Pesquisar
Opinião

Cide-Royalties: interação entre Direito Internacional e Constitucional em face da decisão do STF no Tema 914

20 de novembro de 2025, 19h14

Este artigo aborda o princípio internacional da não discriminação, com foco na Contribuição de Intervenção sobre o Domínio Econômico (Cide-Royalties) no Brasil e sua relação com o acordo Trade-Related Aspects of Intelectual Property Rights (Trips) da Organização Mundial do Comércio (OMC).

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade da Cide, mas não examinou a aplicação do Trips, um fundamento que ainda deverá ser discutido pelo Superior Tribunal de Justiça e, possivelmente, pelo STF novamente. Embora a Cide seja constitucional, tratados internacionais, dos quais o Brasil é parte, podem restringir sua aplicação, especialmente no que se refere à tributação de remessas de dividendos, juros e royalties.

Princípio da não discriminação (direta e indireta) e suas exceções

No plano internacional, a garantia da não discriminação está assegurada em vários tratados internacionais, dentre os quais a Carta das Nações Unidas, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (ONU), a Convenção Europeia de Direitos Humanos, a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, os Tratados do Gatt (mercadorias), do Gats (serviços) e Trips (royalties) no âmbito da OMC, os acordos bilaterais de investimentos e os acordos bilaterais de dupla tributação.

A interpretação harmônica entre os estados signatários é fundamental, pois interpretações divergentes minariam o objetivo dos tratados. A maioria desses tratados preveem a criação de tribunais internacionais independentes, que asseguram a aplicação dos princípios do direito internacional e a Convenção de Viena sobre o direito dos tratados.

A Convenção de Viena é um documento essencial sobre a interpretação de tratados internacionais. Mesmo países que não a adotaram precisam observar suas normas, que garantem uma interpretação que busque a finalidade e o objetivo do tratado. O descumprimento, de forma direta ou indireta, dos tratados deve ser evitado para que eles se tornem aplicáveis e significativos. O princípio da boa-fé (artigo 26) e a proibição de invocar o direito interno para violar tratados (artigo 27) são cruciais nesse contexto.

O princípio da não discriminação deve ser compreendido de forma a prevenir tanto discriminação direta quanto indireta. No caso da Cide royalties, que se aplica apenas quando o titular dos royalties é estrangeiro, percebe-se uma clara discrepância em relação aos titulares nacionais. Embora se argumente que não há discriminação, a carga tributária revela uma discriminação indireta baseada na origem do titular.

A discriminação indireta ocorre quando regras gerais afetam desproporcionalmente certos grupos. Exemplos incluem regras que exigem conformidade com padrões que podem prejudicar certas características raciais ou culturais. O caso Schumacker (Case C-279/93) decidido pelo Tribunal de Justiça Europeu é um exemplo emblemático de discriminação indireta, onde um residente belga não conseguiu deduções fiscais aplicáveis apenas a residentes fiscais alemães.

Spacca

Spacca

Os acordos de dupla tributação possuem regras antidiscriminatórias mais específicas e frequentemente proíbem discriminações diretas e indiretas. A diferença na tributação entre residentes e não residentes pode ser válida, mas deve haver cuidados para evitar injustiças. O Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) também aborda a discriminação indireta com base na nacionalidade, reforçando a necessidade de equidade.

Se a Cide-Royalties for vista como uma forma de discriminação indireta, então deve haver uma justificativa objetiva para sua aplicabilidade, como promover investimento e inovação no Brasil. A distinção entre os recebimentos de royalties de residentes e não residentes, segundo a qual a Cide não se aplica aos pagamentos feitos a residentes, indica que a discriminação está baseada na origem do titular. Essa diferença deve ser justificada à luz do artigo 5° da Constituição e conforme tratados internacionais do qual o Brasil seja parte.

Além das normas constitucionais, tratados internacionais devem ser considerados em sua relação com a ordem jurídica interna. As regras de não discriminação devem garantir uma relação que não gere discriminação direta ou indireta, permitindo justificativas apenas sob circunstâncias excepcionais e baseadas nas normas específicas dos tratados.

Exceções estabelecidas em tratados como Gatt, Gats e Trips permitem discriminações apenas em casos de proteção da moral pública, saúde e segurança. O Trips, por exemplo, insiste que direitos de patentes sejam usufruídos sem discriminação, admitindo exceções apenas por motivos relevantes e justificados, conforme analisado adiante.

Tratados internacionais e a interação com o Direito interno

Os tratados internacionais interagem com as ordens jurídicas internas, seguindo as diretrizes da Convenção de Viena sobre o direito dos tratados. A distinção entre direito interno e internacional é relevante quanto a sua fonte, âmbito de aplicação, mas também didática, pois os tratados fazem parte do Direito de cada Estado e devem ser cumpridos de boa-fé desde sua celebração e incorporação nas suas respectivas ordens jurídicas. A jurisprudência internacional estabelece que os tratados asseguram garantias mínimas, permitindo que os Estados ofereçam direitos mais amplos. Por exemplo, um tratado pode garantir ampla defesa em processos judiciais, sem impedir que um Estado estenda essa proteção a processos administrativos.

Esse princípio se aplica ao direito à não discriminação, que é considerado parte do ius cogens, ou direito internacional de observância obrigatória. Assim, se um tratado proíbe discriminação direta e indireta, a legislação nacional não pode restringir essa proteção apenas a casos de discriminação direta. No Brasil, o artigo 5º, parágrafo 2º da Constituição estabelece que os direitos nela expressos não excluem os decorrentes de tratados internacionais. Portanto, um tratado que amplie direitos não pode ser considerado inconstitucional por conflito aparente com a Constituição, a não ser que violasse uma cláusula pétrea ou um princípio fundamental do Estado como a proteção ao meio ambiente.

Um constitucionalismo de cooperação requer respeito mútuo das ordens jurídicas dos Estados e uma interpretação harmônica dos tratados internacionais. Os tribunais constitucionais podem considerar conceitos de acordos internacionais em suas interpretações, tal como nas denominadas interpretações conforme os convênios internacionais ou interpretação convenial. Ademais, o artigo 98 do CTN estabelece que a lei tributária interna não prevalece sobre dispositivo de tratado internacional, o que se aplica também aos tratados no âmbito da OMC.

Propriedade intelectual e a não discriminação no Acordo Trips

O Acordo Trips, que regula os direitos de propriedade intelectual, estabelece o princípio do tratamento nacional, onde cada membro deve tratar nacionais de outros países de maneira igual à que trata seus próprios nacionais. Essa igualdade inclui as condições tributárias, implicando que os países signatários não podem favorecer seus nacionais em detrimento de estrangeiros nas relações de propriedade intelectual.

A Nota 3 do artigo 3º do Trips expande o conceito de “proteção” a incluir aspectos do exercício dos direitos de propriedade intelectual, que, por sua vez, abrange a percepção de royalties [1]. Se os nacionais não pagam Cide sobre royalties, enquanto esse encargo recai sobre titulares estrangeiros, isso caracteriza discriminação baseada na nacionalidade.

O professor Luiz Olavo Baptista, juíz e ex-presidente do Órgão de Apelação da OMC, em parecer não publicado, confirmou que “quaisquer medidas que importem em restrições ao usufruto ou que possam criar obstáculos ao exercício de direitos de propriedade intelectual, nos termos da nota de rodapé ao artigo 3.1, Trips, torna imperiosa a avaliação sob a perspectiva do Tratamento Nacional”…. “Ainda que possua natureza extrafiscal, a Cide-Royalties está em desacordo com o regime de comércio internacional, não sendo possível o afastamento do princípio do tratamento nacional.”

Também nesse sentido é o ensinamento da doutrina internacional, valendo citar como exemplo a conclusão do professor norte-americano Frederick M. Abbott, de que “a principal limitação de uma tributação envolvendo direito de propriedade intelectual é o princípio do tratamento nacional, tal qual estabelecido no Artigo 3 do Trips. (…) Assim, ao aplicar tributação envolvendo direito de propriedade intelectual em relação a empresas sediadas em países membros da OCDE, os países em desenvolvimento deverão aplicar igualmente às empresas nele sediadas esta mesma tributação”.[2]

Enfim, a Cide royalties, criada como um tributo extrafiscal, não se alinha ao princípio do tratamento nacional estabelecido pelo Trips. A falta de uma justificativa aceita nas exceções do Gatt e Trips, como proteção ambiental ou moralidade pública, impõe à Cide um caráter discriminatório que viola os princípios dos Acordos da OMC e especificamente o Trips.  No plano dos tratados internacionais deve também haver uma relação de causa e efeito e que não seja direta ou indiretamente discriminatória, admitindo-se uma justificativa legítima e objetiva somente nas situações de exceção estabelecidas nas próprias regras antidiscriminação, como são exemplos as do Gatt (artigo XX), Gats (artigo XIV) e Trips (artigo XXVII).

Previstas sob o título de exceções gerais, normalmente permitem uma situação de discriminação direta ou indireta somente se necessária para proteger a moral pública ou para manter a ordem pública ou ainda necessária para proteger a vida humana, animal, vegetal ou a saúde (alíneas “a” e “b” dos mencionados artigos do Gatt e do Gats). Igualmente o Trips com o mesmo fundamento das exceções gerais expressamente previstas reitera que os direitos de patente, por exemplo, devem ser usufruídos sem discriminação em relação ao lugar da invenção, o campo de tecnologia e se os produtos são importados ou produzidos localmente, somente admitindo-se exceções em casos de necessidade de proteção da ordem pública ou moralidade, incluindo a proteção da vida humana, animal e vegetal, ou ainda para evitar dano sério ao meio ambiente (parágrafos 1 e 2 do artigo 27).

Mesmo que a Cide tente justificar uma discriminação “indireta” como socialmente aceitável, tal justificativa se mostra ilícita sob a orientação do Trips e os princípios do Gatt. Portanto, a tributação que discrimina com base na nacionalidade do titular dos royalties viola os direitos garantidos por tratados internacionais, demonstrando a necessidade de uma harmonização entre o direito interno e as normas internacionais.

 


[1] “ARTIGO 3 TRATAMENTO NACIONAL 1. Cada Membro concederá aos nacionais dos demais Membros tratamento não menos favorável que o outorgado a seus próprios nacionais com relação à proteção da propriedade intelectual, salvo as exceções já previstas, respectivamente, na Convenção de Paris (1967), na Convenção de Berna (1971), na Convenção de Roma e no Tratado sobre Propriedade Intelectual em Matéria de Circuitos Integrados.

NOTA 3 Para os efeitos dos Artigos 3 e 4 deste Acordo, a ‘proteção’ compreenderá aspectos que afetem a existência, obtenção, abrangência, manutenção e aplicação de normas de proteção dos direitos de propriedade intelectual, bem como os aspectos relativos ao exercício dos direitos de propriedade intelectual de que trata especificamente este Acordo.”

[2] The WTO Trips Agreement and Global Economic Development – The New Global Technology Regime, 72 Chi.-Kent L. Rev. 385 (1996). Disponível em: https://scholarship.kentlaw.iit.edu/cklawreview/vol72/iss2/5, acesso em 19/09/2019.

João Dácio Rolim

é advogado, sócio-fundador do escritório Rolim, Goulart & Cardoso Advogados, LLM pela London School of Economics, doutor em Direito Tributário pela UFMG, doutor em Direito Internacional Tributário e Comparado pela Queen Mary University of London, professor do Curso do Mestrado em Direito Internacional Tributário e Comparado do IBDT e ex-consultor da UNECA (United Nations Economic Commission for Africa).

Seja o primeiro a comentar.

Você precisa estar logado para enviar um comentário.

Leia também

Não há publicações relacionadas.