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O Poder Judiciário na defesa da democracia

12 de novembro de 2025, 08h00

O 8º Relatório da Democracia do ano de 2024 do Instituto Variedades da Democracia (V-Dem) do Departamento de Ciência Política da Universidade de Gotemburgo aponta que o mundo está equitativamente dividido entre 91 democracias e 88 autocracias. O problema maior é que não mais de dez anos atrás essa proporção girava em torno de 1/3 para autocracias e 2/3 para democracias e boa parte dos processos de autocratização foram não autônomos, ou seja, foram as democracias, por seus próprios meios, que se transformaram em autocracia.

O referido Relatório da Universidade de Gotemburgo identifica 3 pontos como principais no diagnóstico da piora da democracia:

(1) a afetação da liberdade de expressão

(2) afetação da liberdade de associação e

(3) a debilitação das eleições.

Esse fenômeno se dá pelo já amplamente conhecido processo de erosão da democracia por mecanismos essencialmente democráticos. É, todavia, extremamente paradoxal, complexo e precisa ser melhor entendido. Isso porque cada um dos indicados pontos de aferição da democracia são também aqueles em que se fundamentam os atuais autocratas para construir seus discursos populistas.

Especialmente após a crise econômica de 2008 uma parcela ressentida da população afetada diretamente pela falta de oportunidades estava suscetível a se voltar contra um grupo de culpados. Como disse ontem o ministro Gilmar Mendes [1], aconteceu nas manifestações de 2013 no Brasil, mas também o 15M na Espanha e o Occupy Wall Street, entre outros, que se indignavam não apenas, mas também contra a classe política tradicional.

Não tardou para que populistas se apropriassem desse sentimento. E como diz Laclau, não há populismo sem um inimigo. Seja contra imigrantes nos países do Norte global, seja contra populações periféricas e subjugadas das sociedades pós-coloniais do Sul, o populismo encontrou na xenofobia e no racismo o terreno fértil para que o movimento reacionário tomasse boa parte do mundo e se disseminasse uma espécie de ódio comum e característico.

A criação de inimigos não está sozinha, ela se alinha a outras duas estratégias típicas dos discursos populistas do século 21: (1) o conspiracionismo, consistente na elaboração de fantásticas teorias conspiratórias fundadas essencialmente em uma verdadeira guerra contra a verdade, aquilo que se convencionou chamar de fake news; e (2) a normalização da violência decorrente do ódio, sem qualquer respeito à legalidade, cuja aplicação se volta contra grupos de inimigos rotulados de criminosos, vagabundos, ou qualquer outro termo pejorativo que justifique o encorajamento do excesso de violência inclusive pessoal dos integrantes do grupo majoritário.

Assim, constrói-se uma maioria que por meio de eleições, mecanismo essencial à democracia, elegem populistas reacionários. A complexidade ainda se incrementa pela inegável popularidade que alcançaram esses movimentos, que passam a reivindicar os pilares da democracia em seu favor, em um verdadeiro duplipensar ao estilo de Orwell. É dizer, em outras palavras, passam a invocar a vontade da maioria para subjugar a minoria e seus direitos, construindo assim o que Yasha Mounk [2] chamou de “Democracia Iliberal”.

No entanto essa é uma visão enviesada e simplificadora da democracia como vontade da maioria. Porquanto não há democracia sem instituições sólidas. Vou me apropriar, para tornar a tarefa mais compreensível, da classificação de Ferrajoli [3], que rompe com a tripartição de Poderes de Montesquieu, para propor uma divisão entre instituições e funções de governo e de garantias.

Para ele há instituições e funções de garantia primária (educação pública, saúde e seguridade social) que compartilham das características do Poder Judiciário: o caráter tendencialmente cognitivo do seu exercício, geralmente puramente técnica, dos direitos consagrados na Constituição, portanto sua legitimidade não está nem no consenso político, tampouco na vontade da maioria.

Às funções judiciais de garantia secundária, juntamente com as instituições e funções de garantia primárias correspondem à dimensão substancial da democracia, garantindo a esfera do indecidível constituído pela proteção e satisfação dos direitos fundamentais. Delas se distinguem as funções de governo que correspondem à dimensão formal da democracia.

Monopresidente e os poderes contramajoritários

A eleição de um autoproclamado outsider com discurso e pautas autocratas não encerram, portanto, o ciclo de autocratização de uma democracia, sendo necessário que as estruturas desenhadas para o exercício do poder possibilitem essa transição para o autoritarismo. Como estamos em um evento que une Brasil e Argentina, trago aqui a crítica formulada pelo professor catedrático desta Universidade de Buenos Aires Raúl Gustavo Ferreyra [4] ao hiperpresidencialismo exacerbado observado em muitos sistemas de governo da América do Sul.

Em sua compreensão, o monopresidente é uma figura política que acumula um conjunto imponente de atribuições e poderes, o que desestrutura a construção dialética da democracia e pode degenerar em uma autocracia eletiva. Isso ameaça a divisão de poderes e deve ser debelado com a restauração do equilíbrio do poder e fortalecer o sistema de freios e contrapesos.

Desempenham um importante papel na atenuação do exercício abusivo do poder monopresidencial as já explicitadas instituições e funções de garantia, que não estão sujeitos à vontade da maioria, daí seu caráter cognitivo, são poderes contramajoritários, independentes e conduzidos pela verificação da verdade.

É nesse sentido que o Poder Judiciário passa a ter centralidade na manutenção da democracia. Tem a função tecnocrática – na expressão de Yasha Mounk – de garantir direitos que constituem os fundamentos da democracia a partir da verificação da verdade e, por isso, qualquer atentado contra o Estado Democrático de Direito deve ser devidamente debelado pelo Poder Judiciário.

É importante frisar que quando se fala em garantir direitos não se pode restringir aos atentados diretos contra a democracia, como aquele de 8 de janeiro de 2023, mas também ao atentado contra a população pobre, preta e periférica das favelas, como aconteceu em 28 de outubro deste ano no Rio de Janeiro.

O fenômeno autoritário que faz aspirantes a autocratas invadirem as sedes dos três poderes para reverter o resultado de eleições diretas sob o argumento conspiratório de que as eleições foram fraudadas por urnas eletrônicas não auditáveis, também é aquele que naturaliza a violência contra inimigos internos, materializando o ódio às minorias periféricas, a população subcidadã matável que a herança colonial fez questão de não apagar.

É o fenômeno que Christian Lynch e Paulo Cassimiro [5] chamou de populismo reacionário, que marca a precedência da autoridade tradicional sobre a liberdade e defende que a ordem constitucional estabelecida em 1988 destruiu a ordem conservadora, a tradição da família e dos valores cristãos que devem ser restaurados, o que justificaria a ruptura institucional. Seja a ruptura representada pelo Golpe de Estado e a Abolição Violenta do Estado de Direito, seja a ruptura representada pela autorização para aplicação direta da pena de morte pela polícia fluminense.

O desprezo pelos direitos constitucionais não é coincidência, mas sim o exato ponto de encontro entre o Atentado de 8 de janeiro e a Chacina de 28 de outubro.

Importa admitir que no primeiro caso quase 90% da população manifesta sua opinião contra a tentativa de golpe, mas no segundo caso a popularidade da medida de invasão e morte das pessoas moradoras de comunidade, infelizmente é de aprovação.

Ora, pouco importa se as pessoas mortas eram ou não pertencentes ao grupo criminoso, porque a função da polícia é prender e não matar. E se alguma função pode ser atribuída à pena, na feliz metáfora do professor Zaffaroni [6], é funcionar como um dique de contenção para reduzir a violência do Estado ao mínimo. Assim, é a pena legalmente estabelecida o efetivo limite imposto ao próprio poder constituído, não havendo possibilidades democráticas em se admitir o assassinato assacado por agentes do Estado fundamentado na aprovação da maioria.

Não apenas, mas também por isso, esse fenômeno que Yasha Mounk chamou de “Democracia Iliberal” talvez possa ser melhor compreendido como uma “Ditadura da Maioria”.

Na metáfora de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt [7], é o Poder Judiciário que desempenha o papel de “grades de proteção” da democracia. Seja pelo julgamento dos crimes contra o Estado democrático de Direito, seja pelos processos judiciais constitucionais, como a ADPF das Favelas, porque apenas um Poder não fundado na suposta vontade popular pode garantir que direitos não estejam situados no limbo da maioria de ocasião.

 


[1] Refiro-me à palestra de abertura do evento.

[2] MOUNK, Yasha. O povo contra a democracia. Tradução Cassio de Arantes Leite e Débora Landsberg. Companhia das Letras. 2019.

[3] FERRAJOLI, Luigi. A construção da democracia: teoria do garantismo constitucional. Coordenação da tradução Sérgio Cademartori. Florianópolis: Emais, 2023.

[4] FERREYRA, Raúl Gustavo. Esboço sobre a Constituição. Tradução Carolina Cyrillo e Roddrigo Visotto. NIDH. 2023 e El Señor Monopresidente. Revista Jurídica de Palermo. Ano 22, n. 1, junho, 2024.

[5] LYNCH, Christian e CASSIMIRO, Paulo Henrique. O Populismo reacionário. Rio de Janeiro: Contracorrente, 2024.

[6] ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas. Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991.

[7] LEVITSKY, Steven e ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2018.

Antonio Eduardo Ramires Santoro

é advogado, professor adjunto da UFRJ e professor da Universidade Gama Filho e da Emerj. Doutor e mestre em Filosofia (UFRJ). Mestre em Direito (Universidade de Granada, Espanha).

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