No centro de um intenso debate no Supremo Tribunal Federal e no Congresso Nacional sobre o reconhecimento do vínculo empregatício na “uberização”, uma analogia tem sido frequentemente utilizada: a de que motoristas de aplicativo seriam como os taxistas. O julgamento no Supremo está marcado para 3 de dezembro de 2025, e o relator do Projeto de Lei Complementar (PLP) 152/25 — que estabelece um marco legal para trabalhadores de aplicativos de transporte —, deputado Augusto Coutinho, afirmou que o tema será pautado ainda este ano.
O argumento de quem defende a autonomia sugere que, assim como os taxistas seguem regras impostas pelo poder público, sem serem considerados funcionários do Estado, os motoristas de aplicativo também estariam submetidos a normas que não configuram subordinação jurídica, logo, escapam à relação de emprego.
Essa visão, no entanto, desconsidera as diferenças fundamentais que separam as duas atividades e mascara uma relação de trabalho que, na prática, se alinha perfeitamente aos pressupostos da legislação trabalhista. Uma análise aprofundada, baseada em uma pesquisa etnográfica na qual este pesquisador atuou como motorista em Salvador, revela que a suposta autonomia do motorista de aplicativo é uma ilusão cuidadosamente construída.
A confusão que equipara o motorista de aplicativo ao taxista é proposital e estratégica, pois a Uber e outras plataformas iniciaram sua disrupção em um setor tradicionalmente caracterizado pela autonomia. Ao substituir a estrutura artesanal e difusa dos táxis por um modelo industrial e centralizador, a comparação com essa categoria em declínio tornou-se uma ferramenta retórica poderosa.
Contudo, enquanto a atividade dos taxistas é rigidamente regulada pela Lei nº 12.468/2011, que a define como um serviço público de transporte individual de passageiros, e que remete aos municípios uma regulamentação mais detalhada, as plataformas digitais operam sob uma lógica distinta.
Elas não são entes públicos exercendo o poder de imperium do Estado; são empresas privadas cujo poder de controle sobre uma frota de milhões de motoristas só encontra amparo legal na figura do empregador, conforme o artigo 2º da CLT. Ou os motoristas são empregados, ou as plataformas se tornaram parte do Estado brasileiro, uma hipótese que expõe a fragilidade da comparação.
Contextualizando
Pensada inicialmente como forma de facilitar a vida do consumidor que, anteriormente, para gozar de serviço de transporte de passageiros, contava apenas com a oferta de taxis ao redor do mundo, a plataforma Uber aliou-se à tecnologia para oferecer um aplicativo que oferece mais informações aos usuários, permite o pagamento através de cartão de crédito e que promete menor tempo de espera para o início das corridas. Como toda empresa capitalista, no entanto, o móvel da plataforma é o lucro (aqui já se distinguindo do Estado que regula taxistas), de forma que os altos investimentos do capital financeiro foram conjugados com a clássica exploração do trabalho dos seus motoristas. Mas somente tais fatores não foram suficientes para uma disruptura nesse setor econômico. Uma política clara de desafiar a regulamentação estatal que, de alguma forma, protegia positivamente motoristas de taxi verdadeiramente autônomos. Veja-se que nenhum município brasileiro jamais cobrou qualquer comissão ou taxa incidente sobre as corridas dos taxistas: o fruto do trabalho dos taxistas sempre lhes pertenceu.

Diferentemente do modelo existente para taxistas que precisam pagar alvarás de licença administrativa para exercício da atividade, algo que na prática sempre pôde limitar a explosão de oferta de trabalho e, com isso, garantir dignidade a esta categoria, o ingresso na plataforma, tanto para usuários quanto para motoristas, é muito facilitado, razão pela qual estima-se que, hoje, a Uber possuía cerca de 1,7 milhão de motoristas cadastrados no país.
A mudança de paradigma de plataformas digitais se deu em atividades econômicas tradicionais pré-existentes – com antigas características de autonomia, como taxistas ou motofretistas. Passou-se de uma estrutura artesanal e difusa para outra, industrial e concentradora, por isso, substituir a frota de taxis sempre vai gerar uma analogia com essa categoria.
Veja-se que, hoje em dia, a quantidade de motoristas de aplicativo já supera em muito o quantitativo de taxistas (166 mil na cidade de São Paulo, contra 30 mil taxistas), sendo a principal ocupação para homens do maior município do Brasil, superando inclusive a categoria dos comerciários.
Tentarei aprofundar a discussão sobre esse argumento com base em pesquisa etnográfica que realizei entre 2021 e 2022, quando tirei licença das minhas atividades do Ministério Público do Trabalho para trabalhar como motorista de aplicativo em Salvador.
A principal bandeira das plataformas é a suposta autonomia do motorista para escolher quando e onde trabalhar. Esse seria um ponto forte de identidade com a categoria dos taxistas. A pesquisa de campo realizada, em conjunto com o estado da arte da literatura sociológica do trabalho, no entanto, demonstra que essa liberdade é, na melhor das hipóteses, uma microautonomia inserida dentro de uma macrosubordinação.
A flexibilidade de dias e horários não é um elemento que define a relação de emprego, mas sim uma consequência do poder de direção do empregador. Somente empresas escolhem a dinâmica mais adequada para o seu modelo de negócios, não sendo exigido para o transporte de passageiros a fixação de locais e dias/horários fixos de trabalho.
Em realidade, as plataformas detêm, em seus termos de uso, o poder despótico de exigir trabalho em locais e horários específicos, sob pena de punição. Portanto, a liberdade atual é uma condição precária e contingente, não um direito do trabalhador.
Na prática, a necessidade econômica anula essa escolha. Veja-se que os estudos internacionais evidenciam que, em regra, motoristas de aplicativo ganham menos que taxistas. Para alcançar um rendimento mínimo de sobrevivência, os motoristas de app são compelidos a jornadas exaustivas, frequentemente superiores a 12 horas diárias. O experimento realizado durante a pesquisa etnográfica constatou que, para obter um lucro bruto de R$ 1.814,85 (sem contar todos os custos de manutenção), foi necessário que eu trabalhasse 350 horas em um mês, rodando 5.600 km. A opção de trabalhar poucas horas é um luxo reservado apenas àqueles que usam o aplicativo como um “bico”.
A liberdade de escolher o local de trabalho também é fictícia. O motorista não pode simplesmente decidir trabalhar em qualquer lugar: o algoritmo direciona a demanda, e o motorista que não se desloca para áreas de alta procura, indicadas pela empresa, simplesmente não recebe chamadas. A plataforma manipula a distribuição de corridas para garantir que, do ponto de vista empresarial, a jornada coletiva dos motoristas seja relativamente fixa, mesmo que individualmente eles acreditem estar exercendo sua liberdade.
Recusar corridas: submissão disfarçada de escolha
Outro pilar da narrativa de autonomia é a possibilidade de o motorista recusar corridas. Neste aspecto, diga-se, há grande diferenciação com a atividade dos taxistas, obrigados a aceitarem toda e qualquer corrida, desde que o usuário esteja disposto a pagar. Contudo, essa liberdade é, na realidade, um mecanismo de punição para o motorista de aplicativo. Cada recusa implica perdas financeiras diretas, com mais tempo ocioso e não remunerado. Além disso, recusar corridas sistematicamente pode ser considerado fraude segundo o Código da Comunidade Uber, levando a advertências e até à desativação da conta. Longe de ser um ato de independência a recusa é punição por não atender a uma ordem patronal.
Juridicamente, a legislação brasileira já contempla essa situação. O trabalho intermitente, previsto na CLT, permite que o trabalhador recuse uma convocação sem descaracterizar o vínculo de emprego. A recusa, portanto, convive harmoniosamente com a subordinação. O motorista de aplicativo tem apenas a liberdade negativa de recusar ofertas ruins, sem qualquer garantia de que outra surgirá.
Essa recusa, muitas vezes, não é uma escolha possível. Nos grupos de motoristas de aplicativo em que estive inserido testemunhei uma triste realidade. Muitos trabalhadores dirigem por longas horas, aceitando sistematicamente todas as corridas que aparecem como forma de ganhar dinheiro rapidamente. Porque isso acontece? Porque como eles mesmos dizem “o boleto é implacável”. Mensalidades escolares, planos de saúde, consultas médicas, pensões alimentícias, relativizam o poder de escolha dos motoristas de aplicativo.
Assim como taxistas, muitos motoristas de app são proprietários dos seus veículos. O argumento de que ser dono do carro transforma o motorista em um empreendedor autônomo também não se sustenta. A propriedade do principal instrumento (apenas instrumento e não meio de produção) de trabalho está longe de significar autonomia, pois é a plataforma quem dita todas as regras. A Uber ou 99 impõem requisitos estritos sobre o veículo — ano de fabricação, quatro portas, ar-condicionado, estado de conservação —, o que é incompatível com a independência de um verdadeiro autônomo, que poderia escolher trabalhar com um carro mais antigo, por exemplo. Tal nível de exigência, em realidade, somente se verificou até hoje por parte de municípios reguladores.
O modo de execução do serviço também é rigidamente controlado. A plataforma não apenas sugere a rota via GPS, como também penaliza motoristas que não a seguem, impedindo seu acesso a categorias superiores. A supervisão é absoluta, com ferramentas que podem monitorar a velocidade, as taxas de frenagem e até mesmo o áudio dentro do veículo, sob o pretexto de segurança. Não há espaço para criatividade ou independência. Neste ponto, os taxistas detêm muito mais autonomia que motoristas plataformizados.
Até mesmo a interação com o passageiro é pré-determinada em certas categorias, como a comfort, em que o cliente pode exigir silêncio ou o uso do ar-condicionado, mesmo em contextos de risco sanitário, como vivenciei.
A autonomia na precificação é igualmente inexistente. Para usuários de táxi, não havia flutuação nos valores das corridas fixados pelos municípios, mas para usuários de plataformas digitais, a qualquer momento as tarifas podem aumentar drasticamente de preços. A remuneração devida aos motoristas de aplicativo é totalmente insegura: a cada corrida uma tarifa e comissão diferentes.
Mas, se motoristas de aplicativo não são taxistas, as plataformas digitais de transporte podem se colocar na posição de entes públicos reguladores?
Nenhuma lei confere poderes para que plataformas se comportem como reguladoras estatais do transporte individual de passageiros. Do ponto de vista empírico, entretanto, já se verifica o exercício de prerrogativas de mando muito mais acentuadas e abusivas do que aquelas relações que dizem respeito ao Estado versus cidadão.
As plataformas digitais não são consideradas reguladoras estatais por duas distinções fundamentais: uma de natureza jurídica e outra quanto à origem de seu poder de controle. A regulação exercida pelo Estado sobre atividades como a dos taxistas deriva do seu poder de imperium, uma prerrogativa da administração pública que está intrinsecamente ligada ao princípio da legalidade. Isso significa que a capacidade dos municípios de impor regras, como a fixação de pontos de embarque, a determinação de tarifas e a mediação de conflitos, é um poder que emana da lei e se aplica à organização de um serviço público. Apesar dessa intensa regulação, os taxistas não são considerados funcionários do Estado.
Em contraste, as plataformas digitais são entes privados, não públicos, e aqui vai a segunda distinção. Elas não possuem o poder de imperium concedido ao Estado. Portanto, a questão levantada é: qual dispositivo legal autoriza uma empresa privada a exercer um controle tão vasto sobre uma frota de milhões de trabalhadores, violando o princípio de que ninguém é obrigado a fazer algo senão em virtude de lei?
Esse poder certamente não se enquadra no Direito Administrativo, mas sim no Direito do Trabalho. O poder de supervisão, direção e imposição de punições pelas plataformas é análogo à prerrogativa que todo empregador possui sobre seus empregados, conforme previsto no artigo 2º da CLT.
Não se trata da simples adesão a um contrato de natureza cível que prevê regras entre as partes. Primeiro, porque motoristas de aplicativo não podem impor ou negociar qualquer regra, nem muito menos afastar qualquer cláusula que reputem abusiva. Segundo, porque as partes desta relação jurídica encontram-se em manifesto desequilíbrio de poderes jurídicos e econômicos. Esse desequilíbrio é justamente o que autoriza que apenas uma das partes emita comandos, fiscalize condutas e imponha punições.
No caso da uberização, a confusão conceitual entre a autonomia dos taxistas é proposital: “Quando ele quer dirigir, tudo o que ele precisa fazer é ligar o app. Não existe tempo mínimo diário, semanal ou mensal para que o motorista parceiro use a plataforma. Ele tem total flexibilidade para trabalhar como, quando e onde quiser” (termos de uso da Uber). Vale lembrar que a palavra “parceiro” remete a alguém que não apresenta diferença em relação ao outro, é um igual ou semelhante, mas a relação entre um motorista de aplicativo e a plataforma pode ser tudo, menos uma parceria. Em verdade, são as empresas do capitalismo de plataforma que detêm a titularidade da estrutura digital das plataformas e estão exercendo um papel de regulação típico do Estado, uma vez que definem e executam políticas, criam regulamentos e julgam conflitos.
Conclusão
A comparação entre motoristas de aplicativo e taxistas falha porque ignora a origem e a natureza do poder regulatório. A regulação dos táxis emana do poder público, fundamentado no princípio da legalidade, para organizar um serviço público. O poder exercido pelas plataformas digitais sobre seus motoristas é de natureza privada, empresarial, e se manifesta através do controle sobre todos os aspectos do trabalho: tempo, espaço, modo de execução, ferramentas e remuneração.
No ordenamento jurídico brasileiro, o único instituto que autoriza uma empresa privada a exercer um poder de controle tão abrangente sobre um indivíduo é a relação de emprego. Transferir automaticamente as características do setor de táxis para o transporte por aplicativo pode ser um erro conceitual. Os motoristas de aplicativo não são autônomos como os taxistas, ainda que sujeitos a algumas normas de ordem pública; eles são trabalhadores cuja reduzida autonomia não resiste ao poder diretivo das plataformas, configurando um vínculo de emprego que o Direito do Trabalho não pode mais ignorar. Nem muito menos o Supremo Tribunal Federal ou o Parlamento brasileiro.
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