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Deslumbrados pelos holofotes

‘Lava jato’ passou a se preocupar mais com mídia do que com processos, diz Tofic

27 de outubro de 2025, 07h44

A certa altura da finada “lava jato”, procuradores e o ex-juiz Sergio Moro passaram a se preocupar mais com o impacto midiático do que com a descoberta de provas e elementos de crimes, investigações e processos sérios e regulares. É o que afirma o criminalista Fábio Tofic Simantob, sócio do escritório Tofic Advogados, conselheiro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo.

Spacca

O criminalista Fábio Tofic Simantob

“Eles se deslumbraram em determinado momento, alguns estão deslumbrados até hoje. E quando se deslumbraram, a operação passou a ser o fim de si mesma. A ‘lava jato’ trabalhava para alimentar a própria reputação. Não tinha mais outra finalidade”, avalia.

Um exemplo disso está na prisão preventiva do ex-ministro da Fazenda Guido Mantega no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, enquanto acompanhava a mulher em tratamento de câncer. Assim que foi noticiado que Mantega foi preso no hospital, Moro revogou a prisão.

“O fato de Moro revogar a prisão mostra que não havia necessidade dela. Era um ato que buscava um efeito midiático. Quando Moro percebeu que o efeito midiático era pior para a operação do que para o réu, ele a revogou”, diz Tofic, que defendeu Mantega.

Segundo ele, havia na “lava jato” uma simbiose entre Judiciário, Ministério Público, Polícia Federal e imprensa. E isso gerava o que ele chama de “indústria de delações”. Funcionava da seguinte forma: agentes públicos vazavam informações de delatores para jornalistas, que passavam a publicar que certas pessoas estavam sendo investigadas, de forma a criar uma expectativa pela prisão delas. Quando isso ocorria, a reação pública era de êxtase. Uma vez presos, esses suspeitos só conseguiam ser libertados se firmassem acordos. E o ciclo se repetia.

Os acordos de colaboração premiada da “lava jato” continham diversas ilegalidades. Uma delas é a cláusula que prevê o perdimento de bens imediato, após a assinatura do termo. O tema está sendo analisado pelo Supremo Tribunal Federal. Para Tofic, essa disposição é inválida, pois a medida exige sentença penal condenatória.

Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, o advogado também criticou os materiais trazidos informalmente do exterior por procuradores e ressaltou a importância de se garantir a cadeia de custódia das provas.

Leia a seguir a entrevista:

ConJur — O Supremo julga se acordo de colaboração premiada pode prever o pagamento de multa e perdimento de bens imediato, sem condenação transitada em julgado. Diversos acordos da “lava jato” tinham essa cláusula. Ela é válida?
Fábio Tofic Simantob — Não. É importante distinguir multa do perdimento. Perdimento de valores é um termo muito específico previsto no Código Penal. O perdimento de bens é o efeito penal de uma condenação. Portanto, pressupõe uma sentença penal condenatória. Então, quando os acordos estabelecem perdimento de bens, estão cometendo uma ilegalidade. Se formos interpretar o acordo conforme a lei, devemos entender que o perdimento de bens somente deve ser exigido se depois houver uma sentença condenatória transitada em julgado. E o acordo já prevê, de alguma forma, qual será o valor do perdimento, o que também não pode ser feito sem que haja uma sentença penal condenatória.

A questão da multa é um pouco mais complexa. A multa é cobrada pela mera realização do acordo. O perdimento pressupõe que os bens foram obtidos de forma ilícita, e somente uma sentença penal condenatória pode afirmar isso. Por mais autêntico, espontâneo e lícito que seja o acordo, ele jamais pode substituir uma sentença para dizer se houve ou não houve um crime, e quais são os recursos provenientes desse crime. Com a multa é diferente.

O problema é que, no Supremo, o ministro Gilmar Mendes acabou colocando tudo no mesmo balaio no voto dele. Mas eu penso que a questão ainda permite alguma modulação, no sentido de dizer “perdimento jamais, multa talvez”.

Mas mesmo na multa há um problema de legalidade. É possível aplicar multa pela mera formalização de um acordo desde que a lei preveja essa possibilidade. Por exemplo, a Lei 9.099/1995, ao tratar da suspensão condicional do processo, prevê acordos para crimes com pena mínima de até um ano com pagamento de multa. O acordo de não persecução penal, estabelecido pela lei “anticrime” (Lei 13.964/2019), prevê multa pela mera celebração do acordo. O acordo de colaboração premiada, previsto pela Lei 12.850/2013, não prevê o pagamento de multa como condição para ser celebrado o acordo. Então é uma multa cobrada à revelia de previsão legal. E não poderia ser estabelecida, embora não seja algo tão óbvio como a questão do perdimento de bens.

ConJur — Diversos acordos da “lava jato” previam que o colaborador começaria a cumprir a pena a partir da assinatura do acordo ou da homologação. Isso também não está previsto na lei. Portanto, era ilegal?
Fábio Tofic Simantob — É mais uma razão para que façamos a distinção entre perdimento e multa. O perdimento tem caráter de pena, é o efeito da pena. Se os tribunais já decidiram e a Lei “anticrime” colocou uma pá de cal, não pode haver cumprimento de pena antes de uma sentença condenatória, ainda que o acordo o preveja. Então também não pode haver o perdimento de valores.

ConJur — No documentário Amigo secreto, o senhor afirma que a “lava jato” tinha uma indústria de delações. Como isso funcionava?
Fábio Tofic Simantob — Havia, muito claramente, uma simbiose entre Judiciário, imprensa, Ministério Público e Polícia Federal. Eu coloco a imprensa junto dos outros órgãos porque a dinâmica da “lava jato” só foi possível graças à forma como eles utilizaram veículos de comunicação. Eles começavam a vazar informações de determinada pessoa ao longo de um mês. “Fulano foi citado pelo delator tal”. Mas isso não existia em lugar nenhum. Se o sujeito quisesse achar onde estava sendo mencionado, não ia encontrar. Era “boataria oficial”. “Fulano foi citado nas operações tais, o Ministério Público investiga sicrano.” A imprensa todo dia falava de alguém. Era como se a opinião pública já estivesse aguardando o momento em que aquele cidadão ia ser preso. Quando a operação era deflagrada, a reação da opinião pública era de êxtase.

Vazamentos seletivos, delações premiadas e operações sistemáticas a cada semana, dez dias, 15 dias essa era a estrutura da operação. Lavajatistas não permitiam que a operação saísse das manchetes. Vazavam informações seletivas de futuros alvos da operação, para que quando a operação fosse deflagrada, já viesse legitimada pela opinião pública, de modo que ninguém questionasse a legalidade ou qualquer aspecto. Era como se fosse óbvio “claro que fulano foi preso”.

E, com isso, eles faziam os tribunais Tribunal Regional Federal da 4ª Região, Superior Tribunal de Justiça e Supremo reféns da opinião pública. Se algum juiz ou tribunal ousasse conceder Habeas Corpus, seria imediatamente colocado como “pária da Justiça”, como “vendido”. Era quase impossível, naquele momento, um juiz contrariar Sergio Moro, conceder um HC, dizer que uma decisão era ilegal. Esse era o mecanismo.

ConJur — O ministro Dias Toffoli e a 2ª Turma do STF vêm anulando os atos da “lava jato” contra determinados alvos por entender que houve um conluio entre procuradores e o ex-juiz Sergio Moro para condenar determinados alvos. Como avalia essas decisões?
Fábio Tofic Simantob — O ministro Dias Toffoli tem proferido decisões importantes. Uma das principais, que teve e tem uma repercussão muito grande, é a que considerou ilícitas as provas obtidas dos sistemas Drousys e MyWebDay, que a Odebrecht usava no exterior para fazer e administrar pagamentos. Esses sistemas não estavam no Brasil, estavam na Suíça. A decisão de ministro Toffoli foi muito criticada, mas é corretíssima. O ministro afirmou que não houve cooperação jurídica internacional da força-tarefa de Curitiba com as autoridades suíças, para que essas informações viessem para o Brasil. Portanto, as informações chegaram ao Brasil de uma forma que não se sabe qual é. Isso contraria a jurisprudência do STJ. Uma das questões mais importantes e emblemáticas de mudança jurisprudencial é a confiabilidade da prova digital. Para se poder usar a prova digital contra alguém, é preciso ter certeza de que a prova que se tem é exatamente a prova que saiu do dispositivo ou equipamento onde ela foi produzida.

ConJur — Ou seja, é preciso respeitar a cadeia de custódia da prova.
Fábio Tofic Simantob — Exatamente. Nós não temos isso. Não dá para saber se as provas dos sistemas da Odebrecht foram adulteradas, se esses elementos de fato existiam. Então, uma denúncia baseada nessas provas é inválida. Em muitas colaborações premiadas, executivos da Odebrecht apresentaram, como elementos de corroboração, planilhas físicas, de papel, dizendo que haviam sido extraídas dos sistemas Droysus e do MyWebDay. Toffoli disse que não havia como comprovar que essas planilhas e seus dados saíram desses sistemas que estavam na Suíça, porque não havia cadeia de custódia que garantisse a preservação da integridade das provas. Como essas colaborações foram usadas em dezenas de denúncias, isso está caindo como um castelo de cartas.

ConJur — E havia um conluio entre procuradores e o ex-juiz Sergio Moro?
Fábio Tofic Simantob — Houve algumas decisões reconhecendo um conluio, mais recente contra o doleiro Alberto Youssef, com base em diálogos da operação spoofing. Isso abre uma porta para que muita gente peça extensão do mesmo entendimento aos seus casos.

ConJur — Como avalia as provas obtidas via cooperações internacionais na “lava jato”?
Fábio Tofic Simantob — Procuradores traziam provas do exterior em sacolas de supermercado. Houve um momento em que ficou claro que qualquer coisa que eles fizessem ia ser validada pelo Judiciário. E eles partiram para o vale-tudo, viraram intocáveis. Ai de quem ousasse criticá-los. Então eles passaram a fazer isso, em nome da “celeridade”, da “eficiência” da investigação. Eles pegavam o avião, iam para a Suíça, pegavam as provas e traziam debaixo do braço, como se fossem acima de qualquer suspeita, acima da lei. “Quem vai desconfiar de mim?”, pensavam. Não havia mais confiança na lei, havia confiança nas pessoas, nos agentes da lei, algo típico de Estados policiais.

ConJur — Há algum grande abuso da “lava jato” que ainda não foi enfrentado pelo Supremo ou por outros tribunais?
Fábio Tofic Simantob — Há diversas questões que ainda precisam passar por um exame do Judiciário. Uma que merece atenção é a voluntariedade das delações premiadas. Até que ponto as pessoas assinaram essas delações premiadas voluntariamente? Conversas reveladas pela “operação spoofing” mostram procuradores dizendo: “Poxa, está difícil achar um crime do fulano aqui”. Como que um procurador reconhece que não tem crime do sujeito que ele está mantendo preso e, mesmo assim, ele assina um acordo de colaboração premiada? É a maior prova de como as prisões estavam sendo instrumentalizadas para obter delações premiadas.

Posteriormente, a Lei “anticrime” passou a obrigar que as tratativas e depoimentos de colaboradores fossem filmados e disponibilizados a suas defesas. É importante saber como o acordo foi celebrado. Na época, eu falava que a colaboração premiada era o seguinte: o sujeito batia na porta do Ministério Público, entrava, saía depois de seis meses, e ninguém sabia o que tinha acontecido nesse período. Não pode haver um processo republicano em que há uma interação entre um indivíduo e o Estado por seis meses, e ninguém saiba o que aconteceu. Como eram essas conversas? O que se pedia? Havia direcionamento? Há elementos da operação spoofing indicando que, às vezes, o colaborador afirmava uma coisa, e o Ministério Público pedia para ele dar uma arredondada, para que pudesse transformar uma doação eleitoral em corrupção.

As delações precisam passar por um julgamento não só jurídico, mas histórico, para que o país compreenda de que forma as informações foram obtidas. “Ah, então todos os delatores mentiram?”. É evidente que não. Muita coisa é verdadeira. Mas existem alguns detalhes que, no Direito Penal, fazem toda a diferença. Às vezes é um detalhe ou uma vírgula que transforma um fato atípico em um crime.

ConJur — Como esses detalhes fizeram lavajatistas transformarem um ato de governo do ex-ministro da Fazenda Guido Mantega em corrupção?
Fábio Tofic Simantob — Eu defendi Guido Mantega, e Marcelo Odebrecht (ex-presidente da Odebrecht) afirmava, em sua colaboração premiada, que ele havia feito, a pedido de Mantega, uma doação para o PT. Em troca disso, Mantega editou a Lei do Refis. Ora, a Lei do Refis é uma lei que beneficia o país inteiro. Como é possível demonstrar que ela daí foi uma contrapartida pela doação da Odebrecht? Era perceptível que havia um acochambramento das coisas, para que elas se pudessem encaixar naquilo que o Ministério Público queria. Hoje a Lei “anticrime” proíbe que você grave alguém com o objetivo de obter prova contra essa pessoa.

ConJur —Como acusados da “lava jato” foram obrigados a fazer por Rodrigo Janot e procuradores, como condição para obter acordo de delação premiada.
Fábio Tofic Simantob — Exato. Certo dia, eu ouvi de um procurador que ele não ia aceitar dar tantos benefícios em uma colaboração porque não tinha gravação. Ele me disse o seguinte: “Porque você lembra quando a gente conseguiu aquela gravação de não sei quem, e ela só não foi a manchete nos jornais porque no mesmo dia aconteceu tal coisa”. Ou seja, ficava muito evidente o objetivo midiático que a operação visava. Em um determinado momento, eles abriram mão completamente do conteúdo jurídico. A gravação do ex-presidente Michel Temer (por Joesley Batista) era muito óbvia nesse sentido. De conteúdo jurídico, ela tinha muito pouco, mas foi talvez o fato jornalístico mais explosivo dos últimos 20 anos. O impacto midiático passou a ser considerado mais importante do que a descoberta de provas e elementos para um julgamento penal.

Isso precisa ser depurado. As pessoas ainda estão tímidas, reputações foram destruídas. Essas pessoas ainda irão ao Judiciário reclamar do que sofreram. Talvez ainda estejam achando cedo, acabaram de ser absolvidas, não querem mídia em cima do processo que responderam. Muitos são políticos, quanto mais se falar no assunto, pior para eles. Mas, em algum momento, as pessoas que foram mais prejudicadas vão querer revisitar tudo isso.

ConJur — A 2ª Turma do Supremo declarou a incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba para julgar ação contra Guido Mantega no caso do “Refis da Crise”. De forma geral, como avalia a competência de Curitiba para julgar ações da “lava jato”?
Fábio Tofic Simantob Eu atuei em muitos casos da “lava jato”. Em um determinado momento, percebi que existia apenas uma coisa que os advogados poderiam fazer para salvar os seus clientes: tirá-los dos juízes que não estavam dispostos a fazer um julgamento, dos juízes inquisidores. Eu passei a “lava jato” inteira fazendo isso tirando caso de Curitiba, tirando caso do Rio, das mãos de Marcelo Bretas (juiz aposentado pelo Conselho Nacional de Justiça). No próprio Supremo havia divergências entre os ministros. Com um pouco de atenção, era possível verificar que o ministro Edson Fachin não era mais relator para determinado caso porque havia ficado vencido no assunto. Quando isso ocorre, ele perde a relatoria, a prevenção. Virou uma operação ideológica. Ficou muito claro que, dependendo do juiz que fosse julgar o caso, o réu poderia ser condenado a 40 anos de prisão ou ser absolvido sumariamente.

Foi o que aconteceu no caso de Michel Temer e do ex-ministro Moreira Franco. Eu defendi Moreira Franco, e ele foi preso preventivamente por ordem de Bretas. Nós entramos com uma reclamação no Supremo para tirar o processo do Rio, ele saiu, e Moreira Franco foi absolvido sumariamente. É claro que isso só passou a ser possível depois de um determinado momento, lá por 2019, porque antes disso ninguém tirava nenhum processo de Curitiba. E era só condenação. Só em raríssimos casos réus foram absolvidos.

Um deles foi o caso de Fábio Luís Lula da Silva, o Lulinha (filho do presidente Lula). Ele sofreu busca e apreensão determinada pela 13ª Vara Federal de Curitiba. Eu impetrei Habeas Corpus no TRF-4. O relator, desembargador João Pedro Gebran Neto, concedeu a liminar, e depois a 8ª Turma concedeu a ordem para tirar o processo de Curitiba e mandar para São Paulo. Em São Paulo, o caso foi arquivado. Esse caso mostra como, a partir de um determinado momento, nem o TRF-4 compactuava mais com a competência universal de Curitiba.

ConJur — Guido Mantega foi preso em 2016 no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, e solto horas depois. No momento de sua prisão, ele acompanhava sua mulher no tratamento de um câncer. O que a prisão de Mantega no hospital diz sobre a “lava jato”?
Fábio Tofic Simantob — Eu acho que Moro não sabia que a mulher de Mantega estava doente e iriam prendê-lo no hospital. Mas isso mostra o quanto eles manipulavam a imprensa, para que a opinião pública não perdesse a confiança na operação. Assim que Mônica Bergamo (jornalista da Folha de S.Paulo) noticia o fato, Moro imediatamente revoga a prisão de Mantega. Claro, se o sujeito está com a mulher no hospital, é cruel, mas se uma prisão precisa ser decretada, não é isso que afasta o risco à ordem pública. Se há a necessidade de prender alguém, é preciso prender. O fato de Moro revogar a prisão mostra que não havia necessidade dela. Era um ato que buscava um efeito midiático. Quando Moro percebeu que o efeito midiático era pior para a operação do que para o réu, ele a revogou.

Ou seja, é uma “lava jato” preocupada com a imagem, com a reputação da operação, e não com a apuração dos crimes, a investigação séria e regular. Eles se deslumbraram em determinado momento, alguns estão deslumbrados até hoje. E quando se deslumbraram, a operação passou a ser o fim de si mesma. A ‘lava jato’ trabalhava para alimentar a própria reputação. Não tinha mais outra finalidade

Sérgio Rodas

é editor da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro.

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