Este artigo tem o objetivo de demonstrar que os dispositivos introduzidos pela Lei 14.229/2021 ao Código de Trânsito Brasileiro (CTB), no que tange especificamente à prescrição intercorrente da pretensão punitiva da administração sancionadora nas infrações de trânsito, retroagem para beneficiar o condutor infrator.
O Capítulo XVII do CTB cuida das medidas administrativas no âmbito do exercício estatal do poder de polícia administrativa.
Situação hipotética em que se discuta a legalidade de auto de infração de trânsito, cujo objeto seja as sanções administrativas impostas à conduta subsumida a qualquer tipo infracional do CTB, encontrar-se-á submetida ao Regime Jurídico Especial do Direito Administrativo Sancionador, expressão do efetivo jus puniendi estatal, e, como tal, deverá ser resolvida segundo sua principiologia, de extração eminentemente constitucional.
É dizer: todo o procedimento fiscalizatório de trânsito e os atos administrativos, de que são exemplo o auto de infração e as notificações, exarados no seu curso, da abordagem policial à imposição das penalidades administrativas, devem obediência e devem ser interpretados de acordo com um sistema de garantias constitucionais que em muito se assemelham àquelas previstas para o direito penal, cuja premissa básica é a hipossuficiência do administrado infrator face à administração pública.
Não é outro o entendimento, há muito consolidado no Superior Tribunal de Justiça, que, em julgados prolatados pelas Turmas da 1ª Seção, sempre assentou:
“[À] atividade sancionatória ou disciplinar da Administração Pública se aplicam os princípios, garantias e normas que regem o Processo Penal comum, em respeito aos valores de proteção e defesa das liberdades individuais e da dignidade da pessoa humana, que se plasmaram no campo daquela disciplina (RMS 24.559/PR, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, 5ª Turma, DJe 01/02/2010)”.
“[O] princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, insculpido no art. 5º, XL, da Constituição da República, alcança as leis que disciplinam o direito administrativo sancionador” (RMS 37.031/SP, 1ª Turma, Rel. Min. Regina Helena Costa, DJe 20/02/2018)”.
“PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015. APLICABILIDADE. RETROATIVIDADE DA LEI MAIS BENÉFICA. POSSIBILIDADE. ART. 5º, XL, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. PRINCÍPIO DO DIREITO SANCIONATÓRIO. ARGUMENTOS INSUFICIENTES PARA DESCONSTITUIR A DECISÃO ATACADA. APLICAÇÃO DE MULTA. ART. 1.021, § 4º, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015. DESCABIMENTO. I (…). II – O art. 5º, XL, da Constituição da República prevê a possibilidade de retroatividade da lei penal, sendo cabível extrair-se do dispositivo constitucional princípio implícito do Direito Sancionatório, segundo o qual a lei mais benéfica retroage no caso de sanções menos graves, como a administrativa. Precedentes. (…)” (AgInt no REsp 2.024.133/ES, 1ª Turma, Rel. Min. Regina Helena Costa, DJe 16/03/2023)”.
“PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. ATOS ADMINISTRATIVOS. AÇÃO ANULATÓRIA. (…) A aplicação do princípio geral de direito sancionador da retroatividade de lei mais benéfica (que pode ser extraído do art. 5º, XL, da CRFB/88 e do art. 9º do Pacto de São José da Costa Rica) é matéria de ordem pública, que poderia ser conhecida até mesmo de ofício por este Tribunal, na medida em que o pedido de afastamento da multa imposta abrange a possibilidade de redução da sanção. (…)” (AgInt no REsp 2.111.400/ES, 2ª Turma, DJe 12/06/2024).
Veja-se que as duas Turmas da 1ª Seção do STJ têm entendimento unânime acerca da aplicação dos princípios e vetores do Direito Penal ao Direito Administrativo Sancionador, razão pela qual se trata de entendimento consolidado da Corte Cidadã.
Destarte, é possível se extrair a primeira conclusão de que o requisito Forma do ato administrativo sancionador, previsto no artigo 2º, ‘b’, parágrafo único, ‘b’, da Lei 4.717/65 (Lei da Ação Popular) traduz-se em verdadeira garantia fundamental do administrado infrator de trânsito no que tange à hermenêutica aplicada ao procedimento fiscalizatório de trânsito e aos respectivos autos de infração e notificações que manifestam o exercício do direito punir da administração em sede de direito de trânsito sancionador.
Numa frase: forma é garantia no Direito Sancionador, de sorte que a interpretação dos requisitos formais do procedimento de fiscalização de trânsito e dos autos de infração e notificações respectivos não pode fugir da estrita objetividade e, por vezes, da literalidade das disposições contidas no Código Brasileiro de Trânsito e nas Resoluções do Contran sobre o tema.
Da superveniência de norma nacional de prescrição intercorrente administrativa
De início, gize-se que o ordenamento jurídico brasileiro alberga, de modo geral, o princípio tempus regit actum, dessumido da interpretação do artigo 5º, XXXVI, da Constituição, no sentido de que se aplica a norma de direito material vigente à época da ocorrência do fato gerador da situação jurídica cuidada pela norma. Tal princípio se encontra igualmente positivado no artigo 6º, caput, da Lindb.

No que tange, especificamente, à esfera do Direito Sancionador, tal norma é extraível do artigo 4º do Código Penal, que trata do tempo do crime e consagra a Teoria da Atividade.
É dizer: o direito material vigente na época em que praticada a infração (administrativa ou penal) será aplicável pelo Estado no exercício do seu jus puniendi.
Considere-se, hipoteticamente, que a infração de trânsito tenha ocorrido antes de 21 de outubro de 2021, ano de publicação da referida lei 14.229, atraindo, em princípio, no que tange à prescrição intercorrente, a regulação pela redação originária dos seguintes dispositivos do CTB.
Interpretando tais dispositivos normativos, a jurisprudência brasileira, seja dos tribunais locais, seja dos tribunais superiores, sempre rechaçou, em uníssono, a existência da prescrição intercorrente no processo administrativo de apuração de infrações.
Entendia-se, por um lado, que o Decreto 20.910/32 não regulava a prescrição intercorrente administrativa, e por outro lado, que a Lei 9.873/99, que trata da prescrição intercorrente administrativa, não era aplicável em âmbito estadual e municipal, ao argumento de que se restringia à esfera federal.
Vejam-se, exemplificativamente, as seguintes ementas que ilustram o quanto acima afirmado:
“3. A solução adotada no acórdão recorrido se amolda à jurisprudência desta Corte de Justiça, ao entender que o art. 1º. do Decreto 20.910/1932 regula somente a prescrição quinquenal, não havendo previsão acerca de prescrição intercorrente, prevista apenas na Lei 9.873/1999, que, conforme entendimento do Superior Tribunal de Justiça, não se aplica às ações administrativas punitivas desenvolvidas por Estados e Municípios, em razão da limitação do âmbito espacial da lei ao plano federal” (AgInt no REsp 2.020.038/SP, 1ª Turma, DJe 26/04/2023).
“2. Quanto ao mais, o acórdão recorrido está em consonância com a jurisprudência desta Corte, que perfilha o entendimento no sentido de que o art. 1º do Decreto 20.910/1932 regula somente a prescrição quinquenal, não havendo previsão acerca de prescrição intercorrente, prevista apenas na Lei 9.873/1999, que não é aplicável às ações administrativas punitivas desenvolvidas por Estados e Municípios, em razão da limitação do âmbito espacial da lei ao plano federal” (AgInt no AREsp 1.861.799/SP, 2ª Turma, DJe 22/09/2022).
Em síntese, enquanto vigeu a redação originária dos artigos 285, 288 e 289 do CTB, não havia prescrição intercorrente da pretensão punitiva administrativa no direito brasileiro.
Sucede que adveio ao ordenamento jurídico pátrio a Lei 14.229, de 21 de outubro de 2021, que alterou profundamente o Direito do Trânsito no Brasil, passando a admitir, expressamente e em âmbito nacional, a prescrição intercorrente da pretensão punitiva administrativa, ao incluir, notadamente, o artigo 289-A no CTB.
Eis a redação atual dos artigos 285, 288, 289 e 289-A do CTB:
“Art. 285. O recurso contra a penalidade imposta nos termos do art. 282 deste Código será interposto perante a autoridade que imputou a penalidade e terá efeito suspensivo.
§ 1º O recurso intempestivo ou interposto por parte ilegítima não terá efeito suspensivo.
§ 2º Recebido o recurso tempestivo, a autoridade o remeterá à Jari, no prazo de 10 (dez) dias, contado da data de sua interposição.
§ 3º (Revogado).
§ 4º Na apresentação de defesa ou recurso, em qualquer fase do processo, para efeitos de admissibilidade, não serão exigidos documentos ou cópia de documentos emitidos pelo órgão responsável pela autuação.
§ 5º O recurso intempestivo será arquivado.
§ 6º O recurso de que trata o caput deste artigo deverá ser julgado no prazo de 24 (vinte e quatro) meses, contado do recebimento do recurso pelo órgão julgador.
(…)
Art. 288. Das decisões da Jari cabe recurso a ser interposto, na forma do artigo seguinte, no prazo de trinta dias contado da publicação ou da notificação da decisão.
§ 1º O recurso será interposto, da decisão do não provimento, pelo responsável pela infração, e da decisão de provimento, pela autoridade que impôs a penalidade.
Art. 289. O recurso de que trata o art. 288 deste Código deverá ser julgado no prazo de 24 (vinte e quatro) meses, contado do recebimento do recurso pelo órgão julgador:
I – tratando-se de penalidade imposta por órgão ou entidade da União, por colegiado especial integrado pelo Coordenador-Geral da Jari, pelo Presidente da Junta que apreciou o recurso e por mais um Presidente de Junta;
II – tratando-se de penalidade imposta por órgão ou entidade de trânsito estadual, municipal ou do Distrito Federal, pelos CETRAN E CONTRANDIFE, respectivamente.
Parágrafo único. No caso do inciso I do caput deste artigo:
I – quando houver apenas 1 (uma) Jari, o recurso será julgado por seus membros;
II – quando necessário, novos colegiados especiais poderão ser formados, compostos pelo Presidente da Junta que apreciou o recurso e por mais 2 (dois) Presidentes de Junta, na forma estabelecida pelo Contran.
Art. 289-A. O não julgamento dos recursos nos prazos previstos no § 6º do art. 285 e no caput do art. 289 deste Código ensejará a prescrição da pretensão punitiva”.
Veja-se que tais dispositivos têm sua redação dada ou incluída pela Lei 14.229, que é de 2021. No entanto, por força do disposto no artigo 7º, II, desta lei, a eficácia de tais alterações e, especialmente, a eficácia da inclusão da prescrição intercorrente administrativa, agora por uma norma de abrangência nacional de aplicabilidade direta e imediata, foi diferida para 1/1/2024:
“Art. 7º Esta Lei entra em vigor:
I – na data de sua publicação, quanto aos arts. 1º, 3º, 4º e 5º, ao inciso I do art. 6º, às alterações do art. 2º aos arts. 131, 271 e 282 e, também no art. 2º, à inclusão do art. 338-A na Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997 (Código de Trânsito Brasileiro);
II – em 1º de janeiro de 2024, quanto às alterações ao caput do art. 289 da Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997 (Código de Trânsito Brasileiro), e quanto aos acréscimos do § 6º ao art. 285 e do art. 289-A ao referido Código, todos do art. 2º desta Lei;
III – após decorridos 180 (cento e oitenta) dias de sua publicação oficial, quanto aos demais dispositivos.”
É dizer: o instituto jurídico da prescrição intercorrente da pretensão punitiva administrativa foi positivado no ordenamento jurídico brasileiro de trânsito pela Lei 14.229/21, e, nos termos do artigo 7º, II, entrou em vigor em 1º de janeiro de 2024.
No que tange ao caso hipotético trazido à baila, a infração de trânsito ocorreu antes de 21 de outubro de 2021.
Uma interpretação açodada do princípio tempus regit actum levaria à conclusão de que o direito material vigente à época do fato delitivo, a saber, a redação originária dos artigos 285, 288 e 289 do CTB e a respectiva exegese dos tribunais, no sentido de não haver prescrição intercorrente nos processos administrativos sancionadores estaduais e municipais, deveriam ser integralmente aplicados para sua solução.
Entretanto, diferentemente do que ocorre no âmbito cível, no âmbito do Direito Sancionador o tempus regit actum é excepcionado pela possibilidade de retroação da lei, posterior à infração, benéfica ao infrator, nos termos do inciso XL do artigo 5º da Constituição.
Tal é o entendimento consolidado do STJ, conforme antes referido, acrescentando-se agora outros acórdãos da 1ª Seção no mesmo sentido:
“II – As condutas atribuídas ao Recorrente, apuradas no PAD que culminou na imposição da pena de demissão, ocorreram entre 03.11.2000 e 29.04.2003, ainda sob a vigência da Lei Municipal n. 8.979/79. Por outro lado, a sanção foi aplicada em 04.03.2008 (fls. 40/41e), quando já vigente a Lei Municipal n. 13.530/03, a qual prevê causas atenuantes de pena, não observadas na punição. III – Tratando-se de diploma legal mais favorável ao acusado, de rigor a aplicação da Lei Municipal n. 13.530/03, porquanto o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, insculpido no art. 5º, XL, da Constituição da República, alcança as leis que disciplinam o direito administrativo sancionador. Precedente. IV – Dessarte, cumpre à Administração Pública do Município de São Paulo rever a dosimetria da sanção, observando a legislação mais benéfica ao Recorrente, mantendo-se indenes os demais atos processuais” (RMS 37.031/SP, 1ª Turma, DJe 20/02/2018).
“2. O processo administrativo disciplinar é uma espécie de direito sancionador. Por essa razão, a Primeira Turma do STJ declarou que o princípio da retroatividade mais benéfica deve ser aplicado também no âmbito dos processos administrativos disciplinares. À luz desse entendimento da Primeira Turma, o recorrente defende a prescrição da pretensão punitiva administrativa” (AgInt no RMS 65.486/RO, 2ª Turma, DJe 26/08/2021).
Ademais, o advento da prescrição da pretensão punitiva ou executória configura causa de extinção da punibilidade do agente infrator, na forma do que dispõe o artigo 107, IV, do Código Penal, verbis:
“Art. 107 – Extingue-se a punibilidade:
IV – pela prescrição, decadência ou perempção”.
A hipótese, portanto, traduz situação em que uma norma de direito material que estabelece prescrição intercorrente no âmbito administrativo de infrações de trânsito entra em vigor após o cometimento da infração, devendo, nos termos expostos acima, retroagir para beneficiar o infrator, extinguindo sua punibilidade.
Em outras palavras, a partir de 1º de janeiro de 2024, a norma jurídica nacional que inseriu a prescrição intercorrente da pretensão punitiva administrativa no Direito do Trânsito brasileiro deve retroagir e ser aplicada às infrações administrativas ocorridas antes daquela data.
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