Nas últimas semanas, nossa coluna tem se debruçado sobre o futuro: Rosaldo Trevisan finalizou sua trilogia sobre a atuação do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) em termos aduaneiros falando sobre o que esperar daqui para frente; Liziane Meira abordou como a reforma tributária afetará os regimes aduaneiros especiais; Fernando Pieri tratou das promessas do corredor bioceânico para o ganho de competitividade do comércio exterior e como implementá-lo – tema também mencionado no último artigo de Leonardo Branco.
Seguindo nesta toada, e considerando que nos aproximamos do final de mais um ano, parece apropriado continuar as discussões sobre o futuro do Direito Aduaneiro.
Nesta linha, proponho uma discussão sobre o futuro do processo administrativo aduaneiro não apenas diante da decisão do STJ sobre o Tema 1.293, que estabelece uma ruptura importante na tramitação dos processos de natureza aduaneira não tributária em relação ao tratamento geral, mas também diante da tramitação, no Poder Legislativo, de relevantes projetos de lei – o PLP 125/2022 e o PL 2.483/2022.
Existe um processo administrativo aduaneiro?
Ao iniciar a leitura deste artigo, creio que os leitores mais atentos devem ter se questionado: afinal, existe um processo administrativo aduaneiro?
Para responder a esta pergunta, precisamos retornar ao quase sexagenário Decreto-Lei 37/66, que em seu título V, trata do que chamou de “processo fiscal”. Por este título já se pode perceber que o legislador, àquele tempo, não tratou de criar procedimentos específicos sobre a determinação de infrações e penalidades e a exigência de créditos aduaneiros.
No entanto, a escolha pela adoção do rito do processo fiscal para o universo aduaneiro pareceu ter sido provisória, visto que o Poder Executivo, mesmo em momentos posteriores, jamais tratou da questão aduaneira como parte inerente e permanente do processo administrativo fiscal e sim, como uma área sobre a qual as regras e ritos tributários seriam estendidos por ausência de regras próprias.
É o que se vê pela redação do próprio Decreto nº 70.235/72 que, apesar de ter sido publicado posteriormente ao decreto-lei, é categórico em indicar que seu texto foi redigido com o propósito de reger o “processo administrativo de determinação e exigência de créditos tributários da União e o de consulta sobre a aplicação da legislação tributária federal”, conforme se verifica em seu artigo 1º.

Além disso, ao longo de seus 68 artigos, o termo “aduaneiro” aparece uma única vez, quando se determina as hipóteses de início do procedimento fiscal no artigo 7º.
Esta constatação é relevante na medida em que indica que o processo administrativo fiscal nunca foi pensado e organizado de forma a contemplar as particularidades, princípios e necessidades específicas que a seara aduaneira traz, tendo sido, ao longo de várias décadas aplicado de modo forçado e incongruente.
Justamente por isso, buscou-se remediar situações específicas por intermédio de meios paliativos, como no caso do perdimento de bens – que, em razão dos prováveis prejuízos à própria União que a aplicação do rito comum traria, foi endereçado por meio de rito apartado e sumário no Decreto-Lei nº 1.455/76.
Movimentos recentes em prol de um ‘processo aduaneiro’
As últimas décadas não trouxeram grandes mudanças em termos de evolução processual ao Direito Aduaneiro. Afinal, as penalidades pecuniárias continuam a seguir o rito tributário do Decreto nº 70.235/72 e o perdimento ainda é julgado de forma apartada e seguindo as regras contidas no Decreto-Lei nº 1.455/76.
No entanto, ainda que timidamente, passos em prol de um “processo aduaneiro” foram tomados e não podem ser menosprezados.
O primeiro deles foi a criação do Centro de Classificação Fiscal de Mercadorias (Ceclam), por meio da Portaria RFB nº 1.921/2017, para responder às consultas sobre o tema. Trata-se de inciativa relevante, na medida que deriva do reconhecimento de que a classificação fiscal – tema central de controle e fiscalização aduaneira – deveria ser endereçada por equipe técnica e qualificada, não devendo ser distribuída de forma aleatória e conjunta aos temas de consulta tributária.
O segundo passo se deu quando da criação do Centro de Julgamento de Penalidades Aduaneiras (Cejul) pela Portaria Normativa MF nº 1.005/2023 – tema que debatido nesta coluna em mais de uma oportunidade. Em que pese nossas discordâncias com a forma de funcionamento deste órgão, deve-se reconhecer que se trata de um avanço institucional em termos de tratamento do contencioso aduaneiro.
Por fim, tem-se ainda um terceiro passo relevante e que não pode ser esquecido: a especialização de turmas da 4ª Câmara da 3ª Seção do Carf para julgar matérias aduaneiras, conforme consta da Portaria Carf /MF nº 627/2024.
A nosso ver, nenhuma destas iniciativas resolveu, de fato, os problemas enfrentados pelos aduaneiristas.
A Ceclam trata apenas de um tema aduaneiro, enquanto tantos outros continuam a ser endereçados de forma genérica, lenta e sob viés predominantemente tributário – inclusive aquelas que possuem normas, prazos e contornos próprios estabelecidos em lei ordinária, como é o caso das regras de origem.
O Cejul destoa do tratamento dado aos demais processos aduaneiros na medida em que possui composição exclusivamente fiscalista, não dá a devida publicidade às decisões e aos respectivos fundamentos e sequer representa um efetivo duplo grau de jurisdição nos moldes prescritos pelo AFC/OMC e pela CQR/OMA.
Já as turmas especializadas do Carf são muito recentes e ainda precisam ser acompanhadas por mais tempo para se fazer uma análise justa e adequada. Todavia, o que se verificou inicialmente é que os membros designados não eram, em sua maioria, pessoas com formação especializada e experiência prática na matéria, situação que vem sendo remediada, ainda que não se tenha notícia sobre a imposição de regras de seleção diferenciada para essas turmas.
Dito isso, o que se busca ressaltar é que, apesar das dificuldades e desafios – e que sabemos que não são poucos –, a RFB vem, gradativamente, admitindo a necessidade de ajustes relacionados à forma como os processos administrativos em matéria aduaneira são conduzidos, situação que vem ao encontro do que tratamos em artigo anterior sobre o “despertar” do Brasil para o Direito Aduaneiro e a mudança na cultura institucional da RFB enquanto Aduana.
Tema STJ nº 1.293
Outro fator que marca a mudança na condução dos processos administrativos aduaneiros e que reitera a necessidade de um rito próprio para a matéria é a decisão do STJ deste ano (2025), em sede de repercussão geral, que reconheceu a incidência da prescrição intercorrente aos processos administrativos de apuração de infrações de natureza aduaneira não tributária.
Em que pese a existência de críticas sobre o conteúdo da decisão ou que ainda persistam discussões sobre a extensão de aplicação deste precedente, fato é que, a partir deste ano, a administração precisará tratar processos administrativos aduaneiros e tributários de forma distinta, sob pena de que um número considerável de autuações prescreva em desfavor da União.
Afinal, a média do processo administrativo fiscal é de aproximadamente sete anos [1] – situação que não condiz com as previsões da Lei nº 9.873/99 e que, segundo o próprio Tribunal de Contas da União, demonstra que a própria eficiência do contencioso administrativo resta comprometida.
A questão que resta é como esses desafios estão sendo endereçados.
Projetos de lei em tramitação sobre o PAF
Em resposta à crise do contencioso administrativo fiscal, vêm avançando dois projetos de leis de especial relevância: o PL nº 2.483/2022, que visa repensar o PAF e os contornos do Decreto nº 70.235/72; e o PLP nº 125/2022, que propõe a criação de um Código de Defesa dos Contribuintes.
Embora ambas as iniciativas sejam relevantes e possuam avanços necessários, fato é que nenhuma delas foi desenvolvida ou debatida levando-se em consideração os aspectos aduaneiros. Tal qual as normas vigentes nos últimos 60 anos, os novos projetos – embora se apliquem ao contencioso aduaneiro – são pensados sob a perspectiva da relação Fisco-contribuinte e não aduana-intervenientes.
No caso do PL nº 2.483/2022, apesar do título indicar que se trata de norma de aplicação “tributária e aduaneira”, não há sequer um artigo que enderece questões específicas de Direito Aduaneiro e as separe do universo tributário.
Da mesma forma, o PLP nº 125/2022, apesar de trazer disposições específicas sobre o Programa Operador Econômico Autorizado (OEA), seu propósito é taxativamente exposto como sendo estabelecer “normas gerais relativas aos direitos, às garantias, aos deveres e aos procedimentos aplicáveis à relação jurídica do sujeito passivo, contribuinte ou responsável, com a administração tributária“.
Portanto, apesar de avanços pontuais e de uma sensibilização da administração aduaneira em relação à modernização de suas atividades, mudança cultural e aproximação e cooperação com o setor privado, o que se percebe é que, em termos gerais e, principalmente, legais, a visão da RFB enquanto órgão de arrecadação tributária é o que prevalece.
Por um verdadeiro processo administrativo aduaneiro
Ao longo dos últimos anos, todos os autores desta coluna, cada um a seu modo e dentro de suas crenças, defende não apenas a autonomia do Direito Aduaneiro, mas também a necessidade de um verdadeiro processo administrativo aduaneiro.
Vibramos com cada avanço, por menor que seja, e realmente torcemos para que as iniciativas colocadas em prática prosperem e tragam benefícios tanto para a aduana, em sua árdua tarefa de gerir fronteiras e garantir a segurança do comércio exterior, quanto para os intervenientes privados, que buscam na facilitação do comércio uma forma de aumentar sua competitividade.
Ocorre que a maior parte dos progressos verificados – e que são visíveis – tem ocorrido em termos práticos e na relação operacional, não chegando a refletir mudanças reais na esfera legal.
Em outras palavras, verifica-se que a relação aduana-setor privado evoluiu, se solidificou e vem apresentando resultados práticos e que trazem benefícios e facilidades no dia a dia operacional. Todavia, a legislação aduaneira – e, principalmente, as regras sobre o contencioso aduaneiro – não sofreram quase nenhuma alteração.
Continuamos a ver o Direito Aduaneiro ser encaixado à fórceps em procedimentos tributários, continuamos sem um marco normativo sólido e atualizado para reger a matéria e sequer possuímos princípios aduaneiros positivados e que tragam para o mundo real diretrizes sobre como a relação Aduana-interveniente deve ser regida.
A cada evento e discussão, percebe-se que a aduana brasileira vem acordando para (e abraçando) a sua função extrafiscal; basta olharmos a repercussão de operações como a operação carbono oculto ou as discussões em torno das Aduanas Verdes – em especial destaque no presente mês em razão da realização da COP30 no Brasil. O que falta agora é darmos o primeiro passo rumo a construção de um processo administrativo verdadeiramente aduaneiro e que consiga se desvencilhar da sombra do universo tributário.
Afinal, se não queremos advogados que se digam especialistas em “tributário e aduaneiro” – justamente por sabermos que isso é raramente possível –, é imperativo que a mesma lógica se aplique ao processo administrativo.
E, se me questionarem qual seria um primeiro passo possível para mudar isso, eu diria: “incluir previsão no PL nº 2.483/2022 que indique que o processo aduaneiro possui contornos próprios e que, enquanto não for devidamente instituído e regulamentado, seguirá provisoriamente as regras do processo administrativo fiscal”.
Embora essa sugestão não traga nenhuma mudança imediata, este pequeno passo de reconhecer formalmente as peculiaridades do universo aduaneiro e de abrir espaço para pensar em mudanças futuras poderá fazer uma imensa diferença nos próximos capítulos da história.
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