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Opinião

Sharenting e limites jurídicos da exposição infantil nas redes sociais

21 de novembro de 2025, 06h01

Na era da hiperconectividade, tornou-se comum que pais compartilhem, nas redes sociais, imagens e informações sobre a rotina de seus filhos. A essa prática, culturalmente normalizada, dá-se o nome de sharenting — termo originado da junção das palavras share (compartilhar) e parenting (criação de filhos). Embora frequentemente guiado por intenções afetivas, o sharenting envolve implicações jurídicas relevantes e exige uma abordagem crítica à luz da proteção integral da criança e do adolescente.

O sharenting materializa uma colisão entre o poder familiar e os direitos da personalidade da criança — em especial sua imagem, privacidade e identidade. Embora os pais tenham o dever constitucional de cuidar e educar (CF/88, artigo 227), esse exercício deve estar sempre orientado pelo melhor interesse do filho, princípio estruturante da proteção infantojuvenil no Brasil.

O poder familiar, compreendido hoje como um munus público, deixou de ser prerrogativa absoluta. Os pais não podem dispor livremente da imagem de seus filhos, tampouco justificar sua exposição digital pela liberdade de expressão. Essa liberdade, no contexto da parentalidade digital, encontra limites nos direitos da criança, titular de proteção reforçada em razão de sua hipervulnerabilidade.

Um dos efeitos mais preocupantes do sharenting é a criação de uma “pegada digital compulsória”: um arquivo permanente sobre a vida da criança, frequentemente iniciado com a publicação de imagens de ultrassom. Sem qualquer capacidade de consentimento, a criança torna-se personagem de uma narrativa pública que poderá influenciar sua autoestima, integridade psíquica e autodeterminação informativa no futuro.

As plataformas digitais, em geral, implementam recursos como a idade mínima obrigatória, configurações de privacidade padrão e ferramentas de supervisão parental, que permitem aos pais limitar o tempo de tela e monitorar contatos de modo a proteger e controlar os riscos das interações com terceiros estranhos, fornecendo uma camada de segurança contra assédio, bullying e a exposição a conteúdo impróprio vindo de fora do círculo familiar.

Panorama normativo

No entanto, de nada adianta as proteções oferecidas pelas redes sociais se os próprios pais são os responsáveis pela superexposição em suas próprias contas, transformando a vida da criança em um repositório de memória pública. Esse descompasso reforça que a responsabilidade primária pela proteção da imagem e privacidade do menor não é algorítmica ou da plataforma, mas parental, sujeita aos limites do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Spacca

Spacca

Esse cenário está inserido no contexto mais amplo da “datificação da infância”, em que hábitos, gostos e comportamentos infantis são transformados em dados, alimentando o modelo de negócios do chamado capitalismo de vigilância. A prática de compartilhar imagens e rotinas deixa de ser apenas uma expressão de afeto para configurar, juridicamente, tratamento de dados pessoais — sujeito aos rigores da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

Nos termos do artigo 14 da LGPD, o tratamento de dados de crianças deve observar estritamente o seu melhor interesse. Ao postar fotos ou vídeos, os pais se posicionam, de fato, como controladores dos dados dos filhos, devendo justificar a necessidade e a finalidade desse tratamento — ainda que realizado sem fins comerciais.

No campo da responsabilidade civil, pais podem ser responsabilizados por danos morais presumidos (in re ipsa) decorrentes da exposição indevida dos filhos. O Código Civil (artigos 21, 186 e 187) e o Código de Processo Civil (artigo 497) permitem, inclusive, a concessão de tutelas inibitórias para remoção de conteúdo. Em casos reiterados ou abusivos, a conduta pode ensejar sanções no âmbito do ECA, como advertência, encaminhamento a programas de orientação e, em situações extremas, suspensão do poder familiar (ECA, artigo 129, X).

O Congresso Nacional discute atualmente propostas legislativas com enfoques diversos. O Projeto de Lei 3.066/2022 propõe criminalizar a superexposição nociva de menores. O PL 2.259/2022 e o PL 3.444/2023 regulamentam a atuação de “influenciadores mirins”, estabelecendo requisitos como autorização judicial, frequência escolar e destinação dos rendimentos à criança. O PL 4.776/2023, por sua vez, aposta na educação digital e na conscientização como ferramentas de prevenção.

No cenário internacional, a França desponta como referência. Sua legislação trata o uso da imagem infantil como trabalho, exige autorização administrativa, protege financeiramente os menores e vincula a autoridade parental ao respeito à vida privada do filho. A exigência de consentimento conjunto dos pais e, a partir de determinada idade, da própria criança, mostra-se uma solução equilibrada entre liberdade e proteção.

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais, também já decidiu sobre a responsabilização do genitor ao utilizar suas redes sociais como um diário virtual para desabafar conflitos e expor o filho menor, mencionando o princípio da proteção integral (artigo 227 da CF/88 e ECA) para fundamentar a violação do direito à imagem, à honra e à privacidade do menor, independentemente da intenção do pai, condenando-o ao pagamento de indenização por danos morais ¹.

Desafio

Sabemos que o tema é sensível e ainda encontra vácuos legislativos, mas entendemos como relevante, no âmbito da proteção dos direitos da criança e do adolescente frente à crescente exposição em redes sociais, que sejam utilizados critérios objetivos para aferir a superação dos limites do poder familiar no que tange à divulgação de imagens e informações de menores de idade.

Tais parâmetros devem subsidiar decisões judiciais voltadas à proteção da dignidade, intimidade e segurança da criança, com fundamento nos princípios constitucionais do melhor interesse e da proteção integral ². A consolidação e aplicação prática desses critérios poderão contribuir para o fortalecimento da atuação judicial preventiva e repressiva frente à superexposição infantil no ambiente digital, afirmando os limites objetivos do poder familiar e a prevalência dos direitos fundamentais da criança e do adolescente.

Temos, portanto, que o sharenting é um fenômeno jurídico multifacetado que exige uma releitura das práticas parentais sob a ótica dos direitos fundamentais da criança. Ainda que inexista uma lei específica sobre o tema, o ordenamento jurídico brasileiro já oferece instrumentos normativos robustos — Constituição, Código Civil, ECA, Marco Civil da Internet e LGPD — que, interpretados de forma harmônica, permitem a tutela da infância no ambiente digital.

Mais do que proibir, é preciso educar. O desafio contemporâneo não está em coibir a parentalidade afetiva, mas em orientar sua expressão dentro de parâmetros jurídicos que respeitem a dignidade e a liberdade futura da criança. Amar é também proteger — inclusive no universo virtual.

 


¹MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. 3ª Vara Cível da Comarca de Governador Valadares. Sentença [Indenização por Dano Moral]. Processo n. 5008307-59.2021.8.13.0105. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/tj-mg/3392511875/inteiro-teor-3392511899 Acesso em: 12 nov. 2025.

² Dentre os elementos a serem considerados, destacam-se: (i) frequência e continuidade das publicações: quando há um padrão reiterado de postagens envolvendo a criança, em caráter não meramente eventual; (ii) tipo de conteúdo: especialmente quando há exposição de situações íntimas, constrangedoras ou sensíveis, como momentos de higiene pessoal, enfermidade, conflitos familiares ou dados escolares; (iii) identificação da criança: presença de informações como nome completo, escola, endereço, rotinas e localizações que comprometam a privacidade e aumentem o risco à segurança; (iv) finalidade ou caráter comercial: divulgação com objetivos mercantis ou de ampliação de audiência, como no caso de perfis destinados à atuação como “influenciadores mirins”; (v) alcance e visibilidade pública: postagens veiculadas em perfis públicos com elevado número de seguidores ou suscetíveis de circulação ampliada em redes de alto engajamento; (vi) repercussão social ou mídia-direta: quando o conteúdo postado gera consequências como compartilhamentos em massa, comentários ofensivos ou invasões à esfera privada da criança; e (vii) ausência de consentimento ou consideração da criança como sujeito de direitos: especialmente em casos que envolvam crianças em idade de discernimento, sem que haja escuta adequada ou respeito à sua autodeterminação informativa.

 


Referências 

ALMEIDA, Creuza. Implicações jurídicas do fenômeno sharenting. Disponível em: https://creuzaalmeida.adv.br/implicacoes-juridicas-do-fenomeno-sharenting/. Acesso em: 14 jul. 2025.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002.

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990.

BRASIL. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018.

BRASIL. Marco Civil da Internet. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014.

FERREIRA, Lúcia Maria Teixeira. A superexposição dos dados e da imagem de crianças e adolescentes na Internet e a prática de Sharenting: reflexões iniciais. MP-RJ, 2023. Disponível em: https://www.mprj.mp.br. Acesso em: 14 jul. 2025.

INSTITUTO ALANA. Sharenting. Disponível em: https://alana.org.br/glossario/sharenting/. Acesso em: 14 jul. 2025.

INSTITUTO ALANA. Privacidade de dados de crianças e adolescentes. Disponível em: https://alana.org.br/glossario/privacidade-de-dados-de-criancas-e-adolescentes/. Acesso em: 14 jul. 2025.

RODRIGUES FARIA, Yasmin. Sharenting: o exercício da liberdade de expressão e do poder familiar dos genitores em colisão com os direitos de personalidade dos filhos. Revista REASE, 2022.

VERBICARO, Dennis; HOMCI, Janaina Vieira. A proteção de dados pessoais da criança na era digital diante do fenômeno do (over)sharenting. Revista da Escola do Legislativo de Minas Gerais, 2023.

Erica Marie Viterito Honda

é advogada especialista em Direito Digital Aplicado pela FGV, pós-graduanda em Direito Digital pelo ITS-Rio e sócia da Lee, Brock, Camargo Advogados (LBCA).

Priscila De Luca

é mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e advogada da banca Lee, Brock e Camargo Advogados (LBCA).

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