racial e com o enfrentamento das desigualdades históricas que ainda estruturam o sistema de justiça.

Fernando Frazão/Agência Brasil

Fernando Frazão/Agência Brasil

A trajetória até aqui remete à Resolução 203/2015, que estabeleceu a reserva de 20% das vagas na magistratura para candidatos autodeclarados negros. Inspirada na Lei 12.990/2014, a norma foi elaborada após o primeiro Censo do Poder Judiciário, que indicou a presença de apenas 15,6% de pessoas magistradas negras no Poder Judiciário. A Resolução representou o reconhecimento interno de que o Judiciário reproduzia desigualdades raciais profundas. Como destaca Vaz (2022), a finalidade central da política de cotas é o efetivo preenchimento das vagas reservadas e não apenas sua previsão em editais.

A década posterior à sua aprovação, entretanto, revelou um abismo entre norma e realidade. Pesquisas demonstram baixa adesão dos tribunais, ausência de mecanismos de controle e resistência institucional à mudança. O Diagnóstico Étnico-Racial no Poder Judiciário de 2021 registrou 12,8% de juízes e juízas negros. Em 2023, o Diagnóstico Étnico-Racial apontou 14,5%. Já o 2º Censo do Poder Judiciário, publicado em 2024, indicou 15%. Esses dados revelam que a magistratura permanece com índices muito próximos aos de uma década atrás, confirmando o descompasso entre a norma e sua execução.

Estudos de Oliveira e Sadek (2024) reforçam que o poder de implementação do CNJ é limitado e que as resoluções do Conselho se cumprem apenas quando há vontade política dos dirigentes, comprometimento dos servidores ou interesse direto da magistratura. As autoras apontam que a falta de dados robustos é um indicativo da baixa prioridade atribuída à política, revelando que, sem diagnóstico confiável, qualquer ação afirmativa tende à ineficácia.

No âmbito empírico, minha pesquisa de mestrado, “Aquele ali passou por cota? O papel da Resolução 203/2015 do CNJ na construção da representatividade nos concursos da magistratura paulista”, analisou os concursos do Tribunal de Justiça de São Paulo realizados após a norma. Os resultados demonstram que nenhum concurso preencheu integralmente as vagas destinadas para pessoas autodeclaradas negras por meio da reserva de vagas.

Entre os fatores observados estão cláusulas de barreira que eliminam candidatos já nas primeiras fases, falta de dados sistematizados, resistência institucional e desigualdade material profunda no acesso à preparação. Esse conjunto de obstáculos ajuda a manter o perfil histórico da magistratura: majoritariamente branco, masculino e pertencente às classes médias e altas. Moreira (2019) e Severi (2024) destacam que a concentração de poder em um único grupo social compromete a pluralidade decisória e reforça uma falsa ideia de neutralidade institucional.

Spacca

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Diversidade reforça a legitimidade democrática

A nova norma do CNJ, aprovada em 2025, busca enfrentar parte desses entraves ao elevar o percentual de reserva, garantir heteroidentificação, vedar o fracionamento de vagas e exigir aplicação da política mesmo em concursos de cadastro de reserva. Também determina revisões periódicas com base em dados censitários. É um avanço normativo e simbólico, mas que depende de compromisso institucional para gerar efeitos concretos. Severi (2016) lembra que a pluralidade no Judiciário é condição indispensável para a efetivação dos marcos constitucionais de uma sociedade democrática.

A experiência recente mostra que a diversidade na magistratura fortalece a legitimidade democrática da justiça. A presença de pessoas negras, indígenas e quilombolas amplia a escuta, diversifica as formas de compreender conflitos e introduz na interpretação jurídica saberes oriundos de trajetórias marcadas por desigualdade. Muitos desses saberes são, como apontaram juízes e juízas entrevistados na minha pesquisa, ferramentas de sobrevivência que produzem deslocamentos significativos na forma de julgar.

A ampliação das cotas pelo CNJ reacende a discussão sobre desigualdades históricas que moldaram quem pôde ocupar espaços de poder. A presença de pessoas negras na magistratura é mais do que resultado de uma política pública: é um movimento contínuo de enfrentamento e (re)existência.

Democratizar o Judiciário exige compromisso ético e institucional com a pluralidade de vozes que compõem o país. Quando trajetórias diversas passam a integrar o sistema de justiça, aquilo que sempre foi naturalizado — o perfil homogêneo da magistratura — finalmente começa a ser questionado. Esse tensionamento é incômodo, mas é dele que nascem as mudanças necessárias. As cotas não resolvem todos os impasses, mas abrem caminhos antes interditados e afirmam que o futuro da justiça brasileira passa, inevitavelmente, por uma magistratura mais plural, democrática e humana.

 


Referências:

RODRIGUES, Mayara Xavier. “Aquele ali passou por cota?”: o papel da Resolução nº 203/2015 do Conselho Nacional de Justiça na construção da representatividade nos concursos públicos da magistratura do Estado de São Paulo. 2025. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2025.

VAZ, Lívia Sant’Anna. Cotas raciais. Coleção Feminismos Plurais. São Paulo: Jandaíra, 2022.

MOREIRA, Adilson José. Pensando como um negro: ensaio de hermenêutica jurídica. São Paulo: Editora Contra Corrente, 2019.

SEVERI, Fabiana Cristina. A imparcialidade judicial e a crítica feminista. Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2024. Disponível aqui.

SEVERI, Fabiana Cristina. O gênero da justiça e a problemática da efetivação dos direitos humanos das mulheres. Revista Direito e Práxis, v. 7, n. 13, 9 mar. 2016. Disponível aqui.

OLIVEIRA, Fabiana Luci de; SADEK, Maria Tereza Aina. Resolução do CNJ se cumpre? A ineficácia da política de cotas raciais no Judiciário. REI – Revista Estudos Institucionais, v. 10, n. 2, p. 299–325, 4 maio 2024.

Mayara Xavier Rodrigues

é advogada e mestra em Direito pela FDRP/USP, fundadora da DiversiLegal e pesquisadora de raça e gênero no sistema de justiça, integrante da Comissão da Igualdade Racial da OAB/Santo Amaro e pós-graduanda no MBA em ESG e Negócios Sustentáveis da USP/Esalq.  

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