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Senso Incomum

Advogado tem de nadar de poncho e mergulhar de guarda-chuva

13 de novembro de 2025, 08h00

Recebo muitas mensagens de leitores da coluna. Vejamos uma que simboliza a angústia contemporânea:

Pensei em comentar o texto no próprio site da revista CONJUR, mas desisti porque fica meu nome completo lá. Melhor é não ficar visado.

A realidade, nua, crua e triste, é que as diretivas internas dos TJs são para incentivar o uso da IA. Só se fala disso. São cursos, palestras, guias etc.

Os próprios servidores dizem ‘faço pelo copilot o resumo do processo, e peço para a IA fazer uma sentença como se fosse assessor’. Bingo, como o senhor diria, professor.

Questionei alguns sobre eventuais erros, jurisprudências fictícias etc.  A resposta foi a de que essa parte era ‘manual’.  E se a IA erra, pergunto. Faz parte, respondem. ‘Para isso existem os recursos. É do jogo’, concluem.

Professor, o Judiciário virou isto: números, produtividade. No lugar em que se trabalha com processos, já não se gosta da matéria prima: os processos. ‘Livremo-nos deles logo’. 

Muita gente compactua da minha indignação. Trata-se de produtivismo. Um taylorismo. Antigamente era de um jeito. Já hoje a bola está com a IA. O pior, a meu ver, é que essa busca por produtividade, ainda que malfeita, passível de recursos por erros evitáveis, está superando qualquer busca por uma entrega minimamente razoável para o jurisdicionado.

Claro, o jurisdicionado é sempre bastante exaltado e reverenciado nas páginas institucionais do poder judiciário, em palestras sobre direitos humanos, e afins, mas esquecido, ocultado atrás de números (seja dos autos, da produtividade ou o que for).

Em palestras de ministros, ouve-se coisas como ‘senhor caso concreto’. ‘Distinguishing é direito fundamental’. Mas, como o senhor vem dizendo, o dispositivo que trata do distinguishing é mais desobedecido. Na prática, os casos concretos ficam absolutamente escondidos pelas teses ou temas.

Esquece-se do ser humano; esquece-se do caso concreto; é tudo tese, como nos tais ‘precedentes’, nascidos para vincular, à revelia do caso concreto, que pouco importa.

É isso, professor. Brincando com o que o senhor costuma dizer, ‘I rest my case’.”

Recebo seguidamente esse tipo de desabafo. Resolvi publicar esse, face à fidelidade do leitor. Ele está coberto de razão. Hermes, vou chamá-lo assim, coloca o dedo na ferida. E isso que ele não falou do paradoxo da IA: o primeiro grau julga com IA; o causídico recorre e, no segundo grau, quem julga é a IA. Qual será o resultado? Pior: como fazer subir um REsp disso? E como escapar da IA que examinará o recurso?

 

O que sobra para os causídicos? Dia desses me contaram que, em uma palestra sobre precedentes, fez-se ironia com os críticos, dizendo-se que tudo isso que se objeta à “cultura de precedentes” é blá, blá, blá. Enfrenta-se as críticas com onomatopeias. Difícil a vida da doutrina.

A chance de diálogo é quase zero.

Mas seguiremos peleando. Só pararei no dia em que me convencerem que estou equivocado. Quero que me convençam que precedentes são feitos para o futuro e que jurisprudência pode dispensar o caso concreto. Em síntese, pararei no dia em que me mostrarem — e provarem, epistemologicamente — que teses são precedentes. Ou que precedentes são teses.  Naquilo que se entende por precedentes.

E, agora, como disse o leitor Hermes, há uma tempestade perfeita: o precedentalismo aliado ao uso da IA.

Aliás, a IA “apronta” todos os dias. A última foi a do sistema Gaia, do RS. Segundo o jornal Zero Hora, o robô andava dando dicas de como se compra armas e ensinava sonegar impostos. E outras coisas.  Agora o “admoestaram” e parece que vai se comportar. Até a próxima alucinação.

Spacca

Spacca

Em breves dias lanço, pela Editora Contra Corrente, o livro Robô Não Desce Escada e Trapezista Não Voa – Os Limites dos Aprendizes de Feiticeiro. Bom, robôs ainda não descem escadas (dizem); já o trapezista quando se acha tão perfeito pensa que voa e morre… Assim é a IA.

E os aprendizes de feiticeiro? Goethe sacou isso muito bem. Até Walt Disney tratou do tema em um episódio em que Mickey usa a vassoura encantada (que se volta contra ele). Assim é a IA…! Que até mesmo se revolta e ensina como sonegar impostos…! A história do precedentalismo também começou assim. Hoje sabemos bem o significado de teses gerais e abstratas. Ou não?

A propósito, um dos capítulos do livro fala de um texto de Nick Bostrom chamado Superinteligência: caminhos, perigos e estratégias para um novo mundo. Nick Bostrom abre a obra trazendo a fábula inacabada dos pardais. Ei-la:

Começa na estação de construção dos ninhos, em que, após longos dias de trabalho árduo, os pardais se sentaram sob o luar, relaxando e gorjeando. Eis que um comenta: “Nós somos tão pequenos e fraquinhos… Imagine como a vida seria fácil se tivéssemos uma coruja que nos ajudasse na construção de nossos ninhos!”.

Disse o outro pardal, dando uma baforada no seu charuto: “Sim… E nós poderíamos ter a ajuda dela para cuidar dos pardais mais velhos e dos mais novos”. Acrescentou um terceiro: “Ela poderia nos aconselhar e ficar de olho no gato do vizinho”.

Foi então que o pássaro mais velho disse: “Vamos enviar olheiros para procurar em todos os lugares uma corujinha abandonada, ou talvez um ovo. Um filhote de corvo ou de doninha também serviria. Isso poderia ser a melhor coisa que já nos aconteceu, pelo menos desde a abertura do Pavilhão do Grão Ilimitado, no quintal ao lado”. Foi aplaudido de pé.

Final: conta-se que o bando estava radiante e os pardais começaram a gorjear com toda a força. Apenas Scronkfinkle, o pardal rabugento e de um olho só, não estava convencido da prudência daquela empreitada. Disse ele:

Será, com certeza, nossa destruição. Não deveríamos pensar um pouco sobre a arte da domesticação e do adestramento das corujas ou dos corvos antes de trazer criaturas desse tipo para o nosso meio?”

Bingo! Scronkfinkle estava certo, mas não foi ouvido pelo bando. A coruja se banqueteou. Por isso, é preciso primeiro saber adestrar corujas antes de trazê-las como solução.

A fábula de Nick Bostrom oferece uma reflexão rica para refletir sobre os desafios e riscos do uso indiscriminado da inteligência artificial na práxis jurídica.

E serve também para falar dos perigos de termos precedentes que servem de estoque de normas para o futuro. Não é o legislativo que deve fazer isso?

Outra vez: o que sobra para os causídicos?

Como se diz no Rio Grande Sul, é duro nadar de poncho e mergulhar de guarda-chuva. Essa é a tarefa diária do advogado. Nadar de poncho. No mínimo. Enfrentar os robôs, as súmulas (7, 182 etc.), as teses aplicadas subsuntivamente, a ficta divisão entre “precedentes qualificados e persuasivos” e assim por diante. Nadar de poncho não é fácil.

Precisamos falar sobre isso.

Assim como precisamos falar sobre segurança pública, depois do que ocorreu no Rio de Janeiro.

Lenio Luiz Streck

é professor, parecerista, advogado e sócio fundador do Streck & Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br

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