A Lei Complementar nº 219/2025 reorganizou profundamente o regime jurídico das inelegibilidades no sistema eleitoral brasileiro. O propósito foi de corrigir distorções derivadas da multiplicação de ações de improbidade administrativa baseadas em um mesmo conjunto fático. Essa fragmentação processual vinha produzindo, na prática, sanções sucessivas e cumulativas para um único núcleo de condutas, criando efeitos de interdição política indefinida, e que são incompatíveis com a Constituição, com os postulados da democracia e com paradigmas de razoabilidade.
A nova redação da alínea “l” do artigo 1º, I, da LC nº 64/1990 passou a prever que a inelegibilidade decorrente de condenação por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao erário e enriquecimento ilícito incide desde a condenação por órgão colegiado até o transcurso de oito anos. A norma conferiu maior objetividade e previsibilidade à contagem do prazo de restrição, eliminando as incertezas que antes permitiam múltiplos reinícios de contagem a cada sentença confirmatória ou a cada ação paralela sobre o mesmo fato.
Em reforço, o § 4º-D da mesma lei fixou que outras ações ajuizadas com base nos mesmos fatos, ou em fatos conexos, não geram nova restrição à elegibilidade, ainda que resultem em sanções mais gravosas. Essa diretriz impede que o fracionamento de processos ou a replicação de núcleos probatórios se convertam em instrumentos de prolongamento artificial da inelegibilidade, garantindo coerência entre o conteúdo da sanção e o princípio constitucional da vedação ao bis in idem.
Dessa forma, o marco inicial do período de inelegibilidade é a primeira condenação colegiada relevante. A partir daí, inicia-se o ciclo de oito anos de restrição, o qual se esgota com o decurso do prazo, independentemente de novas condenações referentes aos mesmos fatos. Essa leitura preserva os princípios da proporcionalidade, da temporariedade das sanções e da segurança jurídica, evitando que o cidadão seja afastado da vida política por décadas em virtude de uma única conduta pretérita.
Mesmo que se admitisse, por hipótese, uma interpretação mais gravosa, o § 8º da LC nº 64/1990, introduzido pela LC nº 219/2025, fixou um teto máximo de 12 anos de restrição nos casos de acúmulo de ações conexas que afetem a capacidade eleitoral passiva. O legislador complementar reconheceu, assim, que a soma indefinida de prazos de inelegibilidade equivaleria, na prática, a uma pena de caráter perpétuo, vedada pelo artigo 5º, XLVII, “b”, da Constituição.
Esse entendimento dialoga diretamente com o artigo 11, § 10, da Lei nº 9.504/1997, que dispõe que a aferição das condições de elegibilidade e das causas de inelegibilidade deve ocorrer no momento do registro de candidatura. Portanto, a análise da elegibilidade não se dá retroativamente, mas de forma prospectiva e atual, considerando o regime jurídico vigente no ciclo eleitoral correspondente.
Posição da AGU
A Advocacia-Geral da União, em parecer apresentado na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7.881, sustentou que as inovações da LC nº 219/2025 não reduziram a tutela constitucional da moralidade administrativa, tampouco vulneraram o controle de idoneidade dos candidatos. Houve uma racionalização do sistema de inelegibilidades, impedindo que múltiplas ações baseadas em um mesmo conjunto de fatos gerassem restrições sucessivas, com evidente violação à razoabilidade.

A AGU enfatizou, ainda, que o veto presidencial exercido durante a sanção da lei teve natureza de controle preventivo de constitucionalidade, voltado a suprimir dispositivos que previam retroatividade automática e relativização da coisa julgada, sem alterar o núcleo normativo que unificou condenações conexas e fixou limite temporal.
Com isso, o regime atual aplica-se de forma prospectiva, incidindo sobre as situações analisadas no momento do pedido de registro de candidatura. O veto não repristinou a legislação anterior nem reabriu a contagem sucessiva de prazos, apenas impediu que a lei nova alcançasse decisões transitadas em julgado sob o regime anterior. Assim, permanecem válidas as diretrizes da LC nº 219/2025: unificação de condenações conexas, contagem única de prazo e teto temporal máximo.
Ciclo da sanção
Sob a perspectiva constitucional, esse novo desenho normativo é inteiramente coerente com o Estado Democrático de Direito. O sistema constitucional brasileiro proíbe punições políticas de caráter perpétuo, exige racionalidade na aplicação das sanções e assegura o direito de reabilitação após o cumprimento integral dos efeitos legais. As inelegibilidades têm natureza sancionatória, devendo respeitar os princípios da proporcionalidade, da razoabilidade e da temporariedade.
Permitir que a multiplicidade de processos referentes a um mesmo fato produza efeitos sancionatórios sucessivos significaria transformar uma restrição temporária em banimento político permanente, uma solução que é vedada pela Constituição. A democracia pressupõe a possibilidade de reintegração do cidadão à vida pública, após cumprido o prazo legalmente previsto, restituindo ao eleitor o poder soberano de decidir sobre o retorno de determinado agente ao debate político.
Transcorrido o período de oito anos a contar da primeira condenação colegiada, ou, alternativamente, o teto de doze anos previsto no § 8º da LC nº 64/1990, não subsiste qualquer impedimento jurídico à capacidade eleitoral passiva do cidadão. O ciclo sancionatório se encerra, devolvendo à soberania popular o papel exclusivo de julgar politicamente a legitimidade de sua candidatura.
Ao impedir a perpetuação das sanções, resguardar a moralidade administrativa sem sacrificar a proporcionalidade, assegurar a estabilidade do sistema eleitoral e impedir abusos oriundos de fracionamentos processuais, a LC nº 219/2025 reafirma um postulado essencial do constitucionalismo republicano: sanções têm começo, meio e fim. Cumprido o prazo, cabe novamente ao eleitor decidir, de forma livre e consciente, o destino político de quem busca participar do processo democrático.
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