Cinco da manhã. Ruídos estranhos na sala concorrem com os reflexos de giroflex — aquelas luzes giratórias das viaturas de polícia. As crianças dormem no quarto ao lado. Os ruídos aumentam. Pelo vitrô, você tenta entender o que acontece.

Basílica Nossa Senhora do Rosário, em Embu (SP), é conhecida como basílica dos Arautos do Evangelho
A visão não poderia ser mais aterradora. Dezenas de agentes vestidos como astronautas e metralhadoras na mão. Viaturas com os faróis altos. E policiais que parecem brotar do asfalto. Eles já sabem o que fazer. Invadem a casa munidos de avidez e de um papel que a tudo parece justificar. Um documento mandatório e suficiente, desses que sempre são tirados do colete em operações “autorizadas” de estados policiais.
Agentes vasculham ambientes, esvaziam armários, arrancam gavetas, invadem computadores, e depois de horas de trabalho inútil, só conseguem achar a frustração.
Agora, tudo o que podem levar são pessoas. É muito pouco para eles.
Ações kafkianas como a que acabo de descrever têm sido, infelizmente, muito comuns, e guardam semelhanças — se não na forma, no espírito destes tempos — com a história que quero contar, seguida de uma reflexão necessária.
Comecemos com uma leitura, vamos nos debruçar sobre o livro “O Comissariado dos Arautos do Evangelho: Crônica dos fatos 2017-2025, punidos sem diálogo, sem provas, sem defesa”. Cuidado com ele! Esse livro me destruiu toda uma noite!
Passei em claro a noite, porque não conseguia parar de ler. É uma narração seca de fatos, mas parece uma novela. De primeira ordem, com todos os requisitos para ganhar o prêmio de melhor romance judicial, tal o emaranhado de insídias, injustiças e fraudes desembainhadas contra os Arautos do Evangelho. Seria até uma obra-prima de ficção se não fosse um relato de fatos reais e comprovados.
É apaixonante! E a primeira paixão que surge é a da ira (acho até que faria bem para temperamentos apáticos). É um tal cúmulo de ilegalidades que o sangue começa a correr do avesso. Quer ver?
Imagine-se o leitor sendo preso de surpresa pela polícia. Você é levado para um tribunal. É obrigado a defender-se. Do quê? Ninguém sabe, nem ninguém quer saber. O juiz diz possuir acusações gravíssimas, anônimas aliás. Você pergunta quais. Ele dá de ombros e espera a defesa…
Bom, essas pretensas e genéricas acusações podem ir desde práticas de canibalismo infantil, sequestro do presidente da República do Gana e exploração criminosa das jazidas lunares até informações gravíssimas sobre não ceder prontamente o lugar a idosos em meios de transporte públicos, sobre diminuir a ração diária do hamster de estimação, ou a respeito de uma indevida utilização de sua poltrona em casa. Como você se defenderia?
O livro que mencionei desenvolve uma resposta a essa pergunta, contando a história de uma instituição que passa por isso. Mais: que passa por cima disso e está de pé.
Desde 2017 os Arautos do Evangelho estão submetidos a uma intervenção vaticana: primeiramente uma visita apostólica a cargo de dom Jaime Spengler, arcebispo de Porto Alegre e, a partir de 2019, um comissariado presidido pelo cardeal Dom Raimundo Damasceno, bispo emérito de Aparecida.
Além da assombrosa quantidade de anos de investigação infrutífera, espantam muito as acusações com as quais se justifica a medida do Vaticano. Todas são genéricas, a maioria anônimas, poucas delas relevantes, nenhuma comprovada. Mas ainda mais surpreendente é o fato de nem os delegados eclesiásticos saberem ao certo o que investigam.
Durante esse tempo, a mídia — sempre tão amável para com os apedrejados — espalhou a difamação a respeito da instituição. E juntaram-se a esse fogo cruzado a ereção de mais de trinta processos civis e canônicos. Nenhum desses processos ficou de pé. Foram todos desmentidos. A mídia cansou-se de gritar. Só o Comissariado continuou. Continuou, claro, com todos os prejuízos daí decorrentes.
Antes de mais nada, o prejuízo moral dos acusados, cuja fama foi afetada por estarem tanto tempo sob uma custódia especial, como se fossem criminosos. Além do mais, sob essa intervenção ficou congelado todo o organismo dos Arautos do Evangelho. Há mais de seis anos que cerca de trinta diáconos estão esperando a sua ordenação sacerdotal. Sete turmas de seminário ainda não puderam aceder ao diaconato. Fazendo uns cálculos rápidos, será talvez uma centena ou mais de ministros a menos para cuidar do imenso rebanho de Cristo. Os Arautos também não podem receber novos membros.
Mas não foram só eles os atingidos
O projeto educacional que prodigavam a muitos jovens foi cancelado em seco pela intervenção. Como ficaram essas crianças e adolescentes, proibidos de seguirem seus sonhos? E as suas famílias? Bom, estas se moveram e fizeram um abaixo-assinado para a reimplantação do projeto educacional. Foi um abaixo-assinado que colecionou mais de 2.000 — praticamente todos os interessados — e que foi simplesmente jogado no lixo.
Ainda assim não foram só eles os atingidos. Infelizmente… A Igreja foi a mais lesada. Uma instituição florescente em vocações, crescente em obras de apostolado ficou eternamente paralisada porque algumas autoridades ideologizadas abusaram do seu poder.
Tudo isso em nome de uma intervenção que não termina.
Sejamos francos e consequentes: tais medidas ditatoriais só podem provir da inveja, do ódio pessoal ou do ódio ideológico. Ou dos três. Que tristeza… E como fica a face da Igreja? É verdade que sujeira dos membros não equivale a sujeira da Igreja. Mas, em circunstâncias em que volta e meia surgem escândalos — tantas vezes agigantados pelos meios midiáticos —, por que perseguir uma instituição saudável, e tão saudável que oito anos não bastaram para provar um só delito procedente? Por que acusar de estar suja uma instituição evidentemente limpa?
Não temos respostas a tais questões. Mas temos, sim, resposta a uma pergunta que coloquei mais acima: como se defender de acusações inexistentes ou vagas?
Eu disse que este livro nos ensina a respeito. E ensina mesmo. Imagino que este trabalho, levado a cabo por alguns arautos, tenha sobretudo a intenção de informar as pessoas da verdadeira situação em que se encontram. Concordo com eles. Fizeram muito bem. Mas, talvez sem se terem dado conta, com esse livro eles também estenderam uma mão pedindo auxílio a Leão 14.
Se a Igreja parece manchada pelos crimes de alguns de seus filhos, esta seria, com efeito, a hora de tomar uma causa inocente e ajudá-la. Seria a hora de mostrar que a justiça está do lado da Igreja e que a Igreja está do lado da justiça. Se o papa Leão 14 almeja mostrar ao mundo que a Igreja é sempre nova e sempre pura, veio parar-lhe às mãos o caso certo, na hora certa. Que fará Sua Santidade?
Foi o melhor modo de se defender: dando oportunidade à Igreja de se defender.
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