O Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep), instituído pela Lei Complementar nº 8/1970, nasceu com a promessa de constituir um fundo progressivo em favor dos servidores públicos, civis e militares, da União, dos estados, do Distrito Federal, dos municípios e de suas entidades da administração indireta. A pedra angular do programa estava na constituição de um patrimônio acumulado ao longo do vínculo funcional, que deveria ser administrado com transparência e rigor técnico.
O diploma legal foi expresso nesse sentido. O artigo 4º da LC nº 8/1970 determinava que as contribuições recebidas pelo Banco do Brasil seriam distribuídas entre todos os servidores em atividade, enquanto o artigo 5º atribuiu ao próprio banco a responsabilidade pela administração do programa e pela manutenção de contas individualizadas para cada participante, inclusive com direito à percepção de comissão pelos serviços prestados. Ou seja, desde o início, o Banco do Brasil não atuava como mero repassador de recursos, mas como gestor remunerado, incumbido de guardar, movimentar e prestar contas com clareza e precisão.
Posteriormente, a Lei Complementar nº 26/1975 promoveu a unificação do Pasep com o PIS, criando o Fundo PIS-Pasep. A norma assegurou expressamente que a unificação não afetaria os saldos individuais existentes até 30 de junho de 1976, preservando o patrimônio acumulado e mantendo os critérios de saque, entre os quais aposentadoria, reserva remunerada e invalidez. Mais tarde, a Constituição de 1988, em seu artigo 239, redefiniu a destinação dos recursos, direcionando-os para o custeio do seguro-desemprego, do abono salarial e para o financiamento de programas de desenvolvimento econômico via BNDES, mas novamente preservando o direito adquirido daqueles que já tinham valores constituídos em contas individuais.
Entretanto, a realidade enfrentada por milhares de servidores em juízo revela um cenário oposto ao ideal normativo. Os extratos fornecidos pelo Banco do Brasil, muitas vezes, apresentam-se incompletos, fragmentados e incapazes de demonstrar a integralidade dos depósitos, das correções monetárias e dos rendimentos. Essa opacidade impossibilita uma análise aprofundada do histórico financeiro, impedindo que o titular da conta tenha ciência efetiva de seu patrimônio. O que deveria ser exemplo de transparência e eficiência transformou-se em motivo de judicialização em massa.
A controvérsia chegou ao Superior Tribunal de Justiça e foi reconhecida como de caráter repetitivo. Nos Recursos Especiais 2.162.222/PE, 2.162.223/PE, 2.162.198/PE e 2.162.323/PE, afetados como representativos de controvérsia, a corte fixou como Tema 1.300 a seguinte questão: “Saber a qual das partes compete o ônus de provar que os lançamentos a débito nas contas individualizadas do Pasep correspondem a pagamentos ao correntista”.
A relatora, ministra Maria Thereza de Assis Moura, determinou a suspensão nacional de todos os processos pendentes que tratam do tema, nos termos do artigo 1.037, II, do CPC, revelando a magnitude da questão e o potencial impacto da decisão que vier a ser proferida. Afinal, está em jogo não apenas a restituição de valores a um servidor isolado, mas a definição de parâmetros para milhares de ações espalhadas pelo território nacional.
Nesse contexto, ganha relevo a discussão acerca da inversão do ônus da prova. O artigo 373, §1º, do CPC estabelece a possibilidade de distribuição dinâmica do encargo probatório, atribuindo-o à parte que detém melhores condições de produzi-lo. No caso do Pasep, não há dúvidas: o Banco do Brasil é quem possui acesso privilegiado aos documentos essenciais, extratos completos, registros de depósitos, comprovantes de saques e memória de cálculos.

O desequilíbrio processual é evidente. De um lado, um servidor público que, na maioria das vezes, não dispõe de meios para resgatar documentos de décadas passadas; de outro, uma instituição financeira de grande porte, com estrutura tecnológica e jurídica capaz de armazenar e disponibilizar todas as informações. Essa disparidade justifica não apenas a inversão do ônus da prova, mas também a imposição de dever de colaboração à parte demandada, sob pena de se perpetuar uma injustiça sistêmica.
Direito não pode se curvar à opacidade bancária
Ademais, a questão deve ser analisada também sob o prisma constitucional. O direito de acesso à informação, insculpido no artigo 5º, XXXIII, da Constituição, não pode ser esvaziado quando o cidadão busca conhecer os detalhes de seu próprio patrimônio. A recusa ou entrega parcial de dados constitui afronta direta a esse mandamento, além de configurar violação aos princípios da boa-fé objetiva e da confiança legítima.
O que se observa, portanto, não é apenas a supressão de valores monetários de contas vinculadas, mas a negação de instrumentos para aferir a verdade. Isso agrava a responsabilidade do Banco do Brasil, que, remunerado para administrar o Pasep, tem o dever jurídico de manter registros fidedignos e acessíveis.
O debate em torno do Tema 1.300 do STJ representa, em última análise, a oportunidade de corrigir uma distorção histórica. Caso a corte reconheça que incumbe ao Banco do Brasil provar a regularidade dos lançamentos a débito, estará não apenas assegurando justiça individual, mas também reafirmando a lógica de proteção à parte hipossuficiente e ao princípio da transparência, pilares fundamentais do processo civil contemporâneo.
Enquanto isso, nos processos em curso, impõe-se ao Judiciário determinar a juntada, pela instituição financeira, de toda a documentação pertinente extratos, comprovantes de depósitos e de saques como medida de reequilíbrio processual e garantia mínima do contraditório. A inversão do ônus da prova, aqui, não é privilégio: é instrumento de justiça.
Em conclusão, a história do Pasep revela a distância entre a letra da lei e a prática da gestão. O programa foi concebido para formar patrimônio e garantir segurança financeira aos servidores; transformou-se, todavia, em fonte de litígios e frustrações. O Direito não pode se curvar à opacidade bancária. Cabe ao STJ, e ao Judiciário como um todo, reafirmar que a transparência, a boa-fé e a proteção do cidadão não são concessões, mas deveres inafastáveis de quem administra patrimônio alheio.
Referências
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