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Opinião

Fragilização do consumidor cria risco de subprime verde-e-amarelo

19 de novembro de 2025, 06h31

A crise do subprime norte-americano, em 2008, causou impactos econômicos que abalaram o mundo, em especial os Estados Unidos e a Europa. Naquele ano, bancos americanos chegaram a quebrar, com destaque para o Lehman Brothers, em setembro. Países europeus precisaram nacionalizar parte de algumas de suas instituições financeiras para injetar liquidez no mercado e garantir a estabilidade econômica. A experiência negativa serviu de aprendizado e desencadeou uma série de medidas para reforçar a segurança econômica e regular o mercado de financiamento imobiliário, a fim de evitar novas crises.

Divulgação

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Um exemplo disso é a Lei Dodd-Frank, aprovada em 2010, nos Estados Unidos. A nova legislação criou mecanismos específicos de supervisão das instituições financeiras, aumentou a transparência das operações de crédito e limitou as práticas abusivas de securitização de hipotecas. No ano seguinte, foi criado o Consumer Financial Protection Bureau (CFPB), agência responsável pela fiscalização de contratos e práticas financeiras, para garantir a divulgação cristalina de informações aos compradores e prevenir fraudes e abusos nos financiamentos imobiliários. As medidas visavam a recuperar a confiança no sistema, proteger o consumidor de boa-fé e fortalecer a estabilidade do mercado imobiliário.

As lideranças europeias responderam à crise de forma ainda mais incisiva. Houve reações que englobam toda a União Europeia e medidas específicas impostas por diversos países, sempre para reforçar a regulação do mercado imobiliário e proteger os consumidores. Em 2014, a Diretiva de Crédito Hipotecário determinou padrões mínimos para a avaliação de crédito, transparência e competência técnica dos agentes financeiros, além de requisitos para operações além-fronteiras em toda a União Europeia. O mais importante: instituiu o dever de informação ao consumidor.

Na Espanha, por exemplo, a Coroa emitiu decretos com o objetivo de proteger a residência principal das famílias e evitar execuções hipotecárias por meio de moratória. Por lá, o negócio só é fechado depois de o consumidor responder a uma prova de múltipla escolha apta a comprovar a compreensão de todas as implicações do contrato a ser celebrado. Há também a obrigatoriedade do decurso de um prazo mínimo entre a proposta de compra e a sua conclusão, a fim de que haja a verificação documental e a análise das condições de venda. Todo o processo é formal, com obrigatoriedade de intervenção notarial, mesmo na celebração de contratos de compromisso de compra e venda – como aqueles firmados quando o consumidor adquire imóveis “na planta” ou em construção.

A França, por sua vez, aumentou a proteção contra empréstimos predatórios, com a ampliação da participação das autoridades reguladoras e a criação de procedimentos de mediação obrigatórios. Já o Reino Unido criou a Financial Conduct Authority (FCA), que supervisiona e impõe limites para os empréstimos de alto risco. Na prática, exige que as instituições financeiras ofereçam produtos adequados ao perfil do consumidor.

Caso Encol

No Brasil, no entanto, o que se observa, desde meados da década passada, é que as decisões de governos e da Justiça caminham na direção oposta à daquelas economias fortemente afetadas pela crise do subprime. Ao invés de ampliar a proteção ao consumidor e fortalecer a segurança jurídica nos contratos imobiliários, em nome de supostas praticidade, agilidade e redução de custos (efeitos que não se consolidam na prática), o que se vê é a fragilização das garantias do consumidor de boa-fé – elo mais vulnerável nessas operações. Os instrumentos particulares vêm sendo fortalecidos, bem como a prioridade do credor fiduciário sobre o bem adquirido por consumidor adimplente e de boa-fé.

Bom exemplo disso são as negociações de apartamentos “na planta” ou em construção. Normalmente, as incorporadoras dão o terreno e os direitos sobre as unidades que vão sendo edificadas em garantia do financiamento contratado para viabilizar as obras. Elas firmam contratos de compromisso de compra e venda, por instrumento particular, com consumidores que não têm conhecimento da outra operação. Quando ocorre inadimplência das incorporadoras com as entidades financiadoras, os consumidores correm o risco de ficar sem seus apartamentos.

Spacca

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No final dos anos 1990, a Encol, que era a maior construtora do Brasil à época, com mais de 700 empreendimentos lançados e cerca de 23 mil funcionários, teve falência decretada pela Justiça, com uma dívida superior a R$ 1 bilhão (em valores da época). Cerca de 42 mil famílias foram atingidas direta ou indiretamente naquela época.

A maior parte das vítimas da Encol era formada por clientes que compraram apartamentos, muitos dos quais já haviam quitado seus imóveis e nunca receberam as chaves. Ao decretar a falência da construtora, o Judiciário teve que resolver um importante dilema: quem ficaria com imóveis construídos, os consumidores que pagaram à construtora para comprar seus apartamentos ou as instituições bancárias que financiaram as construções?

A Encol havia dado os imóveis em garantia, por meio de hipoteca. Os consumidores assinaram um compromisso de compra e venda com a construtora, pagaram à Encol, mas compraram imóveis que haviam sido dados em garantia para o financiador. Com a inadimplência da construtora, teoricamente as instituições financeiras teriam prioridade para ficar com os apartamentos.

No caso da Encol, após uma intensa mobilização social, o STJ decidiu em favor dos consumidores, o que se pacificou por meio da hoje consagrada Súmula 308: “A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel”.

Alienação fiduciária

Após essa decisão, as instituições financeiras deixaram de aceitar a hipoteca dos imóveis como garantia dos financiamentos. O mercado passou a adotar outro instituto jurídico, o da alienação fiduciária, instrumento jurídico introduzido pela Lei 9.514/1997, que havia instituído o Sistema de Financiamento Imobiliário (SFI), dois anos antes da quebra da Encol, com a expectativa de que essa nova figura jurídica pudesse garantir efetivamente a prioridade das instituições financeiras.

Em 2025, o STJ decidiu que a Súmula 308, garantidora dos direitos dos consumidores, não é válida para os casos em que a garantia foi realizada por meio de alienação fiduciária.

O fundamento da Súmula 308 é a proteção do consumidor leigo sobre as dívidas e compromissos já existentes no histórico do imóvel negociado. Ao consolidar o entendimento favorável à tutela consumerista, o STJ compreendeu como questão fundamental a assimetria das informações existentes entre o consumidor adquirente de imóvel, de um lado, e as construtoras, incorporadoras e instituições financiadoras dos projetos habitacionais, de outro lado.

Essa situação decorre do fato de que os consumidores adquirem os imóveis em construção diretamente das incorporadoras por meio de compromisso de compra e venda (contratos de adesão), realizados por instrumento particular. O comprador não tem assessoria jurídica adequada e confia exclusivamente nas informações transmitidas pelo corretor de imóveis, o que coloca esses consumidores em risco.

Atualmente, há diversos casos em que os consumidores quitaram seus apartamentos diretamente à incorporadora, mas não conseguem registrá-los, por falta de incorporação desses imóveis. Em alguns casos, isso é decorrência do atraso na quitação dos financiamentos contratados pelas incorporadoras, o que deixa os apartamentos atrelados às operações de alienação fiduciária.

A substituição da hipoteca pela alienação fiduciária trouxe um instrumento jurídico  que beneficiou os agentes financiadores, mas não modificou a situação fática que deu origem à Súmula 308: a assimetria de informações, o que somente pode ser corrigido com a participação de um tabelião, como terceiro desinteressado, na celebração do negócio. Isso poderia garantir o direito dos consumidores à informação clara e adequada sobre o produto adquirido, uma exigência do Código de Defesa do Consumidor.

No caso brasileiro, o Sistema Notarial e de Registro tem atuado historicamente como guardião das vontades negociais. A existência de um terceiro não interessado responsável por autenticar o conhecimento das partes reduz os custos sociais do mercado imobiliário, tornando as informações mais simétricas e diminui as vulnerabilidades ligadas ao desconhecimento. Uma alternativa brasileira de recuperação da credibilidade dos mercados passa necessariamente pelo fortalecimento da intervenção notarial.

Deveríamos seguir os exemplos internacionais mencionados para melhorar nossa segurança jurídica. Cada vez que o Judiciário reconhece o direito dos financiadores das obras em detrimento dos consumidores, a confiança do mercado é abalada. Por isso é fundamental fomentar o debate sobre a necessidade da intervenção notarial nos compromissos de compra e venda de imóveis, especialmente daqueles adquiridos diretamente da construtora, antes que ocorra um novo episódio capaz de atingir a credibilidade de todo o sistema.

Daniel Santos Garroux

é advogado e presidente do Instituto Brasileiro de Direito Econômico e Políticas Sociais.

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