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Interesse Público

Lei de Liberdade Econômica, infraestrutura e poder de polícia

13 de novembro de 2025, 08h00

O Direito Administrativo brasileiro medeia a autoridade da administração pública e a liberdade dos cidadãos. Maria Sylvia Zanella Di Pietro analisa essa tensão dialética entre autoridade e liberdade, propondo a edificação do regime jurídico administrativo equilibrado entre prerrogativas e sujeições.

É a partir dessa ideia, quiçá com um peso especial na balança para a tutela dos direitos dos fundamentais dos cidadãos, que se deve compreender a serventia prática da Lei de Liberdade Econômica (Lei 13.874/19), resultante da conversão da Medida Provisória 881/19, para o âmbito do Direito Administrativo nacional.

Malgrado a lei não se destine especificamente ao Direito Administrativo, não deixa de mexer com ele, como também o faz com regras de Direito Econômico, de Direito Civil e de Direito do Trabalho.

Num anúncio prefacial sobre a Lei de Liberdade Econômica, o ministro Vilas Boas Cuevas, vislumbra três eixos principais:

(a) é norma geral de Direto Econômico, plasmada na competência concorrente das entidades federativas para legislar sobre o tema (artigo 24, I da Constituição);

(b) é norma que impõe importantes alterações ao Direito Privado, especialmente quanto à desconsideração da personalidade jurídica, à função social do contrato, aos contratos interempresariais e aos fundos de investimento;

(c) é norma que introduz, no âmbito do Direito Público, a análise de impactos e experimentações regulatórios e de Direito do Trabalho [1].

A literatura administrativista que primeiro se dedicou a tratar do estudo da Lei de Liberdade Econômica, a exemplo de Marques Neto e Rafael Véras, identificou o mesmo conflito anotado por Di Pietro, só que entre limites e condicionamentos ao exercício da atividade econômica e seu contraste com o poder de polícia estatal. Nesse particular, a lei intenciona dar saliência ao princípio econômico da livre iniciativa, de modo a deixar ver, como sustentam os autores, que a “liberdade de empreender passa a ser a regra; a exigência de atos estatais de liberação a exceção” [2].

É essa, com efeito, uma das leituras possíveis do artigo 170, parágrafo único da Constituição, ao expressar que “é assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”.

Os tais casos previstos em lei, tratados pela Constituição, implicam, em termos práticos, compreender fundamentalmente o exercício do poder de polícia administrativa, a cumprir o Estado seu papel de ordenar a vida econômica e social.

Spacca

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É fundamental destrinchar o poder de polícia estatal, em elementos que compõem o seu ciclo ordinário, nem sempre completo, de estruturação, notadamente ao incidir sobre atividades econômicas privadas: a) ordem, b) consentimento, c) fiscalização e d) sanção, são essas as fases que Diogo de Figueiredo Moreira Neto descreveu como inerentes ao exercício do poder de polícia; e é quanto a elas que dar-se-á a interseção com a Lei de Liberdade Econômica.

A primeira fase da polícia administrativa (ordem) corresponde à sua disciplina normativa, legal ou regulamentar, que impõe obrigações de fazer, não fazer ou suportar aos destinatários, afirmando-se como um “antecedente lógico” do seu exercício [3]. Nesse caso, a expressão da polícia administrativa pode ser direcionada a uma pluralidade indeterminada de pessoas (como atos-regra) ou a sujeitos determinados (como atos subjetivos), na hipótese última concretizando a passagem do ato normativo à ordem de polícia [4].

Na sequência, o poder de polícia se predica à fase do consentimento, quando então a lei ou o ato normativo subordinam o exercício de direitos dos particulares, à manifestação de vontade concordante da administração pública.

Tradicionalmente, descrevem-se duas formas para se revelarem tais consentimentos estatais: (a) licença – tratada como ato vinculado; (b) autorização – tratada como ato discricionário.

A despeito das divergências doutrinárias quanto a essa categorização, existente tanto aqui quanto no estrangeiro, a distinção, que se baseia em juízo de conveniência e oportunidade puro e simples, dificilmente consegue ser sustentada em dias atuais.

O ordenamento jurídico brasileiro, especialmente na vertente do regramento o setor de infraestrutura, tem se regozijado em estabelecer hipóteses de autorizações vinculadas, voltadas ao desempenho de atividades de competência estatal por privados que cumpram os requisitos próprios, a modo de exemplo:

(a) autorizações para serviços de telecomunicações explorados em regime privado (artigo 131, §1º da Lei 9.742/97);

(b) autorizações para a exploração indireta de ferrovias, em regime de direito privado, na forma da legislação específica (artigo 2º, §4º da Lei 9.074/95, incluído pela Lei 14.273/21);

(c) autorizações para a exploração de usinas termelétricas de potência superior a 5 mil kW, destinadas a uso exclusivo do autoprodutor e à produção independente de energia (artigo 7º, I da Lei 9.074/95, com a redação dada pela Lei nº 13.360, de 2016);

(d) autorizações para a exploração indireta das instalações portuárias localizadas fora da área do porto organizado (artigo 1º, §1º da Lei 12.815/13); TUP – terminais de uso privado (autorizações)

É claro que a formulação dessas autorizações anômalas ou qualificadas com tamanho espectro de liberdade e amplitude coloca desafios à administração e aos administrativistas.

A autorização seria a nova roupagem das concessões como provocou Marçal Justen Filho no 39º Congresso de Direito Administrativo? Trata-se de um quase-contrato munido apenas de prerrogativas e não de sujeições? Penso que não.

Sob a ótica privada, pode ser até que sim, mas sob a ótica das atividades essenciais faltam-lhes, pelo menos em todos os casos citados no texto, o aspecto mais importante: que é o compromisso da atividade explorada com atendimento dos usuários e com o equilíbrio entre interesses públicos e privados em jogo, com a advertência que a  as autorizações, referidas pelo artigo 170, parágrafo único da Constituição e no artigo 21, dialogam apenas como o desempenho de atividades econômicas em sentido estrito e não com a prestação de serviços públicos.

Para além das autorizações, existem hipóteses, no setor de infraestrutura, em que a legislação exige simples comunicação dos particulares ao poder público, legitimando automaticamente o seu desempenho lícito (fiscalizado). Cite-se como exemplo o artigo 8º da Lei 9.074/95, com a redação dada pela Lei 13.097/15, que dispõe:

“a) o aproveitamento de potenciais hidráulicos iguais ou inferiores a 3.000 kW (três mil quilowatts) e a implantação de usinas termoelétricas de potência igual ou inferior a 5.000 kW (cinco mil quilowatts) estão dispensadas de concessão, permissão ou autorização, devendo apenas ser comunicados ao poder concedente”.

Em resumo, conceitos e dogmas podem mudar. Tudo depende do direito positivo, seja ele público ou privado, ou como ceticamente prefere Carlos Ari Sundfeld, do direito comum da administração pública. Nada, absolutamente nada, é ontologicamente estático ou imutável… em termos de direito administrativo e liberdade econômica [5].

Vejamos os impactos da nova legislação nas atividades de polícia administrativa:

1. A Lei de Liberdade Econômica aposta fichas num tipo de consentimento presumido, a ver que o seu artigo 3º prescreve ser direito de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, o de desenvolver atividade econômica de baixo risco, para a qual se valha exclusivamente de propriedade privada própria ou de terceiros consensuais, sem a necessidade de quaisquer atos públicos de liberação da atividade econômica (inciso I). O nível de riscos vem a ser definido no Decreto 10.178/19 (artigo 3º).

2. A Lei de Liberdade Econômica dispõe que, nas solicitações de atos públicos de liberação das atividades econômicas, uma vez apresentados todos os elementos necessários à instrução do processo, o particular será cientificado imediata e expressamente do prazo máximo estipulado para a análise de seu pedido, e de que, transcorrido esse prazo, o silêncio da autoridade competente importará aprovação tácita para todos os efeitos, ressalvadas as hipóteses expressamente vedadas em lei (inciso IX).

3. A Lei de Liberdade Econômica propõe isonomia de tratamento e fundamentação aos empreendedores, quanto aos atos de liberação de atividades econômicas, devendo a Administração Pública repetir e reproduzir interpretações adotados em decisões administrativas análogas, nos termos do regulamento. Uma disposição com essa dimensão nos faz francamente pensar num diálogo com o artigo 30 da Lindb, que exige respeito pelos órgãos e entidades da administração pública não apenas a precedentes, com efeitos vinculantes, como também a prescrições administrativas (que se constituem num modus operandi frequente de autuação que impõe tratamento igualitário aos administrados.

4. A regra do inciso XI do artigo 3º da Lei de Liberdade Econômica, obsta exigências, particularmente caras aos setores de infraestrutura, de medidas ou prestações compensatórias ou mitigatórias de caráter abusivo, seja em sede de estudos de impacto ou assemelhados, vendando, no particular, que:

(a) uma medida já planejada pelo particular antes da solicitação venha a ser prejudicada;

(b) a futilidade da compensação ou dos impactos simplesmente impeçam o exercício da atividade econômica.

(c) haja exigência de execução ou prestação de qualquer tipo para áreas ou situações que se coloquem além daquelas diretamente impactadas pela atividade econômica;

(d) medidas sejam atribuídas ao particular em descompasso com a razoabilidade ou a proporcionalidade, ou que sejam utilizadas como meios de coação ou intimidação.

A respeito da etapa de fiscalização do poder de polícia, seja ela preventiva (independente da constatação de infração) ou repressiva (em face da constatação de infração) impõe-se que a competência de cumprir a lei e o direito caiba mesmo, como dever, à administração pública ou quem lhe faça as vezes (admitindo-se um certo grau de delegação a pessoas privadas). Neste caso, nem mesmo as atividades de baixo risco estariam imunes à fiscalização estatal.

Entretanto, como escreve Aline Klein, o artigo 1º, §2º da Lei de Liberdade Econômica, determina que se faça a interpretação “em favor da liberdade econômica, da boa-fé e do respeito aos contratos, investimentos e propriedade de todas as normas de ordenação pública sobre atividades econômicas privadas constantes da lei”.

Em outras palavras, a lei exige que a fiscalização que recaia sobre privados, em caráter econômico, deva assumir um viés educativo e não punitivo. O objetivo essencial da fiscalização é o de proteger a liberdade do exercício da atividade econômica, aplicando-lhe regras em favor da sua continuidade e não de sua aniquilação.

Essa mesma disposição da Lei de Liberdade Econômica, a da boa-fé presumida nos negócios (artigo 1º, §), irradia efeitos à última etapa do ciclo do poder de polícia, a da sanção. Em compasso com a evolução do Direito Administrativo nos últimos anos, a consensualidade administrativa pede espaço para exigir que a referida presunção, privilegie, sempre que possível, soluções consensuais e dialógicas em detrimento de medidas unilaterais e repressivas.

É verdade que esse assunto não é tão novo em Direito Administrativo, mas não se pode dizer, especialmente em tempos de crescimento da regulação responsiva, que se tornou insuspeito…

A base para uma marcha rumo ao consenso advém da Constituição (donde se infere um princípio da consensualidade), também da Lei de Ação Civil Pública, mas fundamentalmente do artigo 26 da Lindb, tão bem trabalhado teoricamente por Juliana Palma e Daniel Avelar.

Essa cláusula geral e subsidiária de consenso apresenta o alicerce necessário às soluções consensuais, e não adversariais, no contexto das sanções de polícia administrativa. E isso se torna mais evidente com as disposições aludidas da Lei de Liberdade Econômica e seus efeitos sobre os negócios privados, de caráter econômico, em geral.

Por fim, é preciso perceber que apenas tudo isso não predica, por si só, ao cumprimento exato do disposto na Lei de Liberdade Econômica e seus desígnios, afinal num país continental, de tradição burocrática e autoritária, é difícil transformar carnívoro em vegano. É como diria Drummond, citado em homenagem por  Fábio Lins: “As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei”.

 


[1] CUEVAS, Ricardo Vilas Boas Cuevas. Apresentação. In. SALOMÃO, Luis Felipe. CUEVA, Ricardo Villas Bôas. FRAZÃO, Ana. Lei de Liberdade Econômica e seus impactos no direito brasileiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020. p. 5.

[2] MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. FREITAS, Rafael Véras. Atos de Liberação da Atividade Econômica Privada e Poder de Polícia: pressupostos e limites. In. SALOMÃO, Luis Felipe. CUEVA, Ricardo Villas Bôas. FRAZÃO, Ana. Lei de Liberdade Econômica e seus impactos no direito brasileiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020. p. 310.

[3] BINENBOJM, Gustavo. Atos de Liberação e efeitos positivos do silêncio administrativo na Lei de Liberdade Econômica -Mutações do Poder de Polícia no domínio econômico. In. SALOMÃO, Luis Felipe. CUEVA, Ricardo Villas Bôas. FRAZÃO, Ana. Lei de Liberdade Econômica e seus impactos no direito brasileiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020. p. 351-359.

[4] Nesse caso, a expressão da polícia administrativa pode ser direcionada a uma pluralidade indeterminada de pessoas (como atos-regra) ou a sujeitos determinados (como atos subjetivos), na hipótese última concretizando a passagem do ato normativo à ordem de polícia.

[5] SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo para Céticos, 2ª ed., 2ª tiragem, São Paulo: Malheiros/SBDP, 2017.

Luciano Ferraz

é advogado e professor associado de Direito Administrativo na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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