O governo brasileiro conseguiu transformar um tema técnico em um incidente diplomático. O Projeto de Lei nº 4.675/2025, que cria regras específicas para grandes plataformas digitais, inspiradas no modelo europeu do Digital Markets Act, reacendeu tensões com os Estados Unidos em plena negociação tarifária.
O texto, relatado pelo deputado Aliel Machado (PV-PR), altera a Lei 12.529/2011, que organiza o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência e define as competências do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).

O projeto não institui novos tributos nem amplia a carga fiscal. Seu conteúdo é regulatório, e não arrecadatório. Propõe que o Cade possa designar determinadas empresas como agentes de “relevância sistêmica” e submetê-las a obrigações específicas de transparência, interoperabilidade e neutralidade. A intenção declarada é modernizar a política de defesa da concorrência e prevenir abusos antes que eles ocorram.
A questão não está no mérito técnico, mas no momento político. O texto havia sido apresentado em setembro e tramitava discretamente até que, no início de novembro, o governo decidiu pedir urgência para sua votação. O simples gesto bastou para acender o alerta em Washington. O anúncio de que o Brasil poderia aprovar ainda este ano uma lei semelhante ao DMA europeu, em meio a uma rodada de negociações tarifárias com os Estados Unidos, foi interpretado como sinal de desalinhamento estratégico.
Estados Unidos reagem
A reação americana não demorou. No dia 10 de novembro, o deputado Scott Fitzgerald, republicano de Wisconsin, publicou nota pública expressando “choque” com o avanço do projeto. Afirmou que o Brasil estaria “mirando empresas americanas” e declarou apoio à postura do presidente dos Estados Unidos contra legislações que, segundo ele, prejudicam a inovação e distorcem o comércio internacional. Poucos dias depois, fontes do Office of the U.S. Trade Representative confirmaram à imprensa que o governo americano está acompanhando o caso “com preocupação”.
O contexto é particularmente delicado. O Brasil tenta negociar a redução de tarifas sobre produtos industriais e agrícolas e, ao mesmo tempo, busca atrair investimentos americanos em semicondutores e infraestrutura digital. Apresentar, nesse cenário, um projeto de lei que impõe novas restrições às mesmas empresas que o País tenta seduzir é um erro de cálculo evidente. Mesmo que a motivação seja puramente técnica, a percepção internacional é a de um país que fala em cooperação enquanto adota medidas unilaterais de controle.
Há ainda o risco de sobreposição regulatória. O projeto cria uma Superintendência de Mercados Digitais dentro do Cade, mas temas como proteção de dados, transparência algorítmica e relações de consumo já são fiscalizados por outros órgãos, entre eles a ANPD, a Anatel e a Senacon. O resultado provável é uma multiplicação de esferas de poder sobre o mesmo conjunto de condutas, o que amplia a insegurança jurídica e mina o próprio objetivo de previsibilidade que o governo diz perseguir.
A mudança conceitual é igualmente profunda. A Lei 12.529/2011 sempre foi estruturada sobre a lógica da conduta e do efeito econômico. O Estado só intervém depois de demonstrado o abuso de posição dominante. O novo modelo antecipa a punição. Ele transforma o tamanho da empresa em fator de risco presumido e o poder econômico em infração potencial. O problema é que, ao importar o modelo europeu, o Brasil ignora que a União Europeia dispõe de uma arquitetura institucional que nós ainda não temos. Lá, as regras são aplicadas por órgãos especializados e sob controle judicial consolidado. Aqui, corremos o risco de entregar ao Estado um poder de intervenção tão amplo quanto impreciso.
Faltou debate com a sociedade
A pressa agrava tudo. O governo poderia ter conduzido o debate em fórum técnico, com participação da sociedade e do setor privado. Preferiu tomar um caminho diferente e se antecipar. Em política internacional, o tempo é também uma linguagem. Acelerando o projeto justamente enquanto negocia tarifas e acordos de cooperação com os Estados Unidos, o Brasil passou a mensagem errada, qual seja, a de que não tem estratégia nem coordenação entre suas próprias frentes de governo.
A regulação das plataformas digitais pode ser inevitável e até necessária. Mas o modo e o momento importam tanto quanto o conteúdo. Uma iniciativa que poderia ser lida como sinal de maturidade institucional acabou sendo interpretada como gesto de hostilidade. Em diplomacia econômica, o mérito técnico raramente sobrevive ao erro de timing.
O Brasil tem direito de regular seus mercados, mas deveria saber escolher as batalhas e o instante em que as trava. Há momentos em que o silêncio produz mais resultados do que a pressa. E talvez este fosse um deles.
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