O Código Penal Militar (CPM), Decreto-Lei nº 1.001/1969, foi elaborado sob uma lógica antecedente a atual Constituição, voltada à proteção rígida da hierarquia e da disciplina como valores absolutos. Com o advento da Carta Magna de 1988, instaurou-se um novo paradigma normativo baseado na dignidade da pessoa humana, na proporcionalidade e na limitação do poder punitivo estatal.
Entretanto, passadas mais de três décadas de vigência da ordem constitucional democrática, o CPM ainda carrega dispositivos que não se harmonizam com tais princípios, gerando tensões interpretativas e decisões judiciais desproporcionais. Entre essas discrepâncias, destaca-se o tratamento desigual entre o furto simples e o furto de uso, que evidencia um problema estrutural mais profundo: a ausência de coerência material entre tipo penal, bem jurídico e intensidade da resposta estatal.
O princípio da insignificância no Direito Penal Militar
O princípio da insignificância, corolário dos postulados da intervenção mínima e da ofensividade, visa afastar a tipicidade material de condutas cuja lesão ao bem jurídico é irrelevante. Consolidado pelo Supremo Tribunal Federal (HC 84.412/SP, relator: ministro Celso de Mello), o instituto opera como filtro constitucional do Direito Penal.
No âmbito do Direito Penal Militar, embora parte da doutrina tradicional sustentasse a inaplicabilidade da bagatela em razão da prevalência dos valores de hierarquia e disciplina, a jurisprudência contemporânea, bem como outra parte da doutrina evoluiu para admitir sua incidência.
Curiosamente, o próprio CPM positivou a lógica da insignificância no artigo 240, §1º, ao permitir que, em caso de furto simples de pequeno valor praticado por agente primário, o juiz possa:
a) substituir a pena de reclusão por detenção;
b) reduzi-la de 1 a 2/3;
c) ou considerar a conduta como mera infração disciplinar.
Trata-se de inequívoco reconhecimento legislativo de que o Direito Penal deve se retrair diante de danos patrimoniais insignificantes — ainda que cometidos em ambiente militar.
O paradoxo normativo entre o furto simples e o furto de uso

O contraste entre os artigos 240 e 241 do CPM, revela uma incongruência evidente.
O artigo 240, que tipifica o furto simples, descreve conduta relativamente grave, envolvendo dolo de assenhoramento definitivo e pena de reclusão de até 6 anos. Ainda assim, admite amplas possibilidades de despenalização quando o valor é ínfimo.
Já o artigo 241, que trata do furto de uso, descreve comportamento menos reprovável, pois não há intenção de subtração permanente. O agente limita-se a utilizar temporariamente o bem, com ânimo de restituição imediata.
Todavia, no furto de uso:
1) há previsão de insignificância;
2) não se admite conversão da conduta em infração disciplinar;
3) o parágrafo único ainda aumenta a pena quando o objeto envolve veículo, embarcação, aeronave ou arma.
Em síntese: o crime mais grave (furto simples) admite despenalização; o menos grave (furto de uso), não.
Essa incoerência viola, principalmente, o princípio da proporcionalidade (CF, artigo 5º, LIV), a ofensividade (ausência de lesão significativa ao bem jurídico), a razoabilidade, enquanto limite ao poder punitivo.
A incongruência não é meramente técnico-dogmática: produz reflexos práticos, levando à persecução penal rígida de comportamentos de reduzida reprovabilidade.
A necessidade de revisão e harmonização constitucional do CPM
A permanência dessas incongruências reforça a necessidade de reforma ampla do Código Penal Militar, com vistas a:
– harmonizar seus dispositivos aos princípios constitucionais;
– readequar a proporcionalidade das penas;
– atualizar sua parte especial segundo critérios contemporâneos de política criminal;
– fortalecer a coerência interna do sistema castrense.
A tutela da hierarquia e disciplina não pode servir de pretexto para manter práticas punitivas desproporcionais ou incompatíveis com o Estado Democrático de Direito.
Conclusão
O contraste entre o furto simples e o furto de uso evidencia inconsistências estruturais no Código Penal Militar que comprometem a coerência normativa e afrontam princípios constitucionais. A desproporção das respostas penais, aliada à ausência de filtros materiais como a insignificância, reforça a necessidade de revisão sistemática do CPM.
O Direito Penal Militar deve ser excepcional, restrito e constitucionalmente orientado — jamais um espaço de endurecimento indiscriminado. A modernização da legislação castrense é imperativa para assegurar proporcionalidade, racionalidade e respeito aos direitos fundamentais dos militares.
Referências bibliográficas:
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
BRASIL. Código Penal Militar. Decreto-lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969.
Supremo Tribunal Federal. HC: 84412 SP, Relator.: CELSO DE MELLO, data de julgamento: 19/10/2004, 2ª Turma, data de publicação: DJ 19-11-2004.
Supremo Tribunal Federal. HC: 188494 SP 0097879-20.2020.1.00.0000, relator.: ROSA WEBER, Data de Julgamento: 8/2/2022, 1ª Turma, Data de Publicação: 23/02/2022
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