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Justo Processo

O dever de fundamentação na decisão que recebe a denúncia (parte 1)

15 de novembro de 2025, 08h00

O presente artigo, dividido em duas partes, propõe-se a refletir sobre a imprescindibilidade de uma fundamentação substancial — e não meramente ritual — na decisão de recebimento da denúncia.

Até meados dos anos 2000, no cenário processual penal brasileiro, frequentemente os atos judiciais de recebimento da denúncia eram desprovidos de fundamentação mínima, muitas vezes reduzidos a uma linha carimbada ou manuscrita pelo magistrado, com o seguinte conteúdo: “recebido nesta data. Cite-se”. Tal praxe assentava-se na interpretação de que o juízo de admissibilidade da peça acusatória configurava despacho de mero expediente, que dispensava motivação.

A superação dessa orientação hermenêutica foi imposta, a princípio, pela crescente exigência dos tribunais superiores quanto à imprescindibilidade de fundamentação de todos os provimentos judiciais e, concomitantemente, pelas significativas inovações legislativas introduzidas pela Lei nº 11.719/2008 no Código de Processo Penal. Esta reforma, ao positivar hipóteses de rejeição da denúncia e de absolvição sumária, elevou a resposta à acusação a um patamar dialético, apto a veicular teses defensivas de mérito ou preliminares que poderiam obstar, desde logo, o prosseguimento da persecução penal.

A práxis forense, contudo, não acompanhou essa inflexão: não obstante a inegável natureza decisória e a centralidade do recebimento da denúncia para a higidez do processo, uma parte do judiciário continuou reduzindo essa decisão a um provimento meramente procedimental, desonerado da apreciação exauriente das teses defensivas suscitadas na fase preambular.

Essa lamentável persistência em desconsiderar o devido juízo de admissibilidade foi emblematicamente evidenciada no julgamento do AgRg no HC nº 740.253 [1] pela 6ª Turma do STJ, no qual a defesa, ao apresentar a resposta à acusação, arguira a nulidade de todo o acervo probatório, com fundamento na violação do direito fundamental à privacidade, consubstanciada na indevida devassa policial do aparelho celular do investigado sem a indispensável autorização judicial.

Em que pese a densidade da objeção, o juiz de primeiro grau, na decisão de recebimento da denúncia, não apreciou a tese suscitada pela defesa. O Tribunal de Justiça ratificou a decisão, afirmando que o juízo a quo não era obrigado, naquela fase processual, a apreciar todas as teses defensivas. A defesa, então, impetrou o HC no STJ.

Ao julgar o caso, a 6ª Turma do STJ firmou duas teses de relevo normativo: “(1) A decisão que ratifica o recebimento da denúncia deve ser fundamentada, ainda que de forma sucinta, abordando as teses defensivas apresentadas na resposta à acusação; (2) A ausência de fundamentação adequada na decisão de recebimento da denúncia viola o art. 93, IX, da Constituição Federal, e compromete o exercício da ampla defesa”.

Entende-se acertada a orientação, por reconectar o juízo de admissibilidade ao devido processo e às garantias constitucionais dele decorrentes. Iniciaremos a justificativa dessa avaliação positiva do posicionamento jurisprudencial pela análise do dever constitucional de fundamentação de todas as decisões judiciais.

O dever constitucional de fundamentação de todas as decisões judiciais.

O dever de motivação dos atos decisórios penais é uma das garantias fundamentais decorrentes do princípio do devido processo penal. Segundo as lições de Rogério Lauria Tucci [2], é por meio da fundamentação que o juiz responsável pelo ato decisório explicita como compreendeu os fatos e interpretou a norma aplicável, assegurando, com a necessária clareza, coerência e precisão, a plena compreensão do tratamento conferido a todas as questões suscitadas e, sobretudo, da conclusão alcançada. Ainda segundo o autor, o dever funcional de motivação das decisões atenderia a quatro finalidades: no plano subjetivo, evidenciar e racionalizar o posicionamento do órgão julgador que, sem a motivação, permaneceria com sua convicção no plano intuitivo; no plano objetivo, persuadir as partes; no campo da hierarquia funcional, permitir o controle crítico da decisão, propiciando uma análise delimitada pelo órgão recursal; servir para o aprimoramento da aplicação do direito como orientação jurisprudencial.

Spacca

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Cumpre sublinhar, ademais, que o constituinte erigiu em imperativo categórico a fundamentação de todas as decisões judiciais (CF, artigo 93, IX), sem operar qualquer distinção entre interlocutórias, sentenças ou acórdãos. Daí deflui um corolário inequívoco: todo ato processual que ostente natureza decisória deve vir acompanhado de motivação suficiente e pertinente pois somente assim se preservam a transparência do raciocínio jurisdicional e a controlabilidade democrática do exercício da jurisdição. A exceção é estrita e funcional: os atos de mero expediente, destituídos de carga decisória e incapazes de afetar posições jurídicas das partes, dispensam motivação.

Estabelecida essa premissa, para avançar, agora, no raciocínio silogístico, é imperioso definir qual a natureza jurídica do ato de recebimento da denúncia.

A natureza jurídica da decisão de recebimento da denúncia.

Em primeiro lugar, é necessário destacar que a reforma processual penal de 2008 provocou imensa confusão ao fazer referência ao ato de recebimento da denúncia em dois dispositivos diferentes, relativos a dois momentos processuais também distintos.

Nos termos do artigo 396 do CPP, nos ritos ordinário e sumário, delineia-se um primeiro marco procedimental: apresentada a peça acusatória e inexistindo rejeição liminar, o magistrado a recebe e determina a citação do imputado para oferecer resposta escrita no prazo de dez dias.

A par desse momento, o legislador, com inequívoca atecnia terminológica, voltou a empregar o verbo “receber” no artigo 399 do CPP para designar etapa posterior do iter processual, na qual, já tida por recebida a acusação, o ato subsequente limita-se à organização da marcha do feito, com a designação de data e horário de audiência e a expedição das intimações necessárias.

São dois atos inegavelmente distintos, mas os dois têm caráter decisório. Para tentar conferir alguma racionalidade à celeuma criada pelo legislador, Elmir Duclerc [3] se posiciona entre os que consideram o ato do artigo 396 como um “ato precário” de recebimento, sempre sujeito à confirmação ou não por meio da decisão previsa no artigo 399. De qualquer sorte, fato é que a jurisprudência consolidou o entendimento de que o ato do artigo 396 é o que promove a interrupção da prescrição, nos moldes do artigo 117 do Código Penal. Esse seria, portanto, o momento original do recebimento da denúncia.

Mesmo se considerado “precário”, esse ato do artigo 396 do CPP não pode ser compreendido como um despacho de mero expediente, pois o ato judicial implica em danos ou repercussão na esfera jurídica do réu (que perde a possibilidade da prescrição e passa à condição formal de acusado) [4].

Importa frisar que o critério é material e não nominal: pouco releva a rubrica que o julgador atribua ao pronunciamento; sempre que o conteúdo definir, ainda que provisoriamente, direitos, ônus ou faculdades processuais, impõe-se fundamentação idônea a enfrentar as questões suscitadas e a explicitar as razões de decidir.

Cumpre notar que a transição do estatuto de investigado ao de réu projeta gravoso ônus social, com nítido potencial estigmatizante e consequências tangíveis: fere a honra, corrói vínculos e perspectivas profissionais e, não raro, compromete a própria obtenção de meios de subsistência do imputado e de sua família, inclusive pela eventual perda do posto de trabalho.

Ainda com maior razão, deve ser fundamentado o segundo ato processual (o do artigo 399 do CPP). Nesse momento, o magistrado deve apreciar a resposta à acusação formulada pelo réu e deve decidir se rejeita a denúncia, se absolve sumariamente o réu ou se mantém o recebimento da denúncia e dá seguimento ao processo. O dever de motivação aqui é ainda mais evidente, pois deve ser estabelecida uma verdadeira dialética entre os sujeitos processuais e suas argumentações (acusação, defesa e juízo de cognição). É verdadeiramente indispensável, nesse momento processual, o diálogo do juiz com as teses sustentadas pelas partes, não bastando decisões genéricas reprográficas, do tipo “copia e cola”.

Não se reputa devidamente motivada a decisão que recebe a denúncia ou a queixa quando se limita a enunciar, de forma genérica, a mera plausibilidade da pretensão acusatória e o legítimo interesse processual do acusador, seja público ou privado [5].

Na mesma senda, Gustavo Badaró ressalta que, especialmente após a Lei nº 11.719/08, o recebimento da denúncia passou a ostentar inequívoco conteúdo decisório: não é mero ato de impulso, mas pronunciamento que exige um duplo juízo negativo — a não incidência das causas de rejeição liminar e o afastamento, desde logo, das hipóteses de absolvição sumária. Incumbe, assim, ao magistrado, em decisão devidamente motivada e lastreada nos elementos informativos coligidos na investigação, explicitar a presença das condições da ação e da justa causa e, quando suscitadas na resposta, rechaçar com fundamentos específicos as causas absolutórias invocadas pela defesa [6].

Conclui-se, pois, que o recebimento da denúncia, por ostentar inequívoco conteúdo decisório e pressupor um duplo juízo negativo (inexistência das causas de rejeição liminar e não incidência de hipóteses de absolvição sumária), exige motivação substancial — concisa, porém qualificada — que explicite a presença das condições da ação e da justa causa e enfrente, quando deduzidas na resposta, as teses defensivas.

A legitimidade de qualquer restrição estatal em matéria penal mede-se por esse tecido principiológico: sem fundamentação idônea, não há contraditório efetivo, nem controle recursal, nem integridade do modelo acusatório; há, isto sim, automatismos incompatíveis com a imparcialidade e nulidades por violação ao artigo 93, IX, da Constituição.

Na segunda parte desta reflexão, ainda tomando por base a orientação firmada pela 6ª Turma do STJ no AgRg no HC nº 740.253, a análise migrará do plano principiológico para um protocolo decisório operável, delineando o conteúdo mínimo do dever de fundamentação no recebimento da denúncia e os marcadores de qualidade epistêmica da motivação.

 


[1][1] STJ, AgRg no HC nº 740.253/SP, rel. ministro Otávio Almeida Toledo (Desembargador Convocado do TJSP), julgado em 10/06/2025, DJe 24/06/2025.

[2] TUCCI, Rogerio Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 196-197.

[3] DUCLERC, Elmir. Introdução aos fundamentos do direito processual penal. Florianópolis: Empório do Direito, 2016, p. 294.

[4] FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.121.

[5] TUCCI, Rogerio Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 210.

[6] BADARÓ, Gustavo. Processo penal. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014, p. 432.

André Carneiro Leão

é doutor em Direito e mestre em Direito Penal pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), especialista em Direito Penal Econômico pelo Instituto de Direito Penal Económico e Europeu da Universidade de Coimbra, em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Faculdade Damas da Instrunção Cristã (Aric) em convênio com a Escola Superior de Advocacia (ESA/OAB-PE), professor da Faculdade Damas de Instrução Cristã, defensor público federal e defensor público regional de Direitos Humanos em Pernambuco.

Gina Muniz

é defensora pública do estado de Pernambuco e mestra em Direito.

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