Pesquisar
Diálogos Constitucionais

Leniência e coação: o precedente que levou os direitos a sério

13 de novembro de 2025, 08h00

A escolha oferecida à autora não foi entre um acordo desvantajoso e um processo judicial justo, mas sim entre um acordo com cláusulas ilegais e a virtual aniquilação corporativa.

 

No último dia 1º de novembro, a 10ª Vara Federal Criminal da Seção Judiciária do Distrito Federal proferiu uma sentença histórica, julgando parcialmente procedente a ação revisional ajuizada pela J&F para declarar a nulidade da cláusula penal constante do acordo de leniência por ela celebrado. Determinou, ainda, sua revisão à luz dos critérios legais, reafirmando, portanto, a prevalência da legalidade como parâmetro de atuação estatal.

Por óbvio, na esfera pública e midiática, já começou o alarmismo jornalístico sobre a sentença sem efetivamente se discutir o próprio conteúdo da decisão. Mais precisamente, o segmento lavajatista da mídia já está tratando a decisão como um retrocesso no combate à corrupção, uma verdadeira ode à impunidade. Depois de tudo o que o Direito brasileiro experimentou nos últimos anos, ainda persiste, em parte da opinião pública, uma visão infantilizada e maniqueísta que prefere vilanizar as maiores empresas nacionais a enfrentar o verdadeiro debate: a urgente necessidade de uma reforma administrativa e a atualização do modelo normativo de combate à corrupção.

Em um mundo cada vez mais globalizado e fragmentado, a consolidação de empresas nacionais com projeção internacional revela-se fator determinante para o exercício da soberania e para o fortalecimento da presença do Estado nas relações econômicas e políticas internacionais. A internacionalização e o fortalecimento das empresas brasileiras constituem verdadeiros pressupostos fundamentais para o incremento da influência política do país, na medida em que essas corporações, ao atuarem como intermediárias entre os Estados, produzem transformações e desenvolvimentos que frequentemente escapam à lentidão própria dos processos políticos [1].

Portanto, a sentença não deve ser compreendida como uma decisão favorável ao maior grupo econômico do país, mas sim como um avanço institucional na superação dos imensos danos decorrentes da operação “lava jato”, cuja cruzada de criminalização da atividade empresária representou um dos episódios mais devastadores do Estado de Direito no Brasil contemporâneo. A tentativa de destruição do grupo simbolizou o coroamento da atuação de uma força-tarefa que, em última instância, dilacerou grandes empresas nacionais e arrasou os fundamentos do Direito Penal e Processual Penal brasileiro.

Na realidade, a mídia, em lugar de pagar o pedágio simbólico da aparente isenção à “lava jato”, deveria alertar para o perigo real que ronda a sociedade brasileira: se Estado decide mobilizar seus agentes de forma coordenada contra algo ou alguém, nem mesmo os maiores grupos econômicos são capazes de oferecer resistência efetiva.

Em síntese, a ação revisional foi proposta com o intuito de revisar o acordo de leniência celebrado sob coação, uma vez que a J&F foi artificialmente colocada diante de um dilema: submeter-se a múltiplas e brutais perseguições estatais, em típico bis in idem possibilitado pelo estado de fragmentação do modelo brasileiro de combate à corrupção, ou aceitar um acordo que impunha multa astronômica, calculada sem qualquer lastro legal, mas que lhe asseguraria o respiro necessário para sobreviver.

Vale mencionar que o processo tramitou paralelamente à PET n° 11.972, em curso no Supremo Tribunal Federal — corte que desponta na atualidade como a instituição maior de defesa judicial da democracia brasileira —, reconheceu o estado de degeneração que permeou a celebração do acordo de leniência da J&F e, por isso, suspendeu sua parcela pecuniária em dezembro de 2023.

A sentença, densa e sofisticada, enfrenta questões intrincadas e fundamentais. Para além de constatar a natureza jurídica de “negócio jurídico de direito público” do acordo de leniência, o magistrado extraiu suas consequências necessárias: a incidência dos princípios da boa-fé, da proporcionalidade, da vedação ao bis in idem e, sobretudo, o papel essencial da vontade livre dos contratantes, requisito inafastável de qualquer negócio jurídico, que pressupõe simetria informacional entre as partes.

Torção de braço

Como corretamente reconhecido, o consentimento da empresa foi viciado por coação, pois o Ministério Público Federal exerceu “pressão (…) ao alavancar a ameaça de uma persecução ruinosa no fragmentado sistema brasileiro”, circunstância essa, aliás, de relevância constitucional, visto que objeto da ADPF 1.051 e já anteriormente reconhecida pelo STF em precedentes como os MS 34.031, 36.173, 36.496 e 36.526.

Spacca

Spacca

O magistrado, em diálogo com a prática judicial estrangeira, reconduziu esse vício de coação à “duress” tratada pela Suprema Corte dos Estados Unidos no caso Hartsville Oil Mill v. United States. Não se esgota aí o reconhecimento da coação: ela também se manifesta na imposição, pelo MPF, de “cláusula penal sabidamente ilegal para obter a ‘voluntária’ aceitação do acordo”, fenômeno que o julgador reconhece como “administrative arm-twisting”, uma verdadeira “torção de braço” administrativa que simula voluntariedade, ocultando uma estrutura de recompensas e punições artificiais. Nas palavras irretocáveis do magistrado, “a escolha oferecida à autora [J&F] não foi entre um acordo desvantajoso e um processo judicial justo, mas sim entre um acordo com cláusulas ilegais e a virtual aniquilação corporativa”.

Ao fazê-lo, evidenciou as aporias do modelo brasileiro de combate à corrupção, em que promotores adotam uma pretensa “discricionariedade” de inspiração norte-americana, mas sem reproduzir as boas práticas institucionais que, naquele contexto, asseguram controle e responsabilidade. O resultado é um sistema assimétrico e precário, no qual a autonomia acusatória degenera em instrumento de poder.

Legalidade e racionalidade

A decisão contribui, de modo exemplar, para redefinir o papel do Judiciário como regulador externo das interações entre economia e política, atuando não sobre a racionalidade econômica dos acordos de leniência, mas sobre sua compatibilidade com a legalidade democrática.

Nesse sentido, antecipa o acerto das diretrizes propostas pelo ministro André Mendonça na ADPF 1.051, fundadas na racionalidade do Estado como ente unitário, na proporcionalidade das sanções, no controle judicial efetivo dos acordos, na vedação ao bis in idem e na preservação da atividade econômica. Trata-se, enfim, de uma afirmação clara de que a legalidade e a racionalidade institucional não são obstáculos, mas condições do verdadeiro combate à corrupção.

Além disso, o decisum reconheceu a ilegalidade da cláusula penal e de sua base de cálculo, ao desconsiderar valores já pagos pela empresa ao Department of Justice norte-americano, medida que resultava em dupla penalização contrária até mesmo à lógica de evitar o “piling on” de sanções que se pede dos próprios agentes estatais do DoJ, que devem “coordenar-se com outras autoridades e considerar os valores pagos a elas”, de modo a impedir sobreposição punitiva.

A decisão toca, assim, no cerne do modelo brasileiro de combate à corrupção, fragmentado em múltiplas instâncias, o que o torna particularmente propenso ao bis in idem, circunstância esta que o próprio MPF explorou para coagir a empresa à aceitação de valores manifestamente ilegais.

A base de cálculo adotada, ademais, abrangia operações globais do grupo, incluindo empresas sem atuação no Brasil e sem participação integral da holding, o que evidencia ilegalidade e desproporcionalidade das sanções pecuniárias de que foi alvo a J&F.

Atuação ilegal do Estado

Outro aspecto notável da sentença é o enfrentamento da unicidade da atuação estatal, cuja violação foi magistralmente identificada na constatação de que é “absolutamente imprevisível, no cálculo de qualquer agente econômico racional, que o Estado irá deliberadamente formular, exigir e impor uma cláusula contratual que afronta diretamente a legislação que ele próprio editou e que deveria cumprir.

A partir dessa premissa, o magistrado reconheceu a quebra da base objetiva do negócio jurídico e qualificou a atuação ilícita do Estado como “evento extraordinário e imprevisível”, apto a caracterizar onerosidade excessiva. Com razão: não se pode presumir a ilegalidade da atuação estatal; ao contrário, a previsibilidade jurídica é condição indispensável da vida econômica moderna, como já observara Max Weber, ao vincular a própria racionalidade do capitalismo à estabilidade que decorre do cumprimento das normas jurídicas [2].

A sentença também distingue, com rigor conceitual, o interesse jurídico legítimo — condição para ingresso no feito como litisconsorte ou assistente — do interesse meramente econômico, eminentemente privado, oriundo da posição contratual de beneficiário do acordo originário, mera liberalidade que gera apenas expectativa de direito.

Com suas 56 laudas, a decisão representa um verdadeiro um ato jurídico de erudição e sensatez, perpassando institutos de direito privado e público bem como elementos do direito comparado. Aliás, a decisão mobiliza referências de Direito estrangeiro não como exibicionismo acadêmico, mas como instrumentos cognitivos adequados à resolução de um caso de repercussão transnacional, cujas contradições expõem falhas estruturais da atuação estatal e as fragilidades do modelo brasileiro de enforcement anticorrupção.

As marcas do lavajatismo

É evidente, conforme mencionamos no início do texto, que a decisão ainda suscitará intensa reação midiática, sobretudo daquelas mesmas vozes do jornalismo que jamais se dispuseram a redigir uma única linha crítica à “lava jato”. Ao que tudo indica, persiste o comodismo da crítica genérica aos “abusos” da operação, expediente que, em verdade, funciona como um pedágio simbólico pago à opinião pública para se eximir do dever de examinar atos concretos em que a força-tarefa mais se revelou desastrosa.

O argumento que exalta a pujança da J&F e a expertise de seus empresários ignora por completo o poder que o Estado detém quando seus agentes e órgãos, de modo concertado, convergem para um mesmo propósito — no caso, a destruição deliberada de determinadas empresas como demonstração de força da operação.

É previsível, portanto, que o jornalismo nacional continue a se debater em torno de generalidades, de comentários baseados em leituras apressadas (ou em sua ausência) e no brado costumeiramente inflamado contra a “impunidade”, retórica que serve, não raro, para atacar indiretamente o Supremo Tribunal Federal, ainda que a decisão em questão sequer tenha sido proferida por ele.

Assim, o Poder Judiciário vai sendo gradativamente desacreditado por aqueles que, sob o pretexto de combater a corrupção, insistem em cultivar o caos da “falta de alternativa” institucional. Mas a história é implacável ao mostrar que os pregadores da inexistência de alternativas não aspiram à mudança, mas à resignação e à aceitação da pior das alternativas.

Mas nos recusamos em ceder ao pessimismo. Aos poucos, e mesmo com a dura resistência de parcelas do jornalismo irresponsável, as marcas do lavajatismo vão sendo mitigadas, com a condição de que não sejam jamais esquecidas. Torna-se possível, enfim, distinguir quem efetivamente possui compromisso democrático e contribui para reconstruir a racionalidade jurídica, daqueles que persistem nos erros autoritários do passado.

A lição central dessa sentença é clara: a reafirmação da legalidade como eixo da atuação estatal e o repúdio à retórica fácil da criminalização da atividade empresarial, ambos pilares indispensáveis para a restauração da confiança no Direito e na democracia brasileira.

Afinal, em uma sociedade na qual até os maiores grupos empresariais podem ser coagidos pelo Estado, não é difícil imaginar o tratamento que esse mesmo Estado dispensaria à imprensa e aos cidadãos comuns.

 


[1] Num artigo de junho de 1998 ao Le Monde Diplomatique, o jornalista e sociólogo galego Ignacio Ramonet anotou algo de uma lucidez desconcertante: “Na virada do milénio, assistimos a um estranho espectáculo: o crescente poder dos gigantes empresariais planetários, contra os quais os tradicionais poderes de compensação (governos, partidos, sindicatos, etc.) parecem cada vez mais impotentes.” Ignacio Ramonet. “Giant corporations, dwarf states”. Le Monde Diplomatique, junho de 1998. Tradução livre. Disponível em: [https://mondediplo.com/1998/06/01leader].

[2] Cf. WEBER, Max. General Economic History, trad. Frank H. Knight, Illinois: The Free Press, 1950, p. 342; HABERMAS, Jürgen. Legitimation Crisis, trad. Thomas McCarthy, Cambridge: Polity Press, 1988.

Georges Abboud

é advogado, consultor jurídico, livre-docente pela PUC-SP e professor da PUC-SP e do IDP.

Seja o primeiro a comentar.

Você precisa estar logado para enviar um comentário.

Leia também

Não há publicações relacionadas.