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Opinião

Experiência chinesa de especialização judicial e seus potenciais aprendizados para tutela da inovação

19 de novembro de 2025, 06h02

A evolução institucional do contencioso empresarial no Brasil demonstra que o país reconhece, ainda que gradualmente, a necessidade de especialização judicial para enfrentar disputas complexas envolvendo matérias de propriedade intelectual e inovação tecnológica. Desde que o Superior Tribunal de Justiça, em 1992, incluiu em sua competência o julgamento de controvérsias relacionadas a direitos de propriedade industrial, a estrutura jurídica brasileira avançou com a criação de varas e câmaras especializadas nos Tribunais Regionais Federais, varas empresariais estaduais no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul e varas regionais empresariais e câmaras especializadas em direito empresarial no Tribunal de Justiça de São Paulo.

sxc.hu

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O Tribunal de Justiça do Paraná também possui projeto avançado de implantação de varas especializadas em direito empresarial, recuperação e falências em Curitiba. A tendência ganhou impulso adicional em 2019, com a edição da Recomendação nº 56 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), orientando os Tribunais de Justiça a estruturar unidades judiciais e órgãos colegiados dedicados exclusivamente à matéria empresarial.

Essas iniciativas, somadas à recente criação de cadastramento público de peritos em PI e à ampliação do debate institucional, revelam um caminho importante para elevar o nível técnico das decisões, conferir maior previsibilidade às decisões judiciais e aprimorar a eficiência na resolução de conflitos complexos — pontos que nortearam, em 2019, a edição da diretriz do CNJ. Ainda assim, o processo brasileiro permanece em construção e encontra, em experiências estrangeiras mais consolidadas, como a da China, referenciais úteis de institucionalização e maturidade.

O gigante asiático consolidou, ao longo de pouco mais de duas décadas, um verdadeiro ecossistema judicial especializado em PI e inovação tecnológica, estruturado de forma progressiva e estratégica. Desde a criação das primeiras câmaras especializadas, em 1999, passando pela instalação de tribunais especializados nas principais metrópoles econômicas (Beijing, Shanghai e Guangzhou) até a inauguração do Tribunal de Propriedade Intelectual do Supremo Tribunal Popular (SPC, equivalente ao STF), em 2019, o país construiu um sistema que centraliza expertise, harmoniza entendimentos e acelera a solução de litígios tecnológicos.

Com a criação de tribunais como os de primeira e segunda instâncias — Beijing Intellectual Property Court, Shanghai Intellectual Property Court e Guangzhou Intellectual Property Court —, a partir de 2014, e o estabelecimento do Intellectual Property Court da Supreme People’s Court (IPC-SPC), em 2019, a China experimentou um crescimento significativo no número de litígios em propriedade intelectual.

Em 2021, por exemplo, os tribunais chineses registraram cerca de 525.618 casos de PI, um aumento de aproximadamente 9,1 % em relação ao ano anterior [1]. Além disso, o relatório anual de 2023-22 do IPC-SPC mostra que entre 2019 e 2022 a corte analisou 8.436 casos de segunda instância em disputas civis de PI, evidenciando não apenas maior volume, mas também centralização e especialização crescentes [2].

Segurança institucional movida pela especialização

Esse salto no número de casos pode ser interpretado como reflexo da maior segurança institucional proporcionada pela especialização, uma vez que, com juízes mais familiarizados com temas técnicos, prazos mais definidos e precedentes mais coerentes, as partes passam a ver o litígio especializado como via eficaz para proteção de seus ativos intangíveis, o que por sua vez alimenta o ciclo de crescimento de contencioso.

De fato, um estudo da FGV Direito, de São Paulo, que analisou mais de 11 mil processos nas varas empresariais do TJ-SP, demonstrou de forma empírica os efeitos positivos da especialização judicial. O tempo médio de julgamento foi reduzido de 426 dias nas varas comuns para cerca de 270 dias nas varas especializadas, uma diminuição aproximada de 37%. Quando comparadas às varas cíveis em geral, a diferença é ainda mais expressiva: os processos empresariais foram solucionados, em média, 48% mais rapidamente. Além da maior celeridade, a pesquisa também indicou ganhos qualitativos relevantes, com mais de 80% dos profissionais consultados relatando aprimoramento na qualidade das decisões e cerca de 70% apontando aumento da previsibilidade [3].

Spacca

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Ademais, em pesquisa realizada pelo CNJ, em 2020, de percepção dos magistrados, servidores e advogados quanto à especialização de varas por competência, é possível observar que a visão interna do Judiciário confirma os ganhos institucionais decorrentes da especialização. Mais de 90% dos magistrados e servidores relataram melhorias significativas em aspectos como capacitação e qualificação profissional, compreensão dos temas jurídicos e gestão das equipes. Além disso, indicadores subjetivos, como interesse e realização no trabalho, também apresentaram índices superiores a 80%, evidenciando que a especialização não apenas aprimora o desempenho técnico, mas também fortalece o engajamento e a qualidade de vida no ambiente judicial. Esses resultados sugerem que a especialização cria um círculo virtuoso, aumentando o conhecimento e a eficiência das decisões, enquanto eleva a motivação e a coesão das equipes responsáveis por aplicá-las [4].

De volta ao caso chinês, um dos marcos mais relevantes da modernização e especialização do país foi a criação das Cortes de Internet. A primeira, inaugurada em Hangzhou em 2017, surgiu para tratar de litígios típicos do ambiente digital, como disputas envolvendo comércio eletrônico, contratos firmados online e violações de direitos autorais na internet, sendo posteriormente replicada em Pequim e Guangzhou.

Embora tenham cumprido papel pioneiro na resposta a demandas jurídicas emergentes do mundo digital, observa-se que, com o fortalecimento das cortes de propriedade intelectual, essas passaram a absorver com crescente eficácia as controvérsias tecnológicas, inclusive as com origem no ambiente online. Esse movimento evidencia um estágio mais avançado de maturidade institucional, no qual a especialização judicial não apenas acompanha a evolução tecnológica, mas se integra a ela, criando um ecossistema de tutela jurisdicional capaz de responder de forma coesa e técnica aos desafios da economia digital.

Rapidez em decisões da Justiça

A experiência da especialização judiciária em casos de propriedade intelectual e inovação na China não passa, contudo, apenas pela especialização do Judiciário. Isso porque nas varas especializadas os processos, uma vez ajuizados, dispõem de prazos objetivos para julgamento em todas as instâncias (e que são cumpridos diligentemente, na maior parte dos casos), mecanismos processuais robustos — como medidas cautelares céleres para proteção de ativos intangíveis — e incentivos à especialização técnica dos magistrados. Além disso, estatísticas públicas anuais demonstram o desempenho das cortes, o que cria pressão institucional positiva para que os casos sejam analisados pelos magistrados de forma célere. Nos litígios envolvendo partes estrangeiras, os casos podem contar ainda com a designação preferencial de cortes com maior expertise técnica para tratar daquele determinado caso, o que reforça a confiança de investidores internacionais na resolução especializada do litígio.

O Brasil já possui ilhas de excelência na matéria, como as mencionadas varas federais e estaduais especializadas em PI no Rio de Janeiro, a Câmara Reservada de Direito Empresarial em São Paulo e a competência especializada do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Há espaço, contudo, para ampliar a coordenação entre iniciativas e compartilhar boas práticas. A diversidade de modelos existentes nas distintas unidades da federação reflete o esforço de inovação institucional, mas indica também a oportunidade de maior harmonização e cooperação. Fortalecer essa rede de especialização exige medidas concretas, como a criação de um banco nacional de precedentes em propriedade intelectual e direito empresarial, programas de capacitação conjunta para magistrados e peritos, intercâmbio técnico entre tribunais e definição de protocolos processuais uniformes, capazes de promover maior coerência, previsibilidade e eficiência em todo o sistema.

Do ponto de vista prático, a trajetória chinesa oferece lições valiosas que podem ser adaptadas ao contexto brasileiro. Entre elas, destacam-se a concentração de processos técnicos em varas ou câmaras com formação específica, a criação de filtros recursais ou painéis especializados para uniformizar a jurisprudência, a adoção de métricas processuais acompanhadas da divulgação pública de estatísticas e a formalização de cadastros de peritos com critérios objetivos de qualificação. Também são relevantes a definição de regras claras para a concessão de medidas provisórias que ponderem o risco de dano irreparável e a coordenação dessas práticas com aperfeiçoamentos administrativos no INPI. Tais medidas fortalecem a capacidade decisória do sistema sem comprometer garantias fundamentais e contribuem para maior previsibilidade e segurança jurídica.

A implementação, contudo, deve ser pragmática e gradual. Não é necessário nem desejável replicar no Brasil um tribunal nacional único de patentes para alcançar ganhos significativos, como ocorre com o Tribunal de Propriedade Intelectual da SPC chinesa. Um caminho mais realista envolve projetos-piloto em comarcas de maior demanda, com varas empresariais regionais dotadas de competência concentrada em propriedade intelectual, fluxos processuais simplificados para litígios de alta tecnologia e câmaras de segunda instância especializadas. Esses experimentos podem ser acompanhados por avaliações quantitativas e qualitativas, orientando futuras expansões. Programas permanentes de capacitação conjunta entre magistrados, examinadores do Inpi e pesquisadores acadêmicos são igualmente essenciais, pois a experiência chinesa demonstra que o capital humano e os incentivos institucionais são tão determinantes quanto as normas formais de competência.

Fortalecendo o sistema de inovação

A inovação processual e tecnológica deve caminhar paralelamente à especialização judicial. Ferramentas como prazos objetivos para decisões, sistemas eletrônicos de gestão de provas técnicas, padronização das etapas periciais e relatórios públicos de desempenho foram determinantes para a aceleração dos julgamentos na China. No contexto brasileiro, a integração de plataformas digitais, a uniformização de procedimentos para produção de prova técnica e o compartilhamento de bases de dados entre o Judiciário e o INPI poderiam reduzir redundâncias, ampliar a consistência das decisões e aumentar a transparência, preservando o contraditório e a ampla defesa.

Por fim, especializar varas empresariais e de propriedade intelectual significa, em última instância, fortalecer o próprio ecossistema de inovação do país. Uma justiça mais ágil e tecnicamente preparada reduz incertezas jurídicas, eleva a confiança dos agentes econômicos e estimula o investimento em pesquisa e desenvolvimento. Ao adaptar à realidade institucional brasileira práticas que já demonstraram êxito na China — como pilotos regionais, formação contínua, qualificação de peritos, harmonização recursal e modernização processual —, o Brasil pode consolidar um Judiciário apto a enfrentar os desafios tecnológicos do século 21, promovendo segurança jurídica, competitividade e desenvolvimento sustentável.

 


[1] CHINA IPR. Three SPC Reports Document China’s Drive to Increase its Global Role on IP Adjudication. Disponível aqui.

[2] CHINA. Annual Report of the Intellectual PropertyCourtof the Supreme People’s Court 2022. Disponível aqui.

[3] JOTA. Varas focadas em conflitos empresariais são mais céleres e reforçam arbitragem. Disponível aqui.

[4] CNJ. Pesquisa de Percepção dos Magistrados, Servidores e Advogados quanto à Especialização de Varas por Competência. Disponível aqui.

José Humberto Deveza

é advogado, especializado em propriedade intelectual, afastado temporariamente das atividades no escritório BMA (Barbosa, Müssnich, Aragão) para cursar um mestrado em Intellectual Property and Innovation Policy, na Universidade Tsinghua, em Pequim (China).

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