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Defesa dos vulneráveis

Falta de pessoal e orçamento mostra desprestígio das Defensorias, diz presidente da Anadep

24 de setembro de 2025, 12h58

Como é possível que um país hiperjudicializado, e que tem na Constituição a previsão de acesso à Justiça, não invista na instituição capaz de dar vazão a essas demandas? A pergunta ecoa no discurso de Fernanda Fernandes, presidente da Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (Anadep) no biênio 2025-2027.

Fernanda afirma que a Defensoria Pública deve ser vista como alternativa preferencial de resolução de conflitos em um ambiente com excesso de litigância e uma população vulnerável, órfã do Estado. O problema, segundo ela, é que faltam dinheiro e planejamento para cumprir essa tarefa.

Caricatura Fernanda Fernandes
Spacca

Fernanda Fernandes, presidente da Anadep

Terminou em junho de 2022 o prazo que a Emenda Constitucional 80/2014 deu para União, estados e Distrito Federal instalarem Defensorias em todas as unidades jurisdicionais do país. Há mais de três anos, portanto, toda a população já deveria estar contando com os serviços da instituição.

Essa meta, contudo, ainda é distante: existem 7.520 defensores públicos atuando em 1.334 das 2.563 comarcas brasileiras (52% do total). Estima-se que seria necessário dobrar esse número.

Em paralelo a isso, as legislações estaduais falham em reservar um percentual mínimo para custeio da instituição, o que impede sua expansão consistente e programada.

“Essa é uma providência que deve ser encarada com seriedade e compromisso. Precisamos aumentar a quantidade de defensores públicos no país. Não podemos ter a metade, nem um terço do que os outros atores do sistema possuem, porque isso representa um desprestígio institucional e um desprestígio à demanda da população. Assim como não podemos ter um orçamento aquém do que necessário para essa ampliação”, defende a presidente da Anadep em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico.

Essa expansão é relevante, segundo ela, porque a Defensoria atua não apenas no processo, mas na prevenção, na mediação e no atendimento da população. “A Defensoria tem, sim, um papel político fundamental. Nessas eras de crise democrática, é pautada por um dever, escrito expressamente na própria Constituição, de ser instrumento e expressão do regime democrático. E isso a gente faz ouvindo a população, promovendo educação e direitos.”

Leia a seguir a entrevista:

ConJur — Qual é a função da Defensoria Pública em uma sociedade hiperjudicializada?
Fernanda Fernandes É interessante a gente trazer um histórico do Brasil. Há vários estudos que mostram uma sociedade órfã do Estado. No âmbito do acesso à Justiça, a gente vê uma população com vontade de judicializar conflitos que muitas vezes que poderiam ser resolvidos numa mediação. A Defensoria Pública tem o papel de promover não só um trabalho de orientação em direitos, mas também de mediação desses conflitos.

ConJur — Como a Defensoria faz isso?
Fernanda Fernandes — Pelo país afora, nós temos diversos projetos. Só em 2024, a Defensoria atuou em mais de 1,7 milhão de acordos. Aqui em Brasília nós conversamos com profissionais que atuam perante tribunais superiores, e sabemos que o cenário massivo de processos resulta num acesso à Justiça ineficiente, porque não se consegue alcançar a resolução de conflitos. Então a Defensoria tem papel essencial não só em prevenção e educação em direitos, mas também na mediação de conflitos no formato extrajudicial.

ConJur — A sociedade entende o papel da Defensoria Pública?
Fernanda Fernandes — A população ainda não conhece a Defensoria Pública de forma eficiente. Não só a população, mas também os atores que estão em locais importantes para tomar decisões. De dois em dois anos, inclusive, a Anadep desenvolve uma campanha com foco em um dos temas da Defensoria para dizer: olha, é isso que a Defensoria Pública faz.

Um dos exemplos recentes desse desconhecimento foi uma novela que tratou de uma questão relacionada à pensão alimentícia, e foi divulgando um aplicativo da Defensoria Pública do Rio. Depois dessa cena, o atendimento na área da família aumentou três vezes.

Já em estados menores, como o Acre, a Defensoria Pública tem uma visibilidade grande porque a população é menor. São 800 mil habitantes. Estivemos recentemente lá e nos foi retratado que a Defensoria Pública, em um dia, faz aproximadamente mil atendimentos, o que, para uma população desse montante, é muito significativo. Mas temos estados maiores onde ela não é tão conhecida.

ConJur — Apesar disso, a atuação da Defensoria Pública é muito prestigiada nas cortes superiores. Você gosta desse tipo de protagonismo para a classe?
Fernanda Fernandes — Eu gosto, claro. Esse protagonismo revela a qualidade do serviço dos defensores, mas também a credibilidade da própria população nesse serviço. Temos defensores que chegam a tribunais superiores porque alguém começou, lá na ponta, com um trabalho de excelência e conseguiu conduzir isso até aqui de forma qualificada com competência.

ConJur — Como fazer mais, então?
Fernanda Fernandes — Hoje, infelizmente, no país todo nós temos 7,5 mil defensores. Em comparação, só de associados da magistratura são mais de 18 mil. E no Ministério Público, mais de 15 mil. Isso traz uma desproporção em um quantitativo de um sistema de Justiça que, na verdade, é igual para a defesa, para a acusação e para o Judiciário em termos de demandas.

A gente teve a Emenda Constitucional 80, que garantiu um defensor público em cada comarca que tivesse um promotor e um juiz, mas infelizmente, com o orçamento que hoje as Defensorias têm, não é possível sequer um planejamento de expansão consistente e programado que possa levar a esse resultado constitucional.

Essa é uma providência que deve ser encarada com seriedade e compromisso. Precisamos aumentar a quantidade de defensores no país. Não podemos ter a metade nem um terço do que os outros atores do sistema possuem, porque isso representa um desprestígio institucional e um desprestígio à demanda da população. Assim como não podemos ter um orçamento aquém do que necessário para essa ampliação.

ConJur — Qual é o déficit de defensores públicos hoje?
Fernanda Fernandes — A Defensoria hoje está presente em 52% das comarcas brasileiras. São 2.563 comarcas e as Defensorias estão em 1.334 delas. É mais ou menos metade. Precisamos duplicar, pelo menos, a quantidade de defensores públicos pelo país.

Por outro lado, segundo uma pesquisa nacional deste ano, todo orçamento aprovado pela instituição em 2025 representa apenas 0,21% do orçamento fiscal das respectivas unidades federativas. Recentemente estive em estados como Alagoas e Paraíba em que, da receita corrente líquida do Estado, tem aproximadamente 0,5% destinado às Defensorias, quando, na Lei de Responsabilidade Fiscal anual, temos para o Ministério Público garantidos 2% e, para a magistratura, 6%.

ConJur — Como mudar isso?
Fernanda Fernandes —Houve, em 2011, um projeto de lei complementar (PLP 114/2011) que passou pela Câmara e pelo Senado e foi aprovado, que visava garantir às Defensorias exatamente esse mesmo percentual do Ministério Público, de 2%, mas em uma escala progressiva. Aqueles estados que davam até 0,5% da receita corrente líquida no ano seguinte aumentariam para 1%, e assim progressivamente até chegar a 2%. Infelizmente houve um veto total naquela época e ele até hoje não foi colocado para aprovação. Queremos levar novamente esse tema para análise do Congresso Nacional.

ConJur — Qual é o impacto dessa restrição orçamentária?
Fernanda Fernandes — Estamos com uma carreira que não tem a quantidade de defensores necessária e que não consegue fazer concurso, ter assessores ou servidores suficientes. Temos um gasto per capita com a Defensoria que foi registrado em 2024 de apenas R$ 45,99, um valor que é irrisório diante da magnitude desses serviços.

ConJur — Nenhum estado chega perto de igualar o percentual de 2% das receitas líquidas para custeio da Defensoria Pública?
Fernanda Fernandes — Alguns estados chegam. E são exatamente aqueles em que há defensores em todas as comarcas: no Acre e no Rio de Janeiro, por exemplo. É muito simbólico que exatamente os estados onde temos essa proximidade de orçamento, a gente tem essa ampliação do serviço com eficiência.

ConJur Qual o custo-benefício da Defensoria Pública para o Brasil?
Fernanda Fernandes — Os benefícios são muito maiores. Recentemente tivemos um estudo nesse aspecto do Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina que ressaltou o efeito de ações coletivas da Defensoria Pública. Uma ação dessas traz um resultado incalculável de acesso à Justiça.

ConJur — Se o defensor também atua extrajudicialmente, ele efetiva políticas púbicas e cumpre um papel político. Como essa função deve ser compreendida?
Fernanda Fernandes — Uma instituição como a nossa, que tem previsão na própria Constituição, traz sim esse papel político, do ponto de vista de que deve garantir a voz àqueles que, naturalmente, estão excluídos. Há nisso um papel político de concretização da democracia.

A Defensoria Pública, em comarcas, faz audiências públicas para ouvir a população em diversos temas: em comitês de prevenção e combate à tortura, de proteção aos idosos e em outros espaços em que essas políticas públicas são construídas, debatidas e criticadas.

ConJur — Como você avalia essa diversidade de atuação que recai sobre a Defensoria Pública?
Fernanda Fernandes — A diversidade se dá por uma série de aspectos, não só pelas demandas da própria população, mas também de estrutura. A última Defensoria Pública a ser instalada no país, a do Amapá, consegue fazer alguns atendimentos pela própria estrutura e outros, não.

Mas é claro que temos aquelas diferenças que são resultados da própria demanda da população. No Acre, por exemplo, temos um núcleo de atendimento à população, a povos tradicionais e comunidades indígenas. Já alguns têm uma população prisional um pouco maior, então se voltam mais para aquela atividade. O estado de São Paulo, por exemplo, sempre teve uma atuação muito intensa do Núcleo de Solução de Conflitos em Unidades Prisionais. Então, temos, sim, essa diversidade que reflete as demandas da população.

ConJur — Como está a relação das Defensorias Públicas com a advocacia dativa?
Fernanda Fernandes — Temos um estado de coisas inconstitucional, digamos assim, porque há defensoria em apenas 52% das comarcas e uma quantidade muito inferior de defensores do que a necessária. Por isso continuamos vendo esse serviço da advocacia dativa em algumas comarcas.

As duas estruturas que demandam um orçamento do estado, não são recursos privados. Por isso a importância de ampliação das defensorias para que não seja necessário mais esse serviço da advocacia dativa, que é restrito ao atendimento processual.

ConJur — Qual é a função da Anadep?
Fernanda Fernandes — A Anadep é uma associação nacional com aproximadamente 7,5 mil associados e que tem por função a promoção de direitos. Nós trabalhamos, obviamente, em pautas corporativas para fortalecer nossa instituição, mas não só.

Nossa missão institucional é garantir acesso à Justiça à população vulnerável. Há exemplos de pautas de fiscalização de unidades de acolhimento de crianças, de atuação em projetos de lei. E, no âmbito jurídico, estamos ao lado da sociedade civil em questões que envolvam atuações criminais, de família, de proteção de crianças e adolescentes também. A Anadep, não raro, entra com pedidos de amicus curiae em alguns processos.

ConJur — O que a Anadep quer?
Fernanda Fernandes — Nossa prioridade é a questão orçamentária, por tudo que trouxemos aqui. É pensar estratégias para garantir a derrubada desse veto em relação à lei que garantiu os 2% há mais de dez anos e que vai permitir que realmente a gente cumpra essa missão constitucional.

Outra questão fundamental é a segurança dos defensores públicos. Nós temos uma carreira que não está só nos gabinetes, mas também na rua, fazendo atendimentos à noite, final de semana, em unidades prisionais e de acolhimento, locais de privação de liberdade de adolescentes e também em pautas muito delicadas reintegração de posse.

Tivemos, em 2023, dois defensores que foram presos fazendo a defesa de direitos humanos. Em um contexto social com histórico de violência e autoritarismo, ter defensores de direitos humanos sem a proteção que as outras carreiras têm, de ser preso apenas em casos de crime inafiançável, é um problema muito sério.

E uma terceira demanda é fazer parte de espaços decisórios no nosso país, como o CNJ e os tribunais, por meio do quinto constitucional. A Defensoria Pública é a única carreira que não ocupa nenhuma possibilidade de estar nessa concorrência desses espaços, e isso representa um desprestígio institucional. Temos muito a contribuir nesses espaços.

Danilo Vital

é correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.

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