A ação policial promovida no final de outubro nos complexos do Alemão e da Penha, na Zona Norte do Rio de Janeiro, a mais letal da história do Brasil, evidenciou a urgência de um combate mais eficiente ao crime organizado, cuja atuação transcende o tráfico de drogas e se ramifica em mercados ilícitos bilionários, como os de combustíveis, bebidas e, notavelmente, cigarros.

O criminalista Augusto de Arruda Botelho
Para o ex-secretário Nacional de Justiça e advogado criminalista Augusto de Arruda Botelho, a repressão e o poder de polícia, isoladamente, já se mostram insuficientes para conter o avanço da criminalidade. Políticas regulatórias bem estruturadas podem reduzir as brechas que favorecem a atuação de organizações criminosas e a ampliação do mercado ilícito nesses setores da economia, conforme ele afirmou em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico.
Leia a seguir a entrevista:
ConJur — Recentemente, operações policiais revelaram que o crime organizado está presente em setores formais da economia. Como esses mercados ilegais se assemelham?
Augusto de Arruda Botelho — Há a participação do crime em toda a cadeia. Desde importações ou desvios de insumos, distribuição por empresas de fachada, comércio pirata, até o consumo final ou revenda para outras operações ilícitas. No setor de bebidas, há falsificação (uso de recipientes originais ou similares, rótulos falsos), produção clandestina ou contrabando, venda sem procedência e mistura com substâncias tóxicas, que culminou com os casos de intoxicação por metanol. Isso evidencia que o problema transcende os setores econômicos e prejudica a saúde e a segurança pública, exigindo políticas integradas que envolvam regulamentação equilibrada, fiscalização e repressão para conter seus efeitos.
ConJur — E como a regulamentação atua nesse contexto?
Augusto de Arruda Botelho — Uma regulamentação altamente restritiva só gera impacto sobre a indústria formal e abre espaço para o avanço do mercado ilícito. É um erro estratégico, pois transfere demanda para redes criminosas, derruba arrecadação, inviabiliza o controle de rastreabilidade, padrões de qualidade e rotulagem e subsidia a economia do crime organizado. Esse é exatamente o caso do cigarro. Está em discussão no STF a validade da RDC 14/2012, da Anvisa, que proíbe o uso de uma série de ingredientes em produtos fumígenos. Ao restringir a composição dos produtos legais a ponto de descaracterizá-los, a medida da Anvisa desconsidera a existência de um mercado ilegal que continuará comercializando seu produto sem restrições, com os mesmos componentes já utilizados e a preços muito mais baixos. O consumidor seguirá buscando o produto de sua preferência e, uma vez banido o produto legal como ele conhece, vai consumir um cigarro cuja composição é totalmente desconhecida e sem nenhum controle. A tendência é a ampliação do mercado ilegal de cigarros e o crescimento de crimes violentos, como mostrou um estudo recente da FGV.
ConJur — O que exatamente esse estudo revela?
Augusto de Arruda Botelho — Pela primeira vez foi possível demonstrar a conexão direta entre o mercado ilegal de cigarros e o crime organizado. A pesquisa evidencia que o aumento de um ponto percentual no mercado ilegal de cigarros está associado à ocorrência de cinco mil crimes, entre eles homicídios, roubos de carga e até mortes de policiais. É que no caso do cigarro, a regulação restritiva e a alta carga tributária produzem efeito diverso do que originalmente pretendido, já que os consumidores são empurrados para o mercado ilegal, que cresce e amplia o financiamento do crime organizado, produzindo efeitos negativos para toda a sociedade.
ConJur — Qual a extensão desses efeitos negativos?
Augusto de Arruda Botelho — Estamos falando da deterioração da segurança pública. O mercado ilegal já deixou de ser um problema apenas de contrabando. Há uma série de investigações que mostram que esse comércio é explorado por grupos criminosos como a milícia e os contraventores (jogo do bicho). Esses grupos aprenderam a operar fábricas clandestinas no país com o uso de trabalho análogo à escravidão e envolvimento em uma série de outros crimes, como lavagem de dinheiro, corrupção e homicídios. Recentemente, em uma operação em Vigário Geral, no Rio de Janeiro, a polícia desmantelou uma fábrica clandestina de cigarros supostamente ligada ao bicheiro Adilsinho, onde foram resgatados mais de 20 paraguaios que viviam e trabalhavam em condições análogas à escravidão. Mas esse problema não é restrito ao Rio de Janeiro. Ao longo dos últimos anos foram descobertas dezenas de fábricas ilegais em São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e em estados do Nordeste.
ConJur — O que pode ser aprimorado nesse processo de combate à economia do crime?
Augusto de Arruda Botelho — Investir na inteligência e integração das forças de repressão e melhorar a fiscalização são ações fundamentais, mas, hoje, já se mostram insuficientes diante do tamanho do problema. Muitos setores que sofrem com o mercado ilegal são altamente regulados, como cigarros, bebidas e combustíveis fósseis. O crime cresce ao explorar essas assimetrias. É preciso atacar os braços financeiros do crime organizado. Portanto, é fundamental que as medidas regulatórias sobre esses mercados sejam equilibradas e considerem o efeito total que será gerado, especialmente para evitar a ampliação do mercado ilegal como consequência. O combate eficaz não é o estrangulamento do setor formal, mas um tripé que combina regulação equilibrada, fiscalização inteligente e repressão cirúrgica que segue o dinheiro, confisca ativos e desarticula cadeias.
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