Há um aspecto pouco notado do julgamento de Jair Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal pela trama golpista de 8 de Janeiro: grupos conservadores pararam de atacar o chamado “foro privilegiado”.
Desde a redemocratização convencionou-se na imprensa chamar de privilegiado o foro especial definido pela Constituição. O que o legislador chamara “prerrogativa de foro” caiu na boca do povo como “foro privilegiado”.
O raciocínio era simples: “Querem fugir dos verdadeiros juízes para caírem em tribunais de conchavo”, sem meias palavras. Mas a realidade se impõe. Julgados no Supremo Tribunal Federal em uma ação penal originária os réus descobriram que não é nada agradável responder a acusações em um rito rápido com possibilidades recursais muito mais restritas; e, as poucas que há, necessariamente serem endereçadas a colegiados do próprio tribunal instrutor.
Desesperados por não terem para onde fugir, correligionários dos acusados com foro na Suprema Corte, inclusive, passaram a articular saídas como a PEC 03/2021 (apelidada pela imprensa de PEC da Impunidade – hiperbolicamente, como convém) [1]. A proposta pressupõe a necessidade de autorização do legislativo para o recebimento da denúncia em ações penais originárias do STF, uma proteção corporativista difícil de ser defendida à luz do sol.
Engraçado notar a guinada em 180 graus de tantos defensores do fim do que antes parecia privilégio. O legislador constituinte registrou a prerrogativa de função para definir a competência por motivos óbvios: é impossível exercer a legislatura se qualquer juízo de primeira instância tiver poderes jurisdicionais sobre os mandatários. Uma denúncia recebida em uma comarca pequena teria o poder de determinar cautelares contra o presidente da República, em última análise.
Assim, fica estabelecido racional e republicanamente que ninguém está acima da lei, mas que autoridades devem ser processadas em determinado foro, colegiado e centralizado, ou ter suas ações congeladas durante o mandato — inclusive os prazos prescricionais.
Tudo isso para dizer que o mesmo tipo de raciocínio raso e sem nenhuma base na realidade costuma ser bastante fértil e popular em várias outras áreas do direito, com destaque para a segurança pública — tanto a ostensiva quanto aspectos da persecução penal — e, particularmente, no sistema carcerário.
Tremembé é pop

A série Tremembé em exibição no streaming é um tema inescapável nas últimas semanas para quem viva no Brasil. De programas de fofoca interessados nos romances e na vida privada de alguns apenados a discussões sérias nos jornais acerca da glamurização de condenados por crimes graves, fato é que não se fala em outra coisa.
(Contextualização para quem não viva no Brasil ou esteve em sono profundo nas últimas duas semanas: trata-se de uma série ficcional que romanceia o cumprimento de pena de condenados por crimes muito famosos na penitenciária estadual paulista de Tremembé.)
Tremembé já teve o apelido na imprensa de presídio de Caras, em alusão à revista de celebridades outrora sucesso de vendas. E, de fato, não dá para negar que os criminosos mais famosos do estado de São Paulo acabam por ir parar ali [2]. Há diversas razões para isso, como já iremos explicar.
Porém, no imaginário popular e na imprensa, e já há muito também no Poder Executivo estadual, a ideia por trás da alcunha de “presídio de Caras” é algum grau de privilégio. Como se Tremembé fosse um spa onde monstros curtem a vida atrás das grades. E já há algum tempo pululam projetos para encerrar as atividades do presídio. Ousamos dizer, inclusive, que a notoriedade da série ficcional tem grande potencial de gatilho para abreviar esse fechamento [3].
Em primeiro lugar, há uma crítica moral a tal entendimento. O raciocínio é de que “se o sistema carcerário é desumano, dominado por facções criminosas, estado de coisas inconstitucional nos dizeres do STF, é justo que todos os apenados se submetam ao mesmo grau de suplício”. Isso é muito distante do conceito de “justo”, é um imperativo de igualdade em patamares inconstitucionais.
Em segundo lugar, isso é muito distante da realidade. Tremembé é cana dura, para utilizar o jargão. De fato, não há superlotação, não há facções dominantes, há vagas de trabalho para todos. Mas na mesma medida existe uma disciplina que deixa muito claro que a fama fica do lado de fora (entre tantos famosos, você é só mais um) e que a qualquer falta o cidadão pode ser enviado para qualquer outro presídio do estado.
Some-se a isso o fato de que há maior controle do Estado sobre os apenados (isso explica porque, além de ricos e famosos, a fauna local é composta dos apenados pelos crimes mais hediondos) e maior infraestrutura da penitenciária para lidar com o assédio da imprensa e de populares.
Sobre esse argumento, vale lembrar o episódio recente da prisão do cantor MC Poze do Rodo no Rio de Janeiro: quando sua prisão preventiva foi revogada e ele obteve um alvará de soltura, os fãs foram para a porta do Centro de Detenção Provisória e travaram o trânsito da cidade.
Por fim, vale sempre lembrar que “presos-celebridade”, seja por serem ricos, famosos, seus crimes serem notórios ou hediondos, são a maior vitrine do sistema prisional. Garantir que cumpram pena em ambientes disciplinados, sem violência, extorsão ou assédio da imprensa é civilizatório – e comunica para a sociedade um sistema eficaz e impessoal.
Tremembé em São Paulo, Benfica ou Bangu 8 no Rio de Janeiro, Papuda em Brasília: são necessários mais presídios como esses famosos — e não menos. E olha que nenhum desses preencheria todos os requisitos do dicionário Houaiss para o verbete “salubre”.
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