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Direito Civil Atual

Quando a inovação encontra o Direito

10 de novembro de 2025, 15h17

O jornal Valor Econômico publicou na edição de hoje (10/11/2025), uma interessante reportagem da jornalista Beatriz Olivon sobre um caso que retornou à pauta de julgamento do Superior Tribunal de Justiça, envolvendo a Redecard (atual Rede), de propriedade do Banco Itaú, e a empresa Zolkin, uma espécie de pioneira do sistema de cashback no Brasil [1]. Trata-se de um caso com grande repercussão para a economia digital no país e para o desenvolvimento das novas tecnologias no sistema financeiro, que atravessa um momento disruptivo.

A ação envolve a Zolkin e tem por objeto a reparação por danos causados pelo descumprimento contratual por parte da então Redecard, dona da conhecida “laranjinha”, máquina presente em milhares de estabelecimentos comerciais Brasil afora. Criada no início da década de 2010, a Zolkin inovou ao unir programa de benefícios e meio de pagamento via moeda digital em uma época em que o termo “cashback” sequer existia no vocabulário do consumidor brasileiro. O cliente ganhava moedas virtuais sempre que pagava suas contas no varejo, experimentando de imediato uma redução efetiva no valor devido ao estabelecimento. O que era pago em moeda corrente se convertia em novos “Zolkins”, gerando um ciclo virtuoso ao usuário, que poderia deles se utilizar em novo pagamento.

Com quase 100 mil usuários cadastrados e mais de uma centena de estabelecimentos parceiros só na cidade de São Paulo, a empresa negociava em 2013 a integração de sua tecnologia às “maquininhas de cartão”, então dominadas pelo duopólio Redecard (Itaú) e Cielo. Após negociações preliminares com a Cielo, a Zolkin seguiu para os braços da Rede (Itaú), que atravessara o negócio da concorrente oferecendo-lhe uma parceria firme e estratégica que lhe possibilitaria estar em todas as suas “laranjinhas”. Isto abriria à Zolkin o pronto potencial de acesso a mais de um milhão de estabelecimentos e dezenas de milhões de clientes em todo o país, que se valem diariamente do serviço de adquirência.

O que se seguiu, porém, foi um processo de inviabilização dessa parceria: testes inadequados, falhas operacionais e descumprimentos reiterados pela Rede teriam gerado o incumprimento total do contrato e corroeram a reputação da Zolkin no mercado, levando-a à ruína econômico-financeira. Ela não alcançou a escala planejada e ainda arrasou o que tinha construído. O impacto disso está descrito na matéria do Valor Econômico: “A ideia era integrar os sistemas de acesso às moedas virtuais e de pagamento de compras. Até então, havia uma maquininha para cada função. Na época, a moeda virtual já funcionava, de forma mais artesanal, em parcerias com restaurantes em São Paulo. A empresa chegou a ter mais de 100 mil usuários e 120 estabelecimentos cadastrados no aplicativo na cidade de São Paulo[2].

De acordo com o Valor Econômico, “em primeira instância, a Redecard foi condenada a pagar R$ 300 milhões, incluindo indenização e lucros cessantes. No Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), porém, o valor foi reduzido para pouco mais de R$ 22 milhões. O caso foi levado ao STJ em recurso da Redecard[3]. Nesse total, estavam somados investimentos, lucros cessantes e o valor da empresa destruída.

Ainda conforme o jornal, o TJ-SP, por sua 4ª Câmara de Direito Privado, no entanto, ao julgar a apelação, admitiu a parceria, o ilícito, o dano, a responsabilidade, mas reduziu o valor a R$ 22,5 milhões. O acórdão, por maioria, desconsiderou fundamentos técnicos e a prova pericial. Contraditoriamente, assumiu todos os fundamentos da decisão de primeiro grau, mas deixou de indenizar os sócios pelo valor da empresa arruinada.

O caso é interessantíssimo. Ele mais parece uma série de Netflix, dada a matéria atualíssima e as personagens envolvidas, com extenso rol de testemunhas e muita documentação. Independentemente disto, trata-se de debate genuíno e muito oportuno sobre a economia digital e contratos tecnológicos, que cada vez mais permeiam nossa sociedade.

ConJur

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Nesse sentido, doutrinariamente, a disputa entre Rede e Zolkin encontra – per analogiam – eco em diversos entendimentos doutrinários, antigos e modernos.

Na base da controvérsia está a natureza dos contratos de colaboração empresarial na economia digital, com a questão de sua atipicidade, complexidade e centralidade para a inovação. Em setores disruptivos, a economia digital não se enquadra em modelos clássicos de prestação de serviços: trata-se de um ecossistema baseado em inovação, escalabilidade, confiança e compartilhamento de riscos e resultados.

No processo, de acesso público, estão lançados pareceres de renomados juristas como Judith Martins-Costa, Sílvio de Salvo Venosa, Bruno Miragem e José Rogério Cruz e Tucci. Todos defendem, em maior ou menor grau, que nos contratos colaborativos empresariais dos quais resulte incumprimento e perdas e danos, a indenização deverá levar em consideração 3 fatores:

(1) os danos que afetaram a continuidade e  a potencialidade econômica do negócio, elementos que devem ser considerados ativos intangíveis, além da escalabilidade e da expectativa legítima de retorno.

(2) a força da prova pericial, que é fundamental para avaliar os efeitos do inadimplemento, evitando decisões baseadas em impressões subjetivas.

(3) a natureza probante do plano de negócios, documento que revela projeções, metas, investimentos e expectativas econômicas pactuadas entre as partes.

Nesse processo, após a leitura da sentença, percebe-se que todos esses parâmetros foram integralmente contemplados na instrução dirigida pelo juízo de primeiro grau [4]. O magistrado reconheceu a partir das provas que o contrato envolvia parceria empresarial estratégica, com cláusulas de exclusividade, metas conjuntas e opção de compra — típicas de parcerias empresariais e não de subcontratação. O acórdão de mais de 100 laudas do TJ-SP, a princípio, caminhou pela mesma trilha, mas, ao final, decidiu afastar o laudo pericial sem justificativa técnico-jurídica adequada, substituindo critérios objetivos por impressões subjetivas e muito futurológicas [5]. Para se ter uma ideia, valeu-se dos efeitos da pandemia sobre a Economia como elemento de calibragem da indenização devida, olvidando, porém, que a relação contratual entre as partes se encerrou em 2017, muito antes da famigerada chegada da Covid-19 ao Brasil. Se for aceita essa postura, aberto estaria o campo para o desrespeito aos limites do livre convencimento motivado, gerando insegurança jurídica e desestimulando a inovação.

Em contratos de inovação, a prova técnica e o business plan parecem dever ser o alicerce da mensuração de danos pelo Judiciário. A prova pericial é essencial a tal sorte de litígio. Ignorá-los significa caminhar pela estrada da subjetividade e minar a confiança no ambiente jurídico, afastando investimentos, sobretudo, no setor de tecnologia.

Essência da parceria

No parecer de meu colega José Rogério Cruz e Tucci, professor titular sênior do Departamento de Direito Processual da Faculdade de Direito da USP, ele cita trabalho doutrinário do ministro Mauro Campbell, no sentido de que não é “possível em sede de recurso especial a revaloração das provas, quanto aos aspectos fáticos, sendo, por outro lado, perfeitamente viável a revaloração jurídica dos fatos, em termos de requalificação legal das provas reconhecidas no acórdão recorrido” [6]. Essa possibilidade impacta diretamente na possibilidade de privilegiar a qualificação jurídica do contrato firmado entre Zolkin e Rede, sendo que, segundo o parecer de Bruno Miragem, “o conjunto contratual indica, com toda a evidência, que a natureza do contrato não se limita em uma prestação de serviços, assumindo a feição de colaboração comercial, como evidenciam tanto os termos em que estabelecidos o Contrato de Captura e Transmissão no Sistema Rede, quanto o acordo de confidencialidade celebrado anteriormente”.

É o que Pontes de Miranda define como a própria essência da parceria, cujo “objeto da contraprestação é parte dos lucros que obtenha o adquirente, com a aplicação que se colima” [7], dado que esse negócio jurídico caracteriza-se “pelo facto de uma pessoa prometer certa prestação em troca de uma qualquer participação nos proventos que a contraparte obtenha por força daquela  prestação” [8].

Na prática, neste processo, observou-se o abandono de um entendimento técnico-pericial sólido em substituição por uma leitura subjetiva do julgamento em segundo grau, baseado em máximas da experiência. Nesse sentido, a doutrina também define que “as regras de experiência técnica, por sua vez, demandam o conhecimento técnico para a conformação de seu conteúdo. A passagem do não-jurídico (Engenharia, Medicina, Contabilidade ou Economia) para o jurídico é feita sobre a mediação científica ou técnica.  (…) O problema surge quando o magistrado substitui esse conhecimento técnico ou científico, expressado no laudo pericial, sem a ocorrência das exceções (i – formação própria) ou (ii – teratologia). Substituem-se as regras de experiência técnica pela discricionariedade judicial. O magistrado passa a dialogar com o laudo com suporte em apreciações genéricas, destituídas de fundamento especializado ou, o que é pior, em percepções subjetivas, ainda que envoltas em uma embalagem de juridicidade ou de erudição” [9].

A Inovação tem encontro marcado com o Direito e o STJ tem a chance de reafirmar a centralidade da prova técnica e fortalecer a segurança jurídica em negócios tecnológicos, condição essencial para que empresas brasileiras possam inovar, escalar e competir em um mercado cada vez mais importante à nossa economia.

 


[1] https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2025/11/10/stj-julga-pedido-de-indenizacao-milionario-contra-a-redecard.ghtml.

[2] https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2025/11/10/stj-julga-pedido-de-indenizacao-milionario-contra-a-redecard.ghtml.

[3] https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2025/11/10/stj-julga-pedido-de-indenizacao-milionario-contra-a-redecard.ghtml.

[4] https://esaj.tjsp.jus.br/cjpg/pesquisar.do?conversationId=&dadosConsulta.pesquisaLivre=&tipoNumero=UNIFICADO&numeroDigitoAnoUnificado=1109147-08.2018&foroNumeroUnificado=0100&dadosConsulta.nuProcesso=1109147-08.2018.8.26.0100&dadosConsulta.nuProcessoAntigo=&classeTreeSelection.values=&classeTreeSelection.text=&assuntoTreeSelection.values=&assuntoTreeSelection.text=&agenteSelectedEntitiesList=&contadoragente=0&contadorMaioragente=0&cdAgente=&nmAgente=&dadosConsulta.dtInicio=&dadosConsulta.dtFim=&varasTreeSelection.values=&varasTreeSelection.text=&dadosConsulta.ordenacao=DESC.

[5] https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=18704384&cdForo=0.

[6] CAMPBELL MARQUES, Mauro et alii. Recurso especial. Curitiba: Editora Direito Contemporâneo,2022. pág.238.

[7] PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado.. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. § 4.889, 1. Tomo 45. p. 183. (também citado no parecer de Judith Martins-Costa)

[8] MOTA PINTO, Carlos Alberto da. Teoria Geral do Direito Civil. 4. ed. rev. Coimbra, Coimbra Editora.  p. 405. (também citado no parecer de Judith Martins-Costa)

[9] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Dano, máximas da experiência comum, regras da experiência técnica  e vinculação à prova pericial. In. Visão pós-jurídica. Rio de Janeiro, GZ Editora. p.658-659.

Teresa Ancona Lopez

é professora titular sênior da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

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