O Dia da Consciência Negra é sempre um convite para revisitar não apenas a nossa história, mas o modo como o Estado brasileiro se organiza e propõe políticas para enfrentar desigualdades que ainda estruturam o presente. Entre essas políticas, as cotas raciais se consolidaram como uma das mais importantes ferramentas de promoção da igualdade, abrindo caminhos antes inacessíveis para milhares de pessoas negras. Como toda política pública, sua efetividade depende de regras claras, decisões coerentes e interpretações que não abram margem para retrocessos.

Nesse sentido, a heteroidentificação tornou-se parte central dos concursos públicos que adotam cotas raciais. Por meio dela, terceiros verificam a autenticidade da autodeclaração de candidatos que concorrem a vagas reservadas aos candidatos negros (pretos e pardos). Trata-se de um procedimento simples na forma, mas complexo na análise: uma comissão observa o fenótipo do candidato e, logo depois, decide se confirma ou não a autodeclaração racial.
Em orientações recentes e em práticas institucionais, recomenda-se que as comissões sejam compostas por número ímpar de membros, geralmente cinco, selecionados por critérios de capacitação e observância da diversidade racial, de gênero e, quando possível, regional. Essas comissões atuam observando o fenótipo do candidato, quase sempre em procedimento presencial filmado, com registro de fases e garantia do contraditório e da ampla defesa. Além disso, a colegialidade está na própria razão de ser da heteroidentificação. Desde sua concepção, o procedimento foi estruturado para que um grupo, e não um indivíduo isolado, avalie o fenótipo declarado, a fim de conferir maior legitimidade, reduzir vieses pessoais e produzir uma decisão que reflita a percepção coletiva formada a partir da diversidade de seus membros.
A respeito do momento da deliberação em si, no julgamento da ADC 41, o relator, ministro Luís Roberto Barroso, introduziu a chamada tese da “zona cinzenta”, também conhecida como “dúvida razoável” ou in dubio pro autodeclaração: nas situações em que não haja clareza do enquadramento racial do candidato, deve prevalecer a sua autodeclaração. Nas palavras do relator:
“(…) deve-se ter bastante cautela nos casos que se enquadrem em zonas cinzentas. Nas zonas de certeza positiva e nas zonas de certeza negativa sobre a cor (branca ou negra) do candidato, não haverá maiores problemas. Porém, quando houver dúvida razoável sobre o seu fenótipo, deve prevalecer o critério da autodeclaração da identidade racial”.
Embora a tese não tenha sido inscrita como vinculante pelo Supremo Tribunal Federal no acórdão da ADC 41, ela tem exercido influência significativa na interpretação jurídica do tema, orientando decisões de tribunais e gerando controvérsias de várias naturezas na atuação das comissões.
No cotidiano desses colegiados, a deliberação se dá por maioria entre os membros presentes. Isso significa que, mesmo na ausência de unanimidade, uma composição 3×2 ou 4×1 produzirá um resultado válido a favor ou contra o candidato. Dada essa lógica, muitas instituições interpretaram a tese da “zona cinzenta” de forma restritiva: entendem que a “dúvida razoável” pode existir em nível individual, mas não como fundamento para anular a decisão colegiada proferida por maioria.

Em outras palavras, embora um ou mais membros possam admitir ter dúvida razoável quanto ao enquadramento do candidato e, nesse caso, optar por prestigiar a sua autodeclaração, a banca como um todo não registraria formalmente uma “zona cinzenta” quando a maioria conclui pela não confirmação. Essa orientação tem sido explicitada em guias institucionais, como o da Defensoria Pública da União [1], que recomendam não consignar margem de dúvida no registro do parecer e sim adotar a decisão da maioria, evitando formalizar incertezas que fragilizem o processo.
Essa interpretação exige uma explicação técnica simples: a deliberação colegiada tem por função resolver precisamente situações em que há posições divergentes. Se o colegiado, sempre composto por um número ímpar de membros, decide por maioria, não haverá empate que permita qualificar a comissão como “em dúvida”. A divergência entre os membros não significa que a comissão, como um todo, esteja em dúvida; ela apenas expressa a pluralidade de percepções individuais que o processo colegiado serve justamente para resolver.
Tensões interpretativas
A edição do Decreto nº 12.536/2025 introduziu uma novidade importante na leitura dessa tese, ao disciplinar procedimentos e salvaguardas aplicáveis às comissões de heteroidentificação. Apesar do avanço significativo representado pela norma, aguardada há um certo tempo por diferentes atores que acompanham a demanda, nota-se que alguns de seus comandos produzem tensões interpretativas, especialmente quando se cruzam regras relativas à decisão colegiada com as que tratam da presunção de veracidade da autodeclaração.
Por um lado, o artigo 10 prevê que a comissão decidirá por maioria e emitirá parecer sobre a autodeclaração. Por outro lado, o artigo 5, § 1º, e o artigo 11, § 3º, estabelecem que, na hipótese de dúvida razoável motivada no parecer, prevalecerá a presunção relativa de veracidade da autodeclaração, e que a autodeclaração prevalecerá na hipótese de decisão não unânime em desfavor do candidato. Em termos práticos, lê-se, simultaneamente, que a comissão decide por maioria e que uma decisão não unânime em desfavor do candidato poderá ser neutralizada pela prevalência da autodeclaração.
A consequência é uma ambiguidade. Se a comissão tem poder decisório por maioria, como conciliar esse poder com a regra que parece proteger o candidato quando a decisão for “não unânime”? Sem um critério interpretativo claro, a norma pode produzir insegurança: poderá incentivar disputas sobre o sentido de “decisão não unânime” e abrir margem para contestações judiciais, ou, alternativamente, gerar práticas administrativas que empurram a aplicação para uma leitura tacitamente majoritária, preservando a autoridade colegiada.
Esse descompasso também sugere que a contradição presente no decreto pode ser fruto de um equívoco não percebido no processo de redação normativa. A Nova Lei de Cotas (Lei 15.142/2025) chegou a prever, no artigo 3º, IV, que a banca deveria decidir de forma unânime quando concluísse por identidade racial diversa da autodeclarada pelo candidato, mas o dispositivo foi vetado. Ao vetar essa regra, o Executivo sinalizou que não pretendia adotar um modelo que afastasse a lógica da decisão colegiada por maioria.
O decreto, ao impor a prevalência da autodeclaração sempre que a decisão desfavorável não for unânime, avança justamente sobre a regra que foi retirada da lei, o que reforça a impressão de que a previsão pode ter sido introduzida de forma inadvertida e em sentido contrário a um entendimento já consolidado na prática.
A solução interpretativa mais coerente, e a que melhor concilia a finalidade das normas com a lógica deliberativa das comissões, é a seguinte: a “dúvida razoável” deve operar como regra de convicção individual do membro da banca, e não como critério coletivo que possa paralisar ou invalidar a deliberação majoritária.
Essa solução interpretativa revela-se a mais adequada justamente porque toda a regulamentação da heteroidentificação foi construída para prestigiar a natureza colegiada da comissão. Não por acaso, o decreto estabelece regras específicas de composição (número ímpar de integrantes, diversidade de gênero e diversidade racial etc.), reconhecendo que avaliadores com perfis distintos enriquecem a análise e reduzem o risco de vieses individuais.
Além disso, não se conhece, no âmbito do Estado brasileiro, órgão colegiado que funcione sob a lógica inversa, de modo que a divergência de um único membro invalide a posição majoritária. Assim como ocorre nos tribunais do Poder Judiciário, em que o voto vencido não converte o resultado do julgamento, o que se preserva é a decisão da maioria, expressão institucional da deliberação colegiada. Esse mesmo racional deveria orientar a atuação das bancas de heteroidentificação, o que, em termos práticos, significa:
– cada membro pode, ao preencher seu voto ou parecer individual, levar em conta a sua dúvida razoável e, caso a tenha, votar pela confirmação da autodeclaração;
– a comissão, sempre formada por número ímpar e deliberando por maioria, continua apta a produzir parecer coletivo vinculante;
– a presunção relativa prevista na norma e a proteção da autodeclaração operam como orientação em favor do candidato nas hipóteses em que o próprio voto individual reconhece dúvida razoável, não como cláusula automática que transforme um voto majoritário contrário em ineficaz;
– caso a norma queira conferir efeito automático à autodeclaração sempre que houver decisão não unânime da comissão, a solução adequada é a modificação legislativa ou a regulamentação expressa nesse sentido, porque tal regra altera a razão de ser da deliberação colegiada.
A “zona cinzenta”, portanto, é um instrumento hermenêutico relevante para proteger a autodeclaração quando houver dúvida razoável sobre o fenótipo do candidato. Contudo, para que desempenhe essa função sem esvaziar a lógica da deliberação colegiada, ela deve ser compreendida como um critério individual de convicção de cada integrante da banca, e não como um mecanismo automático capaz de anular a decisão majoritária do colegiado. Se a intenção normativa fosse diversa, seria necessário que o decreto o dissesse de forma clara, ajustando ou suprimindo os dispositivos que hoje permitem leitura em sentido contrário. Enquanto essa revisão não ocorrer, a interpretação que preserva a força decisória da maioria, ao mesmo tempo em que recomenda a cada avaliador uma postura pró-autodeclaração quando estiver diante da dúvida, mostra-se a solução jurídica mais coerente com os objetivos da política.
Com efeito, fortalecer a segurança jurídica desses procedimentos é fortalecer a própria política de cotas, garantindo previsibilidade, estabilidade e confiança social. Ao assegurar interpretações coerentes, evitar ambiguidades normativas e preservar a lógica institucional das comissões, o Estado reafirma seu compromisso com a igualdade racial em uma perspectiva de densidade técnica.
E, no Dia da Consciência Negra, lembrar dessa dimensão não é apenas um gesto de homenagem à memória: é consolidar a promoção da justiça.
[1] Para mais, ver: Brasil, Defensoria Pública da União. Comissões de Heteroidentificação étnico-racial: guia de orientação. [recurso eletrônico]. Brasília: DPU, 2025, p. 9.
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