Pesquisar
Opinião

STJ consolida critério epistêmico de admissibilidade da prova no processo penal

20 de novembro de 2025, 18h13

A 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, sob a relatoria do ministro Rogério Schietti Cruz, decidiu, no Recurso Ordinário em Habeas Corpus (RHC) 167.478/MS [1], que cartas psicografadas não podem ser admitidas como meio de prova no processo penal face à míngua de idoneidade epistêmica para tanto. O acórdão é relevante por consolidar, na jurisprudência, a aplicação de um limite epistemológico à liberdade probatória, conceito ainda pouco explorado no Direito processual penal brasileiro.

Direito à prova

No âmbito do processo penal existe, verdadeiramente, um direito à prova, que funciona como desdobramento natural do direito de ação ou de defesa, permitindo-se às partes investigarem, proporem, verem admitidas, produzirem e verem valoradas as provas que julgarem necessárias à obtenção de desfecho favorável.

Percebe-se que o direito à prova é regido, dentre outros, pelo princípio da liberdade probatória, o qual preconiza que, em virtude dos interesses envolvidos, adota-se a mais ampla liberdade probatória. Essa liberdade probatória, contudo, não é absoluta.

Segundo o professor Taruffo [2], três são as condições para que uma decisão judicial possa ser considerada justa:

a) acertada verificação sobre os fatos ocorridos;

b) correta aplicação do direito às premissas fáticas estabelecidas e

c) respeito às garantias do devido processo legal.

Desta forma, em não sendo a famigerada “busca pela verdade real” o escopo único e nem o mais importante do processo penal, há de se estabelecerem limites à liberdade probatória como mecanismo de garantia de um devido processo penal democrático, justo e preservador dos direitos e garantas do acusado.

A doutrina costuma dividir os limites à liberdade probatória em dois grupos principais, quais sejam, os limites processuais (lógicos, epistemológicos e econômicos) e os limites políticos ou extraprocessuais, que decorrem da ilicitude (e ilegitimidade) do meio de obtenção da prova.

Essa classificação, notadamente quando aos critérios de admissibilidade processuais, tem sido progressivamente incorporada pela jurisprudência do STJ, que passou a dar primazia a critérios racionais de admissibilidade probatória.

Os limites processuais à liberdade probatória

Os limites processuais subdividem-se em limitações lógicas, epistemológicas e econômicos.

O limite lógico de admissibilidade das provas, denominado pelo ministro Schietti como dimensão lógica-jurídica do princípio da relevância probatória, consiste na verificação abstrata da relação entre o objeto da prova e o objeto do processo, exigindo-se que o fato objeto da prova tenha relação direta (pertinência) ou indireta (relevância) com o thema probandum.

O CPP, em seu artigo 400, §1º, prevê, expressamente, o controle de admissibilidade probatório lógico, preconizando a inadmissibilidade das provas impertinentes e irrelevantes.

O limite epistemológico, por sua vez, refere-se à análise da capacidade de uma prova gerar conhecimento confiável sobre os fatos, contribuindo, assim, para o acertamento do enunciado fático alegado no processo e diminuindo as chances de um erro judiciário, de modo que buscam restringir o ingresso de elementos de provas que, embora pertinentes e/ou relevantes, poderiam gerar uma inexata reconstrução histórica dos fatos.

Spacca

Spacca

O Código de Processo Penal não traz uma uma previsão expressa quanto à necessidade de realização deste filtro, contudo, possui previsões esparsas de exemplos de filtros epistemológicos, tais como o parágrafo único do artigo 155 (prova acerca do estado das pessoas), o artigo 62 (prova da morte do agente), artigo 158, (prova dos crimes não transeuntes), etc.

Quanto à esta espécie, o ministro relator destacou que a inadmissão de uma prova por inidoneidade epistêmica não é uma atividade simplória, pois a fiabilidade da prova é um atributo gradual, e não binário (modelo de tudo-ou-nada).

Isso se dá porque, segundo o professor Badaró [3], os critérios de admissibilidade devem ser concebidos a partir de um regime de inclusão, ou seja, a regra é que os meios de prova requeridos pelas partes devem ser admitidos, somente havendo exclusão nos casos de manifesta irrelevância ou impertinência (ou, ainda, inidoneidade espistêmica).

Segundo o ministro relator, portanto, apenas a inadequação epistêmica absoluta e manifesta da prova, decorrente da fiabilidade inexistente do meio de prova, justifica a inadmissão da prova, de modo que a inidoneidade meramente parcial ou relativa do meio de prova não deve obstar a sua admissão, devendo  impacto dessa inidoneidade relativa ser examinada subsequentemente, na fase de valoração da prova.

Por fim, há o limite econômico, fundado no princípio da economia processual. Ainda que a prova seja pertinente, relevante e epistemicamente idônea, pode ser indeferida se sua produção implicar ônus desproporcional ao andamento do processo ou retardamento injustificado.

O Código de Processo Penal legitima a conduta do magistrado de inferir as provas consideradas protelatórias no artigo 400, §1°, do CPP. Exemplo de aplicação do filtro de admissibilidade probatório se deu no julgamento do Habeas Corpus n° 131.158/RS [4], em que o Supremo Tribunal Federal validou o indeferimento da oitiva de mais de seiscentas vítimas do incêndio da Boate Kiss, reconhecendo que, embora a prova fosse relevante, sua realização seria manifestamente protelatória, exigindo centenas de horas de audiência e submetendo as vítimas a nova revitimização.

Esse limite protege a razoável duração do processo e evita a multiplicação de atos instrutórios inúteis.

Especial importância do filtro epistemológico no procedimento do Tribunal do Júri e sua (in)compatibilidade com o princípio da plenitude de defesa

Ao desenvolver sua fundamentação, o ministro Schietti conferiu destaque à importância do filtro epistemológico no procedimento do Tribunal do Júri.

Isso porque, diferentemente dos juízes togados, os jurados não motivam suas decisões, o que dificulta, de sobremaneira, o controle da racionalidade dos veredictos.

Assim, a única oportunidade de assegurar que a decisão popular se baseie em elementos de convicção racionais é justamente no momento da admissibilidade da prova.

Por isso, nos processos submetidos ao júri, é de suma importância que o juízo presidente promova filtragem cuidadosa e criteriosa dos elementos probatórios incorporados aos autos, a fim de desentranhar provas logicamente irrelevantes e impertinentes ou epistemicamente inidôneas que possam induzir os jurados a conclusões irracionais e potencialmente errôneas por ocasião do julgamento do mérito.

No tocante à análise da compatibilidade deste filtro probatório em relação à atuação do Estado-acusador no âmbito do procedimento do Tribunal do Júri não há maiores controvérsias, eis que, segundo o STJ, o próprio sistema republicano impõe que os atos estatais sejam norteados pelo princípio da eficiência, de modo que os recursos estatais devem ser empregados à luz da sua adequação epistêmica para a atividade investigativa ou acusatória, motivo pelo qual não é aceitável que o Estado-investigação e o Estado-acusação conduzam a atividade probatória a partir de provas espúrias, sem nenhum respaldo em regras científicas, técnicas ou de experiência, que permitam inferir conclusões racionais sobre a probabilidade das hipóteses em conflito.

Por sua vez, no que toca à atuação da defesa, há a problematização da (in)compatibilidade da limitação epistemológica à liberdade probatória com o princípio da plenitude de defesa. O ministro Rogério Schietti afirmou que não se deve extrair dessa garantia, contudo, a possibilidade de que, no Tribunal do Júri, haja um vale-tudo procedimental em favor da defesa. Afirmou que, no plano instrutório, existem regras de limitações à atividade probatória da defesa, regras essas que não são afastadas pela garantia da plenitude de defesa, motivo pelo qual, de igual modo, a plenitude de defesa também não afasta os requisitos de admissibilidade da prova, nos quais se inclui a vedação a provas irrelevantes e que levem a um conjunto probatório tumultuário ou irracional.

Destaque-se que, em voto dissidente, o ministro Brandão ressaltou que o princípio da plenitude de defesa refere-se, primordialmente, à argumentação a ser desenvolvida em plenário, mas não à produção da prova, motivo pelo qual poderia, a defesa, utilizar elemento desprovido de idoneidade epistêmica (como a carta psicografada, no caso) não como prova, mas como elemento de argumentação, o que se encontraria abrigado pelo princípio da plenitude de defesa.

Inidoneidade epistêmica da carta psicografada e possibilidade de utilização como elemento investigativo

A carta psicografada consiste em um manuscrito produzido, em regra, por um médium sob a alegação de que o texto lhe foi ditado ou inspirado por um espírito, geralmente de pessoa falecida.

No caso concreto, a autoridade policial promoveu a juntada de uma carta psicografada supostamente redigida por um médium em relação à vítima de um suposto homicídio.  O texto, apresentado como mensagem “do além”, descrevia circunstâncias do crime e fazia referências à conduta do acusado. O juízo de primeiro grau admitiu o documento como prova, permitindo que fosse considerado pelo Tribunal do Júri. A defesa, entretanto, recorreu, alegando que a psicografia carecia de qualquer idoneidade epistemológica, por se tratar de elemento baseado exclusivamente em fé religiosa, destituído de controle racional e empírico.

Ao julgar o RHC 167.478/MS, a 6ª Turma do STJ, sob relatoria do ministro Rogério Schietti Cruz, acolheu a tese defensiva e concluiu pela inadmissibilidade da carta psicografada como meio de prova.

Inicialmente, cabe esclarecer que, segundo o ministro relator, apesar dos argumentos apresentados pelo impetrante acerca da ilicitude da carta psicografada por ofensa ao princípio da laicidade estatal, a sua produção e obtenção não ofendeu normas de direito material ou processual, eis que a compatibilidade com uma convicção religiosa específica (espiritismo) e a incompatibilidade com outras não torna uma prova ilícita por violação ao direito fundamental de liberdade religiosa ou mesmo à laicidade estatal. Motivo pelo qual a mácula essencial da carta psicografada não é o seu alinhamento a uma religião e desalinhamento a outras, mas sim a total ausência de idoneidade epistêmica.

Desta forma, o fundamento central foi a absoluta inidoneidade epistêmica do documento, isto é, a incapacidade de gerar conhecimento confiável, racional e intersubjetivamente verificável sobre os fatos submetidos à apreciação jurisdicional.

Segundo o ministro relator, a admissibilidade da prova não se limita à análise de sua licitude (e legitimidade), pertinência e relevância, pois exige-se, também, um mínimo de fiabilidade epistêmica, sob pena de se comprometer a racionalidade do processo penal.

No caso da psicografia, ressaltou o ministro relator que, no atual momento, não há comprovação científica ou empírica da possibilidade de comunicação entre vivos e mortos, daí porque, em suma, não há absolutamente nenhum apoio racional quanto à possibilidade de psicografia.

O voto condutor ressaltou a distinção essencial entre atos de fé e atos de prova. Os primeiros, por definição, prescindem de demonstração racional e, portanto, são opostos aos atos de prova, que visam justamente à demonstração racional dos fatos alegados no processo. Por isso, um ato de fé não pode servir como ato de prova, por serem atos diametralmente opostos e incompatíveis entre si.

A idoneidade epistêmica da carta psicografada dependeria de existir conhecimento racional sobre a possibilidade da psicografia, que não poderia estar amparada exclusivamente em um ato de fé. Assim, a ausência de comprovação científica atual quanto à possibilidade da psicografia leva à sua inidoneidade epistêmica e, consequentemente, obsta o uso da psicografia como fonte de prova no processo penal.

O acórdão, contudo, fez uma ressalva relevante, qual seja, a de que, embora a psicografia seja inadmissível como meio de prova judicial, pode, em tese, ser considerada elemento investigativo, à semelhança da denúncia anônima. Assim como ocorre com essa, pode funcionar como elemento de informação (“pista”), cujo conteúdo pode ser apurado e pode conduzir à obtenção de outros elementos de informação ou mesmo de prova, sem que isso gere a inadmissibilidade dos eventuais elementos de convicção porventura angariados, pois, repita-se, apesar de desprovida de qualquer potencialidade epistêmica, a carta psicografada é lícita (e legítima), não havendo de se falar na aplicação da teoria dos frutos da árvore envenenada (artigo 157, §1°, do CPP).

Com isso, o STJ, à unanimidade, conheceu e deu provimento ao RHC n° 167.478/MS para declarar a inadmissibilidade da carta psicografada juntada aos autos, bem como das provas relacionadas a atos de psicografia, em razão da inidoneidade epistêmica de tais meios de prova.

Conclusão

A liberdade probatória é pilar do processo penal democrático, mas não é absoluta. O filtro epistemológico protege a racionalidade do processo, evitando erros judiciais, notadamente no âmbito do Tribunal do Júri.

A carta psicografada, apesar de lícita, é epistêmicamente inidônea, não podendo gerar conhecimento confiável.

Ao determinar a sua exclusão, o STJ consolidou o critério epistemológico de admissibilidade probatória, reafirmando que o processo penal deve guiar-se pela razão, não pela fé.

 


[1] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Ordinário em Habeas Corpus n° 167478/MG,  6ª Turma, relator: ministro Rogério Schietti, DJ: 21/10/2025. Disponível em:  https://www.stj.jus.br/sites/portalp/paginas/comunicacao/noticias/2025/05112025-carta-psicografada-nao-pode-ser-usada-como-prova-judicial–decide-sexta-turma.aspx. Acesso em 08/11/2025.

[2] TARUFFO, Michele. Idee per una Teoria della Decisione Giusta. Sui Confini: Scritti sulla Giustizia Civile. Bologna: Il Mulino, 2002.

[3] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 13ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2025.

[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n° 131158/RS, 1ª Turma, relator: ministro Edson Fachin, DJ: 26/04/2016. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stf/862931640/inteiro-teor-862931648. Acesso em 08/11/2025.

João Pedro Amorim Delmondes

é advogado criminalista, graduado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap).

Seja o primeiro a comentar.

Você precisa estar logado para enviar um comentário.

Leia também

Não há publicações relacionadas.