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Público & Pragmático

Alugamos o Brasil para as big techs norte-americanas

16 de novembro de 2025, 08h00

À espera do próximo ataque norte-americano…

Até quando viveremos à espera do próximo ataque do governo norte-americano?

Tarifaço de 50% sobre os produtos brasileiros. Lei Magnitsky contra ministro do Supremo Tribunal Federal. Pix sendo alvo de investigação comercial. Ameaças da Casa Branca de uso militar e econômico contra Brasil… O fato é que as ameaças e os ataques de Trump revelam o nosso “calcanhar de Aquiles” no contexto geopolítico atual: a nossa dependência tecnológica das big techs norte-americanas.

O “Brasil soberano”, infelizmente, ainda é apenas um discurso vazio; um mero slogan fake do governo; um blefe no jogo tecnológico da geopolítica global. O “Brasil é dos brasileiros”, mas a “tecnologia é dos americanos”.

Um país com soberania digital é aquele que possui autonomia e controle no ambiente digital. Isto significa, no mínimo, ter suas próprias tecnologias; poder se proteger de ataques digitais estrangeiros; regular as tecnologias estrangeiras de modo a respeitarem a legislação nacional; adotar uma postura política de proteção e incentivo à tecnologia e aos interesses nacionais e empoderar o seu cidadão no meio digital. [1]

Aqui, no Brasil, somos a antítese perfeita disso.

Brasil soberano ou colônia digital do Vale do Silício?

Mais um 7 de Setembro se passou e a verdade é que ainda somos colônia.

A história da dependência estrangeira e da extração das nossas riquezas continua se repetindo. Os europeus levaram nosso pau-brasil, nosso açúcar, nosso ouro… As bigtTechs norte-americanas levam nossos dados e, por tabela, implodem nossa soberania digital.

O Estado brasileiro é colônia digital do Vale do Silício. Pouco adianta gritarmos “aqui não Estados Unidos, aqui é o Brasil!”, se somos reféns da tecnologia norte-americana e estamos a uma crise diplomática da paralisação tecnológica do setor público. Vivemos sob o risco iminente de uma big tech apertar um botão e interromper o funcionamento do nosso Estado.

Dois exemplos são emblemáticos e merecem destaque. Em 2020, em plena pandemia do Covid-19, o Ministério da Saúde entregou os dados do SUS para a nuvem da Amazon (AWS)[2] e o Ministério da Educação entregou os dados do Sisu para a nuvem da Microsoft (Azure) [3]. É dizer, os dados sensíveis da saúde e da educação de cada brasileiro estão nas mãos das big techs e podem ser acessados pelo governo norte-americano por meio da Cloud Act (Lei da Nuvem) [4], uma legislação americana com efeitos extraterritoriais que abalam nossa soberania digital.

O mais irônico (ou trágico) é que nós financiamos a nossa própria colonização tecnológica. Conforme o estudo inédito de pesquisadores da USP, UnB e FGV [5], o Estado brasileiro já gastou mais de R$ 23 bilhões em licenças de software, cloud e segurança de empresas como Google, Microsoft e Oracle. Ao invés de construirmos a nossa “casa tecnológica”; alugamos tecnologia gringa. Pagamos, todos os meses, o aluguel de sistemas e tecnologias que não controlamos e que estão sob jurisdição estrangeira…

A situação é tão grave que até mesmo as empresas brasileiras de tecnologia são sequestradas/capturadas pelos interesses e capital norte-americanos. Eu as chamo de empresas brazilianas (com Z de “Brazil” – leia imitando a voz de Donald Trump).

A Serpro e a Dataprev, nossas maiores empresas públicas de tecnologia, tornaram-se barriga de aluguel das big techs. Ilustra esta realidade, a criação da “Nuvem Soberana” pelo governo federal, uma infraestrutura que deveria ser a base da nossa segurança e soberania digitais. Parece piada, mas a nuvem “soberana” do Brasil, na verdade, utiliza tecnologia da Amazon, Oracle e Google. Nuvem americana, pois. [6]

E assim a nossa propagada soberania digital continua escoando pelo ralo…

Chegou a hora de virarmos o jogo

Já passou da hora de virarmos este jogo! Não somos condenados a ser colônia. Não será fácil (é verdade), mas precisamos de ações concretas para construir a nossa autonomia tecnológica; construir a nossa própria “casa digital”. Alguns alicerces já existem. O Pix é o nosso maior exemplo de que o Brasil pode inovar, desenvolver tecnologia de ponta e enfrentar os gigantes norte-americanos.

Precisamos de postura, planejamento e ação no curto, médio e longo prazo.

A postura brasileira deve ser de protagonista digital. Chega de ser vítima passiva; de apenas reagir aos ataques yankees; de ser mero consumidor/usuário de tecnologia gringa. Chega de blefes ou soberania de fachada. Nossa postura política deve ser de um Estado produtor de tecnologias nacionais, com papel ativo e proativo na construção da nossa casa digital, da nossa autonomia tecnológica. Levantemos a cabeça!

Temos que instituir um Plano Nacional de Soberania Digital que contenha, no mínimo, ações específicas voltadas para: a soberania de dados; soberania de inteligência artificial; autonomia tecnológica; regulação das big techs; cibersegurança das infraestruturas críticas e a capacitação digital da população. Este plano não pode ser apenas uma “carta de intenções” ou mais uma jogada de marketing do governo; ele deve pavimentar o caminho para alcançarmos a nossa soberania digital.

Por fim, ação! É necessário apoiar, criar, proteger e vender tecnologias brasileiras. Este é o ciclo básico para concretizarmos a nossa autonomia tecnológica imposta pelos artigos 218 e 219 da nossa Constituição.

 Apoiar significa, pelo menos: i) investir em pesquisa, desenvolvimento, tecnologia e infraestrutura digital nacionais (remanejando do orçamento público os bilhões de reais gastos anualmente com as big techs) e ii) priorizar, nas compras públicas, as tecnologias brasileiras de empresas com capital, controle e sob jurisdição nacionais; chega de empresas gringas ou brazilianas nos contratos públicos nacionais.

 Criar, não apenas uma única tecnologia nacional (como uma inteligência artificial brasileira), mas uma Pilha Brasileira de Tecnologia, reduzindo a dependência estrangeira na gestão de recursos naturais; chips; redes; internet das coisas; computação em nuvem; software; dados e inteligência artificial. Um projeto ambicioso e indispensável.

Proteger envolve: i) regular adequadamente as big rechs para que obedeçam a legislação nacional e não violem nossos direitos fundamentais e ii) tratar os dados sensíveis e estratégicos do governo e dos cidadãos como um bem nacional, como um ativo de infraestrutura crítica deve ser mantido por entidades de capital e controle comprovadamente nacionais.

Vender é a cereja do bolo. Chega de sermos meros consumidores/usuários de tecnologias estrangeiras. Seremos produtores/fornecedores de tecnologias de ponta e vamos vendê-las para todo o mundo. Somos capazes! Nada de complexo de vira-lata.

Contudo, não podemos defender o isolacionismo digital. A ideia é ser soberano, mas não isolado do resto do mundo. O Brasil é o atual presidente dos Brics e é líder em energia renovável, temos de saber usar as nossas cartas neste jogo global. Cooperação (sem submissão) internacional com os países do Sul Global será imprescindível para nossa autonomia tecnológica. Um excelente exemplo disto é o lançamento do Brics Pay ou “Pix Global” [7] que facilitará as transações internacionais, reduzindo a dependência do dólar americano.

Enfim, a soberania digital deve ser levada à sério pelo Estado brasileiro.

Raul Seixas tinha razão… E chega de aluguel!

O ano era 1980, quando Raul Seixas, nosso maluco beleza, trouxe “a solução” irônica para o país: “a solução é alugar o Brasil […] Vamo embora, dar lugar pros gringo entrar. Pois esse imóvel está pra alugar!” [8].

“Aluga-se” é uma sátira do saudoso roqueiro baiano à entrega do Brasil aos interesses estrangeiros, como se fosse um imóvel para alugar. Pois é, Raul… O tempo passou e continuamos entregando nossas riquezas para os gringos! Alugamos nosso país para as big techs norte-americanas.

Basta! Chega de Soberania de fachada. Chega de viver à espera do próximo ataque trumpista. Está na hora de tomar de volta o que é nosso. Despejar esses inquilinos e construir a nossa casa tecnológica.

Está na hora de rescindir este contrato de aluguel. Vamos agir!

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[1] CAMELO, Ana Paula et al. Soberania digital: para quê e para quem? Análise conceitual e política do conceito a partir do contexto brasileiro. São Paulo: CEPI FGV DIREITO SP; ISOC Brasil, 2024.

[2] MINISTÉRIO DA SAÚDE. DataSUS. Disponível aqui.

[3] MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Microsoft destaca Sisu em nuvem como case de sucesso. Publicado 23/03/2020. Disponível aqui.

[4] ESTADOS UNIDOS. CLOUD Act Resources. U.S. Department of Justice. 2018. Disponível aqui.

[5] SILVA, E. C. M.; ROCHA, I.; VAZ, J. C.; VENEZIANI, J. R. A.; MODANEZ, C. C.. Contratos, Códigos e Controle: A Influência das Big Techs no Estado Brasileiro. São Paulo – SP, Brasil, jul. 2025. Disponível aqui.

[6] MINISTÉRIO DA GESTÃO E DA INOVAÇÃO EM SERVIÇOS PÚBLICOS. Gestão assina acordos com Serpro e Dataprev para criação de Nuvem de Governo. Publicado em 12/11/2024. Disponível aqui.

[7] TECMUNDO. Brics prepara lançamento do ‘Pix Global’ para reduzir dependência do dólar. Publicado em 26/08/2025. Disponível aqui.

[8] SEIXAS, Raul. Aluga-se. Rio de Janeiro: Estúdio CBS, 1980, 2min31segundos. 

Clóvis Reimão

é professor, escritor e pesquisador sobre Direito Público, governo digital e inteligência artificial, autor do livro Governo Digital: em Defesa do Ser Humano (Editora Thoth), professor visitante na Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, professor na pós-graduação da Faculdade Baiana de Direito, mestre em Direito Público pela Universidade de Lisboa, membro do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (IBDA) e do Instituto de Direito Constitucional da Bahia (IDCB), membro da Comissão de Governo Digital e IA do IBDA e assessor de procurador de Justiça no Ministério Público da Bahia.

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