A megaoperação policial do último dia 28 de outubro, nos complexos da Penha e do Alemão, evidencia mais uma vez que o Estado possui inteligência tática para incursões episódicas em áreas sob domínio faccional, mas carece de uma macropolítica capaz de assegurar presença contínua com efetiva solução do problema. A busca por resolução rápida, mágica e definitiva acabou por nos trazer de volta a discussão do quase centenário problema da criminalidade faccional do Rio de Janeiro. O endurecimento penal voltou ao centro do debate, mas a proposta de “Lei Antifacção” repete velhos erros.

A gênese do problema remonta à convivência carcerária entre presos políticos e comuns no Instituto Penal Cândido Mendes, na Ilha Grande (RJ), nas décadas de 1950-1960. Estruturaram-se hierarquias, princípios de convivência, mecanismos de financiamento para aquisição de armamentos e redes de corrupção. O surgimento da Falange Vermelha (matriz do Comando Vermelho) evidencia uma filiação indireta ao próprio Estado: prisões superlotadas, desorganizadas, violentas e desproporcionais converteram a execução penal em fator de agregação e solidariedade — e não em reintegração social, como determina a Lei de Execução Penal. Ao longo de décadas, o descontrole repressivo tornou-se cada vez mais violento, alimentando indignação institucional. Diante da ausência de perspectivas de solução estrutural, o Estado passou a acionar legislação de emergência.
A Lei 12.850/2013 define o que seja organização criminosa com o número mínimo de quatro ou mais pessoas, caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informal, visando obter vantagem de qualquer natureza mediante a prática de infrações penais com pena máxima superior a 4 anos ou de caráter transnacional.
Trata-se de um tipo “ônibus”: sua elasticidade permite abarcar desde esquemas empresariais desviados (p. ex., fraudes tributárias/ambientais, corrupção, contrabando) até arranjos narcoterritoriais. Justamente por isso, o conceito diz pouco sobre fenômenos com marcas de controle especial e social local. Abarcar empresa delitiva e facção territorial no mesmo enunciado normativo contraria lógica conceitual.
Essa insuficiência sugere examinar, pois o tipo de terrorismo (Lei 13.260/2016) como possível parâmetro diferenciador. A mídia tem difundido a expressão “narcoterrorismo”, adotada tanto por discursos punitivistas de esquerda quanto pela direita autoritária, mas o rótulo não encontra tipificação legal própria no ordenamento brasileiro. A Lei 13.260/2016 (março de 2016), passou-se a disciplinar o terrorismo como a prática de ações por razão de xenofobia, discriminação ou preconceito. Exige-se também a finalidade específica: provocar terror social ou generalizado.
Há, portanto, uma especialização do conceito que traz segurança jurídica. A finalidade específica (“provocar terror social ou generalizado”) pode, em tese, aparecer em dinâmicas de narcocriminalidade; contudo, há uma barreira intransponível quando a motivação é “por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião”. Em regra, o crime organizado não ostenta essas motivações por terem escopo financeiro, precipuamente. Assim, o conceito típico de terrorismo no Brasil é de restritiva e específica motivação afastando-se dos móveis faccionais.
Não se inclui, portanto, de modo explícito e direto, nem na lógica ampla do crime organizado (Lei 12.850/2013), nem no recorte restrito do terrorismo (Lei 13.260/2016), o narcocoercitivismo típico brasileiro.

Quer nos parecer claro desde o início que não há motivação de raça, cor, etnia ou religião por trás das empreitadas faccionais. Entretanto, impressiona o sentimento de pertencimento à facção descrito por William da Silva Lima [1]. Ali se relata — como já pontuado — que o Comando Vermelho surgiu da reação de presos às condições carcerárias no Brasil, com reivindicações por melhorias. Logo, a origem não é financeira. À luz da subcultura criminal (Cohen), há racionalizações que ajudam a explicar por que indivíduos se dispõem a morrer em defesa do nome de uma facção.
A discussão da motivação para além do financeiro passa pela psicologia das massas (Freud): gregarismo, pertencimento e solidariedade criam vínculos afetivos com a facção, a ponto de alguns se disporem a morrer pela “causa”. Mecanismos psíquicos (identificação, idealização, desindividualização) e móveis sociais (status, reconhecimento, proteção) alimentam uma criminalidade de grupo que alavanca as facções brasileiras de modo peculiar.
Na Criminologia [2] (escola sociológica do consenso), a associação diferencial (Sutherland) indica que o sujeito aprende técnicas e racionalizações pela convivência; a anomia (Merton) explica a expansão do crime onde faltam oportunidades legítimas e falha o Estado. Nas abordagens do conflito, destaca-se o labelling approach (etiquetamento): a pessoa internaliza o rótulo social atribuído e age conforme a identidade imposta. Assim, o rótulo “Comando Vermelho” produz expectativas coletivas e trajetórias conformes — o grupo tende a corresponder ao que dele se espera, reforçando coesão e persistência.
É evidente também que o quadro violento da criminalidade organizada inclui indivíduos com perfil de psicopatia individual (transtorno de personalidade antissocial [3]), o que autoriza cogitar uma psicopatia organizacional: lideranças frias, normas rígidas de lealdade e gestão pelo medo.
Portanto, a motivação criminosa pelo viés facção é muito mais complexa do que meramente financeira. É multifatorial.
Outra característica é a territorialidade. Registra Mingardi [4]:
“…por causa dessas regiões onde o Crime Organizado é mais visível do que o aparelho do Estado, as chamadas zonas liberadas, criou-se uma teoria errônea, que dão ao crime organizado o status de um Estado Paralelo. Linhas paralelas, segundo qualquer dicionário, são aquelas que nunca se encontram. (…) Para refutar isso basta notar o grande número de funcionários públicos de todos os escalões que são acusados de manterem relações com organizações criminosas. Em nenhum momento estas organizações puderam prescindir de um apoio de setores do Estado.”
Uma linha de máxima gravidade ficou para trás há muito tempo: vive-se uma anomalia institucional grave no ponto. Não se trata é tecnicamente, entretanto, “território estrangeiro”, “Estado paralelo” ou exclusão pura da soberania, mas, sim, uma simbiose com o Estado, uma forma de convivência adaptativa.
Fica claro, portanto, que há conexão com o Estado — e não exclusão do Estado — nesses territórios. Existem múltiplas áreas urbanas no território brasileiro em que facções criminosas (incluídas as milícias) exercem atividades e impõem normas (inclusive de vida e de morte), cobram taxas, controlam rotas e serviços (transporte, internet clandestina, gás), ditam padrões culturais, erigem zonas de silêncio, retiram pessoas de suas casas, cometem toda sorte de violências – muitas, talvez, sequer conhecidas.
Os alarmistas propalam tratar-se de um “Estado paralelo” ou de “micro-soberanias”, para justificar o tratamento como “inimigos” e alcançar uma legislação exclusiva. O Estado se mostra débil, mas não inexistente. Em linha semelhante, o estudo alemão de Hassemer [5] aproxima o crime organizado de outras manifestações criminosas justamente por sua proximidade com o aparelho estatal. A criminalidade organizada
“…não é apenas uma organização bem feita, não somente uma organização internacional, mas é, em última análise, a corrupção da legislatura, da magistratura, do Ministério Público, da política, Logo, a paralisação estatal no combate à criminalidade.”
Conclui-se, o crime organizado subsiste pela venalidade estatal: quem deveria combatê-lo fica paralisado por cooptação de agentes públicos.
Os direitos fundamentais em operações policiais são de difícil controle. Análises sobre a legalidade, proporcionalidade do uso da força, devido processo legal, cadeia de custódia são frequentemente relegados a segundo plano. Claro que a situação é complexa, mas, juridicamente falando, gera insegurança.
Punitivismo midiático
Os meios de comunicação têm grande responsabilidade também no quadro ao propalar situações alarmantes. Nesse embalo da mídia, partidos políticos, conversas de bar, universidades, ONGs e setores da esquerda punitiva e da direita autoritária convergem para que o Legislativo crie novos crimes, aumente penas e restrinja direitos e garantias individuais sob a alcunha de combate à violência. Aproxima-se, assim, da doutrina do Direito Penal do Inimigo de Jakobs [6] ao conceituar o “não-alinhado” de modo distinto em detrimento do fato. Quer dizer, se julga mais o autor do fato do que o fato do autor:
“O não-alinhado é um indivíduo que, não apenas de maneira incidental, em seu comportamento (criminoso grave) ou em sua ocupação profissional (criminosa e grave) ou, principalmente, por meio de vinculação a uma organização (criminosa), em qualquer caso de forma presumivelmente permanente, abandonou o Direito e, portanto, não garante o mínimo de segurança cognitiva do comportamento pessoal e o manifesta por meio de sua conduta.”
O grave problema dessa teoria é o de julgar a pessoa e não o fato, pois. Limita-se a dignidade da pessoa humana enquanto tal.
Em estudo de caso bastante semelhante à “emergência” erigida como justificativa para quebrar garantias, Ferrajoli conclui que o Direito Penal produzido na Itália para enfrentar terrorismo e criminalidade organizada contrasta com os princípios do Estado de Direito, convertendo-se em “justiça política”, decisionista e inquisitória. Fundada na lógica amigo/inimigo e movida pelo mesmo consenso volátil da opinião pública, cria um direito penal “especial”, no sentido de fora do sistema. Aprofunda-se na distorção substancial e subjetiva. Ferrajoli [7] denomina isso de uma justiça política assim:
“O direito penal produzido na Itália para enfrentar a emergência do terrorismo e da criminalidade organizada é, indubitavelmente, sob mais de um dos pontos perfilados, contrastante com os princípios do Estado de direito. (…) produziu uma justiça política alterada na lógica interna em relação aos cânones ordinários: não mais atividade cognitiva baseada na imparcialidade do juízo, mas procedimento decisionista e inquisitório (…).”
Quer dizer, há uma razão política sobreposta à razão jurídica — e a razão política não tem forma nem garantias contra o poder do Estado. Ela é amorfa, emocional, impulsiva e reativa. Importa apenas o resultado: prisão ou morte, precedidos de rupturas da normalidade, com reações afoitas, sem técnica, mas com repercussão no eleitorado, sem respeito aos princípios, sem inteligência sistêmica, nas mais das vezes intuitivas e sentimentais, mas que alimentam a sociedade tal qual uma resposta imediata à criminalidade. As incursões policiais de alta letalidade e a legislação do pânico são filhas da mesma mãe, galhos do mesmo tronco: o sistema penal performático.
O PL 5.582/2025 (“antifacção”), tal como tramita na Câmara, traz tipificação com especificidade do fenômeno territorial. O referido PL distingue “facção criminosa” quando há controle de território/atividade econômica mediante coação e eleva penas (8-15 anos). Reconhece, pois essa especificidade que chamamos de “criminalidade de coerção territorial” sendo um avanço, apesar de muitos retrocessos.
Entre os pontos críticos do PL, destacam-se o perdimento “extraordinário” de bens com absolvição/arquivamento (artigo 144-D, § § 2º e 3º). Mas, a pessoa foi absolvida, como fundamentar a perda de bens? Assusta também o acesso e retenção massivos de dados sem ordem judicial; a infiltração por “colaborador”; o monitoramento de comunicação preso-visitante, possibilitando inclusive discussões referentes à atuação do advogado; a hipertrofia de prazos; a criação de um Banco Nacional de Facções estigmatizante e passível de erro sistêmico (labeling) que certamente irá fundamentar acusações perpétuas e condenações “cíclicas”.
Trata-se de punitivismo performático, midiático — e ineficaz —, com alta probabilidade de excessos e de atingir inocentes. Não alcança o motor econômico das facções nem melhora a qualidade probatória; antes, revela desprezo pelos princípios constitucionais.
Esse PL é um exemplo do porquê deve-se evitar “leis de emergência”. Surgem para simular eficiência governamental, mas desrespeitam princípios básicos. Feitas às luzes da ribalta, criam tipos abertos e atentam contra um Direito Penal minimamente limitador do poder estatal, invertendo a lógica de sua existência.
A política criminal brasileira é desorientada, assistemática, excepcionaliza direitos humanos, obedece a “modismos” e não se submete muitas vezes aos princípios constitucionais. A ilusão da lei milagrosa se repete: o endurecimento simbólico que consola o eleitor, mas fragiliza o Estado de Direito.
[1] Quatrocentos contra um: a história do Comando Vermelho. Rio de Janeiro: ANF, 2016.
[2] Shecaira, Sérgio Salomão. Criminologia. 3ª. Edição. São Paulo: RT, 2011, páginas 149 e ss.
[3] O transtorno de personalidade antissocial (DSM-V 301.7, F60.2) abarca a psicopatia e a sociopatia. Caracterizam-se principalmente pela violação de regras sociais com agressão, destruição de propriedade, fraude, roubo e ocupações ilegais. São manipuladores, cínicos e teatrais, como de resto todos os outros tipos de transtornos do cluster b (narcisistas, histriônicos e borderlines). Demonstram pouco remorso ou serem completamente indiferentes pelas consequências de seus crimes. Nem todo criminoso é, entretanto, psicopata e nem todo psicopata é criminoso, não se pode generalizar. Mas, certamente, entre os faccionados há psicopatas. Ver DSM-V, tradução de Maria Inês Corrêa Nascimento et all., 5ª. Ed. Porto Alegre: Artmed, 2014, p. 659 e ss.. e ABREU, Michele O. de. Da Imputabilidade do Psicopata. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2023.
[4] MINGARDI, Guaracy. O Estado e o crime organizado. São Paulo: IBCCRIM, 1998, p. 64–65.
[5] HASSEMER, Winfried. Três temas de Direito Penal. Porto Alegre: FESMP, 1993, p. 85.
[6] JAKOBS, Günther. Ciência do direito e ciência do direito penal. Trad. por Maurício Antonio Ribeiro Lopes. São Paulo: Manole, Coleção Estudos de Direito Penal, 2003. Volume 1, p. 57.
[7] FERRAJOLI, Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal, São Paulo: RT, 2002, p. 655.
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