O procurador-geral de Justiça do Rio de Janeiro, Antonio José Campos Moreira, elegeu a segurança pública como a prioridade de sua gestão. E a principal estratégia para combater organizações criminosas de forma inteligente é a asfixia financeira.

O PGJ do RJ, Antonio José Campos Moreira
“Hoje, as organizações criminosas, que não são mais locais nem interestaduais, tendo projeção transnacional, movimentam cifras impressionantes. São bilhões de dólares, e a maioria dessas quantias é convertida em criptoativos”, afirma.
Para tornar as investigações mais eficazes, o Ministério Público do Rio firmou acordos com o Ministério Público de Portugal, a Procuradoria Antimáfia da Itália, autoridades dos EUA e cooperação com o Banco Mundial, ampliando o intercâmbio de informações sobre crimes financeiros transnacionais.
Além disso, o MP-RJ celebrou parcerias com a Controladoria-Geral da União para fortalecer o combate à corrupção e, com a Polícia Civil, um protocolo para a utilização em investigações do confisco alargado de bens. Houve também o aprimoramento dos fluxos de tramitação de inquéritos entre o MP-RJ e a Polícia Civil, além da implementação de novos protocolos de atuação em casos de violência doméstica.
No julgamento da arguição de descumprimento de preceito fundamental 635, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu diversas medidas para órgãos públicos relacionados à segurança pública do Rio. Entre elas, a de que o governo do estado e seus municípios elaborem planos de recuperação dos territórios dominados por organizações criminosas.
Embora não seja uma ordem diretamente relacionada ao MP-RJ, a instituição tem tomado medidas para ajudar o governo. A Procuradoria-Geral de Justiça promoveu articulação junto a operadoras de internet, Anatel, Polícia Federal, Ministérios da Justiça e das Comunicações visando ao enfrentamento do lucro obtido com o uso da rede clandestina por facções criminosas.
Depois de uma providência requerida pelo PGJ, a Anatel suspendeu, em julho, o regulamento sobre as outorgas de serviço que dispensa de autorização os pequenos provedores com até 5 mil acessos.
O MP-RJ também está estruturado para exercer o controle externo da atividade policial, aponta Moreira. Desde o início de seu mandato, em janeiro, o Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública (Gaesp) passou a monitorar operações policiais, com 321 comunicações analisadas nesse semestre e 241 notícias de fato instauradas no período.
O Gaesp já ofereceu 29 denúncias contra agentes de segurança, instaurou procedimentos investigatórios criminais e atuou em cerca de 35 reuniões estratégicas com as forças policiais e a sociedade civil.
No combate ao crime organizado, Moreira reestruturou o Grupo de Atuação Especializada no Combate ao Crime Organizado (Gaeco) para uma atuação mais efetiva no combate às milícias, tráfico e jogo do bicho. No primeiro semestre, o grupo ofereceu denúncias contra 310 acusados, incluindo 44 agentes públicos.
Leia a entrevista:
ConJur — Quais são os principais objetivos da sua gestão?
Antonio Moreira — Nós elegemos como prioridade a área de segurança pública. Isso envolve uma reestruturação da nossa atuação na área criminal. Nessa linha, nós fortalecemos o Grupo de Atuação Especializada no Combate ao Crime Organizado (Gaeco). O Gaeco já existia antes da nossa gestão, mas nós o fortalecemos e criamos outros grupos de atuação especializada. Um deles é o Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública. Ele está estruturado em três eixos: um núcleo criminal, outro de tutela coletiva e o terceiro de monitoramento das operações policiais.
Vale ressaltar que, o Supremo, na decisão final da ADPF 635, dispensou as polícias de fazerem a comunicação prévia de operações ao Ministério Público, mas nós ajustamos com a Polícia Civil e a Polícia Militar que essa comunicação prévia fosse mantida. Então nós mantivemos o plantão, ampliamos a nossa estrutura interna e já tivemos já atuações emblemáticas. Na operação na favela Santo Amaro, que vitimou Herus (morador de 23 anos morto na ação policial), nós recebemos a comunicação e imediatamente três promotores foram para o local. Eles estiveram presentes no Instituto Médico Legal, acompanharam a necropsia do cadáver, que também foi feita por uma perícia independente, com um scanner de última geração. As investigações estão em fase final. Esse acompanhamento possibilitou que os promotores encarregados da investigação e de eventual denúncia chegassem a conclusões a respeito da dinâmica do fato alicerçadas nessa prova técnica.
O Supremo determinou na ADPF 635 que promotores devem comparecer ao local do crime quando possível e estabilizado. Isso nós já tínhamos estabelecido no MP-RJ antes da decisão. O grupo foi criado antes da decisão, a nossa perícia independente já estava estruturada. Então aumentamos o quadro de peritos, justamente para poder fazer uma perícia independente em cada caso de morte decorrente de intervenção policial ou que tenha como vítima policial. E estamos instaurando procedimento investigatório criminal em todos esses casos, na linha do que o Supremo decidiu.
ConJur — A investigação direta pelo MP-RJ é um dos focos da sua gestão. O que mais tem sido feito para aumentar a qualidade das investigações?
Antonio Moreira — Nós estamos procurando qualificar ainda mais a nossa investigação, com ênfase na investigação patrimonial. Nós temos uma coordenação autônoma de inteligência da investigação. Nós assinamos recentemente um acordo de apoio e cooperação técnica com o Ministério Público de Santa Catarina. Essa ferramenta permite o rastreio rápido de ativos virtuais, criptomoedas, criptoativos. Está se formando um consenso de que, tão ou mais importante do que perseguir criminalmente objetivando a prisão do acusado, é a recuperação do produto ou do proveito do crime. Isso implica asfixiar financeiramente as organizações criminosas, que se valem de processos sofisticados de lavagem de dinheiro.
O intuito é diminuir o poderio econômico e financeiro delas. Hoje, as organizações criminosas, que não são mais locais nem interestaduais, tendo projeção transnacional, movimentam cifras impressionantes. São bilhões de dólares, e a maioria dessas quantias é convertida em criptoativos. Essa ferramenta vai nos possibilitar rastrear e viabilizar a asfixia econômica e financeira das organizações criminosas.
Nós também celebramos acordo com a Procuradoria Nacional Antimáfia e Antiterrorismo da Itália. Há notícia de que terroristas estão se infiltrando no Brasil à procura de recursos para financiar suas organizações. Isso é muito perigoso, porque é uma simbiose entre a criminalidade organizada e organizações terroristas transnacionais.
ConJur — Talvez a medida mais importante da ADPF 635 seja a determinação para que o estado do Rio de Janeiro e seus municípios elaborem planos de recuperação dos territórios dominados por organizações criminosas. Como o MP pode atuar nesse sentido?
Antonio Moreira — Essa determinação é endereçada especificamente ao governo do estado, não alcança o Ministério Público. Agora, compreendemos que o Ministério Público deve ser parte da solução dos problemas. Nós temos mantido um diálogo permanente com o governo do estado, a Secretaria de Segurança Pública, a Secretaria de Polícia Civil e a Secretaria de Polícia Militar. Temos procurado dar nossas contribuições e algumas sugestões. O plano está sendo elaborado no âmbito do governo estadual. O prazo de seis meses está terminando, e nós vamos acompanhar a execução desse plano.
O que diferencia o Rio dos outros estados, em matéria de criminalidade, é o domínio de territórios. Isso coloca em xeque não apenas a segurança, mas também a soberania do Estado. Isso permitiu que as organizações criminosas ficassem muito fortes. Hoje, por nossas investigações e processos, constatamos que o tráfico de drogas é até uma atividade secundária. A exploração de serviços e comércio ilegal, o domínio da economia local rende ainda mais lucro.
Além disso, o espaço do MP-RJ está sendo utilizado pelo comitê criado no âmbito do Conselho Nacional do Ministério Público, por determinação do Supremo, para fiscalizar o cumprimento do acórdão da ADPF 635. O fato de sediarmos o comitê revela a confiança do CNMP no MP-RJ, da mesma forma que a decisão final do Supremo revela a confiança no nosso MP-RJ, porque nos empoderou muito, aumentando a nossa responsabilidade.
ConJur — Há quem afirme que as polícias do Rio de certa forma viraram quase autônomas, não respondem ao governador. Com as determinações do STF, o MP vai ajudar a aumentar o controle sobre as polícias e reduzir a letalidade?
Antonio Moreira — Já houve uma redução bastante significativa. A nossa linha de atuação institucional procura equilibrar interesses e respeitar a Constituição e as leis. Não somos nem parceiros nem opositores incondicionais das polícias. Apoiamos tudo o que for feito de acordo com a lei, respeitados os diretos e garantias individuais de todos. Mas buscamos prevenir e reprimir crimes.
É preciso tirar a política do controle externo da atividade policial. Não é nem o discurso criminoso de que “bandido bom é bandido morto” nem dizer que o “bandido é vítima da sociedade”. O crime hoje é uma atividade predominantemente organizada. Por trás do roubo de celular há um receptador, todo um esquema. É uma empresa. E isso vai subindo de escala, sendo que há organizações criminosas que lavam bilhões de reais, são verdadeiramente estruturadas, têm métodos sofisticados e tem a característica da transnacionalidade. Então, é preciso acabar com essa história de que bandido é “vítima da sociedade”. Não é. Vítima mesmo é a vítima do crime, são as populações mais pobres, que estão sob o domínio de delinquentes perigosíssimos, liderados por psicopatas. Essas são as vítimas. Os outros, dentro da sua realidade, fazem suas escolhas e devem responder por elas.
ConJur — O governador Cláudio Castro (PL) vem tentando fazer com que organizações como Comando Vermelho sejam consideradas terroristas. Como avalia essa tentativa? Que impacto ela teria?
Antonio Moreira — Eu tenho uma enorme preocupação institucional com isso. A minha avaliação é que o conceito de organização criminosa está na lei, e essas organizações não se enquadram no conceito legal de organização terrorista. Elas são terroristas na forma de agir, mas não nos moldes da nossa lei.
ConJur — Como combater a milícia, que tem muitos agentes do Estado em suas fileiras?
Antonio Moreira — O formato da milícia mudou muito. As milícias nos anos 2000 eram compostas basicamente por agentes de segurança pública — policiais militares, policiais civis, agentes penitenciários e até por militares das Forças Armadas. A milícia de hoje tem um outro perfil, o miliciano de hoje está mais próximo do traficante do que das forças policiais. Hoje há traficantes que atuam como milicianos, e milicianos que atuam como traficantes. Onde a guerra não termina, ninguém vence, se forma uma espécie de consórcio. Cada um explora serviços no mesmo território, um é a milícia e o outro traficantes. Agora, o tráfico tem vencido, o Comando Vermelho se expandiu muito. Isso ocorreu dentro do contexto da liminar na ADPF 635. A liminar foi correta em um primeiro momento, mas demorou para ser revogada. Cinco anos é muito tempo, então o Comando Vermelho se expandiu.
ConJur — O senhor diz isso porque a liminar restringiu as operações policiais a casos excepcionais?
Antonio Moreira — O Supremo reconheceu cinco anos depois que o que seria excepcionalidade, em um mundo minimamente normal, hoje é regra, por isso voltou atrás. A decisão final é uma decisão coletiva dos ministros, com um voto único assinado por todos. Nele está dito com todas as letras que não podemos condicionar as operações policiais a um cenário de excepcionalidade. Porque o que seria excepcional hoje é o normal na realidade do Rio.
ConJur — Como o MP-RJ tem usado a tecnologia no combate à criminalidade?
Antonio Moreira — Hoje o principal uso é a interceptação telemática. A interceptação telefônica é pouco utilizada, porque ninguém mais fala pelo telefone. Temos um acordo com a polícia de cooperação técnica, objetivando o confisco alargado. O confisco alargado é o perdimento de bens dos bens cujo valor exceda a renda lícita do condenado. Essa medida, instituída pela lei “anticrime” (Lei 13.964/2019) é um grande avanço, pois encontrávamos pessoas com um patrimônio absolutamente incompatível com sua renda legal.
O próximo passo é estabelecer o confisco civil. Há um projeto de lei em fase embrionária de tramitação no Congresso, vamos trabalhar por ele. O confisco civil é muito utilizado na Europa. É usado em casos de pessoas que não estão sendo acusadas da prática de crime, mas cujo patrimônio não se justifica. É um dos principais instrumentos de combate à criminalidade organizada, dentro da lógica de asfixiar as organizações criminosas e reduzir seus lucros. Um empresário regular, que trabalha na legalidade, não tem como competir com o lavador de dinheiro que injeta recursos na economia formal para dar aparência de legalidade a valores obtidos ilegalmente. Nas áreas dominadas por organizações criminosas no Rio, é tudo dominado, está no nome de terceiros.
O ruim no Brasil é que ainda hoje nós mantemos um discurso enviesado, ideológico, absolutamente superado, uma lógica de conflito de classes, uma visão de mundo da Guerra Fria. Nós mantemos, principalmente na academia e na criminologia crítica, o discurso de que “o bandido é vítima da sociedade”, criminosa é a sociedade. E não é. É claro que existem desigualdades e tudo mais, mas a coisa chegou a um ponto em que as classes menos favorecidas são operariado do crime. O cara que troca tiros com a polícia no morro é um, mas o que lava dinheiro é outro. O problema do crime organizado é um problema global, que põe em cheque a soberania dos Estados.
ConJur — Nos últimos tempos houve uma popularização das casas de apostas eletrônicas. Elas passaram a ter autorização para funcionar expedida não só pela União, mas também por estados e municípios. Isso pode facilitar a lavagem de dinheiro?
Antonio Moreira — Muitíssimo. Esse é um questionamento do Ministério Público brasileiro, porque as leis que regulamentam essas apostas são muito novas. É um mercado que se expande assustadoramente, e é óbvio que isso é um mecanismo excepcional para a lavagem de dinheiro. Se até a loteria esportiva já serviu para essa finalidade, o que falar das bets?
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