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Senso Incomum

Crimes sexuais e caso concreto: diferença entre correto e verdadeiro

20 de novembro de 2025, 08h00

Abstract: decisão do Supremo Tribunal do Reino Unido dá novo enfoque à interpretação das leis que restringem defesa em crimes sexuais

Spacca

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No Brasil, especialmente após a Lei nº 14.245/2021 e decisões recentes do STF (Supremo Tribunal Federal), proíbe-se expressamente perguntas sobre a vida sexual pregressa ou o modo de vida da vítima de crimes sexuais durante audiências e julgamentos. O objetivo é evitar a revitimização e garantir a dignidade da vítima. Aliado a isso tem-se o protocolo de gênero elaborado-editado pelo CNJ, que contribui para deixar a discussão ainda mais polêmica.

No Brasil essa temática ainda não está consolidada. O STJ, por exemplo, já decidiu que a palavra da vítima precisa de outros elementos — o que parece lógico. Nesse sentido, trago para discussão da comunidade jurídica, nesta coluna hebdomadária (aqui estou violando a nova lei sancionada pelo presidente da República que exige linguagem simples — mas, qual será a sanção?), o que ocorreu recentemente no Supremo Tribunal do Reino Unido. [1]

Falo do caso Keir and Daly versus His Majesty’s Advocate. Keir e Daly, que tinham sido condenados em tribunais escoceses pela prática de crimes de violação e de outros crimes sexuais, a cinco e nove anos de prisão, respectivamente, alegavam ter havido consentimento por parte das queixosas e queixavam-se de terem sido impedidos de produzir a prova que pretendiam nos seus julgamentos, nomeadamente tinha-lhes sido vedado interrogar as mulheres que os acusavam sobre o passado destas, nomeadamente anteriores relações sexuais consentidas com um dos violadores ou, ainda, sobre anteriores falsas acusações de violação por parte de uma das vítimas. Alegavam, assim, nos seus recursos que fora violado o seu direito a um julgamento equitativo garantido pelo artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (Cedh).

Em concreto, as limitações da prova de que se queixavam resultavam da Secção 274 do Código de Processo Penal escocês que determina que, em julgamentos de crimes de ofensas sexuais, entre outras coisas, o tribunal não permitirá perguntas destinadas a obter provas que demonstrem ou tendam a demonstrar que o/a queixoso/a não tem bom carácter (seja em relação a questões sexuais ou outras) ou que teve quaisquer outros comportamentos sexuais que não os que constam da acusação.

Frise-se que tal legislação — tal qual ocorre no Brasil — é fruto de uma evolução legislativa que procurou combater a utilização pelas defesas criminais de perguntas vexatórias às vítimas, violadoras da privacidade e preconceituosas, e, no fundo, irrelevantes para a boa decisão da causa, mas susceptíveis de influenciar o juiz ou tribunal. O problema, lá como aqui, é a interpretação que se faz da legislação.

Na Escócia existem os artigos 274 e 275 da Criminal Procedure (Scotland) Act 1995 (conhecidas como “rape shield laws”). Assim, o artigo 274 proíbe, por padrão, que o réu (ou testemunhas) faça perguntas ou apresente evidências sobre: o caráter sexual da vítima (complainer); outros relacionamentos sexuais ou histórico sexual (exceto o ato em questão); o caráter geral ou comportamento anterior da vítima. Isso visa evitar que julgamentos se tornem “julgamentos do caráter da vítima” e proteger a privacidade.

Já o artigo 275 permite exceções se o réu, durante o julgamento, provar que a evidência é relevante para: consentimento ou crença razoável em consentimento; credibilidade ou confiabilidade da vítima. Os réus apelaram ao High Court of Justiciary (tribunal de apelação criminal da Escócia), que desestimou os recursos em 2023. Eles então apelaram ao UK Supreme Court (Tribunal que substituiu a House of Lords), questionando se as restrições à admissão de evidências violaram o artigo 6(1) e 6(3)(d) da Cedh (direito a exame de testemunhas e julgamento imparcial).

O debate central foi se a interpretação restritiva dessas seções pelas cortes escocesas (baseada em precedentes como Lord Advocate’s Reference (Nº 1 of 2023) tornava impossível para a defesa explorar evidências “contextuais” sem violar o artigo 6 da Cedh. A defesa alegou que a interpretação do Tribunal da Escócia foi textualista-restritiva e impediu usar o artigo 275 que estabelece exceção. A defesa alegou que foi impedida de contextualizar os eventos.

A decisão do UK Supreme Court foi de 12 de novembro de 2025. A posição dos tribunais da Escócia tratava as proibições como “absolutas” em vez de presumíveis (aqui está o busílis) Segundo o Supremo Tribunal do Reino Unido, isso pode impedir evidências relevantes para credibilidade, consentimento ou contexto, violando o artigo 6 (direito a defesa efetiva e exame de testemunhas).

Por isso o Tribunal disse, citando jurisprudência europeia (ex.: Doorson v Netherlands, 1996), definiu restrições só são válidas se “necessárias e proporcionais”, isto é, os artigos 274 e 275 devem ser interpretadas em conjunto, permitindo mais flexibilidade em aplicações sob a 275 (que trata das exceções).

Mais ainda, o Supremo Tribunal do Reino Unido deu instruções aos tribunais e juízes escoceses de que devem alterar sua interpretação do artigo 275 para garantir compatibilidade com a Human Rights Act 1998 (seção 6), avaliando cada caso individualmente e evitando rigidez que prejudique a defesa.

Resumindo, disse o Supremo Tribunal do Reino Unido que é “inerente a um sistema adversarial de justiça criminal que, ao declarar-se inocente, o arguido esteja a contestar a veracidade das alegações da queixosa” e que, na sua defesa, o advogado da defesa pode procurar minar a credibilidade do seu testemunho e sugerir que não se deve acreditar nela, o que, num julgamento por crime sexual, é inevitavelmente intrusivo da vida privada da queixosa.

Mas também disse o tribunal que, quando está em causa se houve ou não consentimento para o ato sexual, como muitas vezes acontece, apurar o estado de espírito da queixosa no momento dos acontecimentos em causa é determinante. Para contrariar as declarações da vítima/acusação, a defesa terá de se apoiar no seu comportamento, sexual ou não sexual, antes ou depois dos acontecimentos em questão, como indicativo da probabilidade de que o seu estado de espírito não ser, no momento dos acontecimentos, o que ela refere em julgamento.

Por isso, diante das circunstâncias de um caso, o Supremo Tribunal assentou “ser inevitável que um julgamento justo nestes casos envolva que a queixosa seja sujeita a perguntas intrusivas sobre a sua vida privada e, em alguns casos, que tenham de ser apresentadas ao júri provas sobre aspectos íntimos da sua vida”. Porém, e isso é evidente, trata-se de uma questão de equilíbrio: “A lei deve garantir que tais intrusões na sua privacidade não ultrapassem o necessário para assegurar que o réu tenha um julgamento justo.”

É uma questão hermenêutica. O caso concreto é o protagonista. E então entra a diferença entre o correto e o verdadeiro. Por quê:

Nem sempre o correto é verdadeiro.
Não é incorreto dizer que no julgamento não se pode constranger a vítima etc.
Porque, em circunstâncias concretas, isso que é considerado correto in abstrato pode não ser verdadeiro em um determinado caso.
Por exemplo, não é incorreto dizer que a palavra da vítima nos crimes de estupro é de fundamental importância, mormente depois do protocolo de gênero.
Porém, isso pode não ser verdadeiro em determinado caso, em que a palavra da vítima é desmentida por provas.

Dito de outro modo, trata-se de uma questão de filosofia hermenêutica e hermenêutica filosófica. Pode, por exemplo, ser correto sustentar que legitima defesa não se mede milimetricamente. Porém, em um determinado caso, isso pode ser absolutamente falso. O contexto é que dará o sentido verdadeiro. Direito é, embora isso esteja caindo no esquecimento, uma questão de caso concreto.

Portanto, lá (Reino Unido) e cá (Brasil), a diferença entre correto e verdadeiro está (ou deveria estar) no cerne do necessário equilíbrio que deve haver na análise da matéria. Esse equilíbrio não estava a acontecer nas decisões dos tribunais escoceses que aplicavam, até essa data recente, a lei de uma forma muito literal e restritiva, considerando que todas as questões que não tinham uma relação direta com os fatos da acusação, não fazendo parte dela, eram “colaterais” ou “irrelevantes”, não sendo permitida produção de prova sobre tais questões.

Por isso, decidiu o Supremo Tribunal do Reino Unido que os tribunais escoceses devem rever a sua prática. [2]

Parece que no Brasil, por vezes, repete-se o que acontece na Escócia.

Moral da história, como bem diz o jurista português Francisco Teixeira da Mota, queiramos ou não, os acusados em crimes sexuais gozam dos direitos de defesa tal como os restantes réus.

E por aqui? O que a comunidade jurídica pensa sobre isso?

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[1] Os direitos dos suspeitos de crimes sexuais, por Francisco Teixeira da Mota. Jornal O Público, Portugal, 15 de novembro de 2025.

[2] Todavia, lá, como cá, parece que o Tribunal aplica o malsinado “princípio” de que não há nulidade sem prejuízo. Por isso, embora em tese os réus tivessem razão, não comprovaram o prejuízo. Lá, como cá, essa questão da “nulidade sem prejuízo” deveria ser rediscutida. Por aqui estamos tentando isso. Marcio Berti e eu temos escrito muito sobre isso aqui no ConJur.

Lenio Luiz Streck

é professor, parecerista, advogado e sócio fundador do Streck & Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br

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