A dependência externa de insumos farmacêuticos ativos (IFA) e tecnologias farmacêuticas expõe vulnerabilidades críticas à saúde pública brasileira, evidenciadas em crises recentes. Para mitigar esse risco e buscar ampliar a capacidade tecnológica nacional para fornecimento de medicamentos essenciais ao SUS, foram criados diversos instrumentos, sendo o mais importante deles as Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDP). No entanto, o último processo de seleção de projetos pelo Ministério da Saúde resultou em alta taxa de indeferimentos, o que parece indicar uma guinada na política das PDP.
O tema ainda se encontra em fase recursal, mas já é possível vislumbrar impactos econômicos e estratégicos relevantes em função desse novo cenário para indústrias e Laboratórios Farmacêuticos Oficiais (LFO). O primeiro deles é de que importantes investimentos foram realizados para a apresentação de projetos nessa última chamada. O que fazer com esses projetos que, além de relevantes para os parceiros envolvidos, certamente tem impacto positivo sobre o parque industrial nacional? Por isso, é importante avaliar as alternativas jurídicas e contratuais que viabilizam projetos tecnológicos público-privados no setor farmacêutico, para além das PDP.
O Programa de Desenvolvimento e Inovação Local (PDIL), instituído pela Portaria GM/MS nº 4.473/2024, também encabeçado pelo Ministério da Saúde, é o que primeiro vem à mente nesse contexto, porém o PDIL dificilmente será uma alternativa adequada para esses projetos. O PDIL é congênere às PDP, ambas modalidades de parcerias tecnológicas do SUS que usam o poder de compra estatal centralizado (MS) como mecanismo de indução para o fortalecimento do Ceis (complexo econômico-industrial da saúde). Contudo, a distinção é crucial:
PDP: focam na transferência de tecnologia já consolidada e conhecida por pelo menos um dos parceiros.
PDIL: visa à “geração” de tecnologias, ou seja, o desenvolvimento conjunto de soluções ainda não dominadas, incluindo inovação disruptiva ou incremental.
O PDIL é implementado por “alianças estratégicas” e utiliza diversos instrumentos jurídicos e modelagens típicas e atípicas, como convênios, Termos de Execução Descentralizada (TED), Contratos Públicos para Solução Inovadora (CPSI), encomendas tecnológicas (Etecs) e acordos de compensação tecnológica (Mecs). Os CPSI, por exemplo, são ideais para projetos inovadores de alto risco tecnológico, permitindo a contratação do desenvolvimento de soluções ainda não disponíveis.
A complementaridade entre PDP e PDIL é essencial: enquanto a PDP busca internalizar tecnologias existentes e dominadas por um dos parceiros, o PDIL foca na criação de soluções futuras para a soberania sanitária do Brasil. Porém, dificilmente um projeto pensado para uma PDP poderia ser apresentado no PDIL; ao menos conceitualmente esses “caminhos” deveriam ser auto excludentes, salvo alterações importantes no projeto que construam um elemento de inovação relevante, ainda que incremental.
Em todo caso, o debate não pode ser reduzido apenas a uma questão de escolha entre modelos. Ele envolve também a compreensão de que o Complexo Econômico-Industrial da Saúde é um dos pilares da soberania nacional e, portanto, exige instrumentos de fomento que sejam diversificados e adaptáveis. A rejeição de projetos de PDP pelo Ministério da Saúde não elimina a relevância técnica e científica dessas propostas. Muitos projetos indeferidos poderiam ser aproveitados em outros formatos contratuais ou regulatórios, gerando benefícios expressivos para o SUS e para a sociedade. Nesse sentido, há espaço para maior diálogo entre governo, indústria e LFO, de modo a evitar o desperdício de conhecimento, investimentos e oportunidades. Uma política pública moderna não deve se restringir a modelos engessados, mas deve abrir caminhos para que tecnologias promissoras sejam internalizadas por vias alternativas.
Num cenário em que o acesso às PDP enquanto modelo de parceria envolvendo o Ministério da Saúde é limitado, diversas alternativas jurídicas e contratuais se apresentam como vias para o fomento à produção e inovação em saúde, conforme sumarizado exemplificativamente a seguir:

-Concessão administrativa (PPP): Regulamentada pela Lei nº 11.079/2004, permite a modernização e gestão de plantas de LFO com investimento privado. O caso da PPP da Ifab/Furp [1], único precedente do gênero no país, demonstrou os riscos de uma modelagem inadequada, especialmente na precificação (descolamento entre preços-teto e mercado), na segregação de custos (agregando remuneração de tecnologia e infraestrutura) e na garantia de demanda. Entretanto, as dificuldades enfrentadas naquele caso não indicam a inviabilidade do modelo, mas apresentam lições de melhoria que incluem a necessidade de segregar remunerações, dimensionar corretamente os custos de transferência de tecnologia (analogamente às PDP, por cinco anos, por exemplo) e assegurar uma demanda mínima vinculante ou permitir fontes de receita acessória.
-Contratos de transferência de tecnologia: Sob a Lei nº 14.133/2021, oferecem flexibilidade para licenciamento de know-how e registro de produtos por LFO. A dispensa de licitação é possível sob certas condições (artigo 75, IV, “d”), e a remuneração pode ser por royalties, valores fixos ou mistos. A garantia de demanda via convênios com secretarias de saúde pode aproximar esse modelo da previsibilidade das PDP, sem a necessidade de desvínculo de “registro clone”.
-Parcerias comerciais com fabricação terceirizada: O LFO detém o registro sanitário e subcontrata uma contract manufacturing organization (CMO) para a produção. A venda direta ao SUS pelo LFO é baseada no artigo 75, IX, da Lei nº 14.133/2021. Embora legal, a terceirização completa pode gerar incerteza jurídica sobre o que constitui “bens produzidos por órgão público”; por isso a terceirização das atividades produtivas e regulatórias deve ser parcial. A licitação é a regra para a seleção do CMO, com exceções justificadas.
-Execução compartilhada de projetos de pesquisa, desenvolvimento e inovação (PD&I): Fundamentado na Lei nº 10.973/2004, este modelo permite a cooperação técnico-científica entre LFO e empresas privadas para o desenvolvimento conjunto de novos produtos. Foca na inovação, com dispensa de licitação para parcerias de P&D, e não está diretamente vinculado ao fornecimento imediato ao SUS, mas à geração de conhecimento e tecnologia nacional – inclusive dossiês para registros sanitários.
Essas alternativas não são mutuamente excludentes, mas podem ser utilizadas de maneira complementar, compondo uma estratégia mais sofisticada para o fortalecimento do Ceis. A articulação entre contratos de transferência de tecnologia e encomendas tecnológicas, por exemplo, pode criar arranjos híbridos que acelerem a absorção de know-how sem comprometer a segurança jurídica. Da mesma forma, as PPP em saúde, se bem estruturadas, podem se tornar instrumentos poderosos para a expansão de plantas industriais de LFO, desde que acompanhadas por cláusulas de desempenho e mecanismos de governança robustos.
A principal limitação dos modelos alternativos às PDP/PDIL é a ausência da demanda garantida centralizada do Ministério da Saúde. Além disso, as restrições regulatórias da Anvisa, como a impossibilidade de desvínculo de registro clones para outros tipos de parcerias tecnológicas do SUS que não as PDP/PDIL, limitam a dinamicidade desses projetos tecnológicos alternativos ou, pelo menos, tornam a sua modelagem jurídica mais complexa para contornar essa restrição à utilização dos clones. Ocorre que a RDC 954/2024, ao tratar de desvínculo, traz as seguintes hipóteses específicas:
Artigo 25. Os processos de registro concedidos pelo procedimento simplificado poderão ser desvinculados de seus respectivos processos matriz e seguirem como processos independentes, em três situações:
I – Quando solicitado pelo Parceiro Público detentor do registro concedido pelo procedimento simplificado no âmbito de Parceria de Desenvolvimento Produtivo (PDP);
II – Quando solicitado pelo detentor do registro concedido pelo procedimento simplificado, após a conclusão do processo de transferência de tecnologia para a produção de medicamentos considerados estratégicos pelo Ministério da Saúde, envolvendo entes públicos e privados.
III – Quando solicitado pelo detentor do registro concedido pelo procedimento simplificado, nos casos em que a renovação do registro do medicamento da petição primária matriz for indeferida por motivo não relacionado a falhas de eficácia, segurança e qualidade.
Ou seja, nos termos da norma atual, só há desvínculo no caso de parcerias tecnológicas do SUS que envolvam medicamentos considerados estratégicos pelo Ministério da Saúde; e os medicamentos considerados estratégicos para o SUS normalmente o são como medida prévia à celebração de PDP ou de PDIL.
Fortalecimento é estratégico para o país
Contribuiria de forma fundamental para incentivar as parcerias de inovação no ecossistema dos LFO uma simples alteração da RDC 954/2024 que substituísse a autorização de desvínculo de clones para PDP/PDIL por uma autorização mais ampla para qualquer modalidade de parceria tecnológica do SUS envolvendo LFO. Ajuste regulatório simples, sem qualquer impacto negativo para quem quer que seja, e que fomentaria iniciativas capazes de, mesmo sem utilizar o modelo de PDP, contribuir para o fortalecimento do Complexo Econômico e Industrial da Saúde. Essa flexibilização se faz urgente para permitir que LFO obtenham registros por outras vias e otimizem o uso de tecnologias já desenvolvidas, inclusive utilizando a escala de demanda em nível estadual.
O fortalecimento do Complexo Econômico-Industrial da Saúde e a autonomia tecnológica do SUS são estratégicos para o Brasil. As Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo têm papel central, mas sua rigidez enquanto modelo detalhadamente predefinido na Portaria GM/MS nº 4.473/2024 limita a seleção de boas propostas, com excelente potencial de impactos positivos sobre o Ceis.
É por isso que a política de fortalecimento do Ceis precisa ir além da consolidação das PDP e até mesmo do PDIL, permitindo um ambiente regulatório robusto, inclusivo e adaptável, que equilibre inovação tecnológica, aproveitamento de investimentos em saúde pública e sustentabilidade do SUS, alinhado aos objetivos do Ceis — ainda que não vinculado a “caixinhas” pré-definidas.
Em conclusão, o Brasil precisa superar a visão restritiva que hoje limita o uso de instrumentos de inovação no setor da saúde. A política pública deve ser orientada não apenas pela preservação do modelo tradicional de PDP, mas pela construção de um arcabouço regulatório mais aberto, capaz de integrar soluções como PDIL, CPSI e PPP de forma coordenada. Essa ampliação de horizontes permitirá que o país aproveite melhor seus investimentos, evite gargalos regulatórios e crie um ambiente mais competitivo e atrativo para a indústria da saúde.
É certo que uma maior flexibilidade regulatória para o desvínculo de registros facilitaria e tornaria mais ágil a modelagem de novas parcerias. No entanto, já existem hoje diversos instrumentos jurídicos postos e disponíveis, capazes de estruturar uma miríade de formatos de parcerias tecnológicas para o SUS. O desafio atual é que as empresas passem a enxergar essas alternativas e não se restrinjam exclusivamente às PDP e ao PDIL como únicas opções possíveis.
Nesse mesmo sentido, os estados também precisam compreender o papel ativo que podem desempenhar, utilizando os instrumentos já existentes para fomentar iniciativas regionais que contribuam para o fortalecimento do Ceis e para o desenvolvimento local. Ao explorar a multiplicidade de ferramentas disponíveis, cria-se um ecossistema mais dinâmico e descentralizado, em que soluções jurídicas e regulatórias variadas se somam para ampliar a autonomia sanitária e tecnológica do Brasil.
[1] GLASSMAN, Guillermo. Direito administrativo e parcerias público-privadas na indústria farmacêutica. Consultor Jurídico, Público & Pragmático, 7 maio 2023. Disponível aqui.
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