O presidente argentino instituiu, por meio de um Decreto de Necessidade e Urgência (DNU 805/2025), no último dia 12 de novembro, um novo marco regulatório para os serviços de água e saneamento, com vistas à futura privatização ou reestruturação da AySA — Aguas y Saneamientos Argentinos S.A. O texto é denso, tecnicamente sofisticado e claramente orientado a dar previsibilidade para investidores, estabilidade para o regulador e segurança jurídica para os usuários.

Para o Brasil, que vive um ciclo de debates sobre concessões, universalização e modelos de governança dos serviços essenciais, o DNU argentino funciona como um alerta: revela convergências, expõe carências e, sobretudo, demonstra que não há regulação moderna de saneamento sem planejamento, autonomia regulatória e controle social real.
A promulgação desse novo Marco Regulatório argentino, organiza a prestação do serviço, define as características de setores estratégicos que demandam investimentos intensivos, pretende gerar estabilidade contratual e mecanismos de governança de alto padrão. Para o jurista brasileiro, familiarizado com o regime da Lei 8.987/1995, o PND (Lei 9.491/1997), a Lei 13.303/2016 e o Novo Marco do Saneamento (Lei 14.026/2020), o DNU argentino oferece um caso de aproximação entre modelos de direito regulatório na América Latina.
Direito Humano à Água como eixo normativo
O novo marco regulatório parte de uma premissa constitucional que a água é um Direito Humano. Não se trata de retórica. O DNU incorpora essa diretriz como vetor interpretativo de todo o sistema, vinculando tanto a concessionária quanto as autoridades reguladoras. Isso significa que a eficiência econômica, embora indispensável, não substitui o dever de universalização, continuidade e acesso equitativo.
A Concessionária deve prestar um serviço contínuo, regular, eficiente e universal, observando padrões técnicos de qualidade. Os usuários localizados na área servida têm obrigatoriedade de conexão, reforçando a lógica sanitária da universalidade compulsória.
O reconhecimento da água como direito humano não impede a delegação do serviço; ao contrário, fundamenta juridicamente a imposição de deveres de expansão da rede e de manutenção de um regime tarifário compatível com o acesso equitativo.
Do ponto de vista econômico, o DNU estrutura um regime de remuneração centrado no princípio do equilíbrio econômico-financeiro. Esse princípio, que no Brasil se consolidou desde a década de 1990 como cláusula fundamental dos contratos de concessão, é reforçado pelo decreto
Além disso, o marco institui uma Tarifa Social, destinada a consumidores de baixa renda, estruturada de modo a não comprometer o equilíbrio econômico-financeiro. Essa solução é coerente com a matriz brasileira de subsídios explícitos e com o movimento internacional de transparência tarifária.
Dimensão institucional: novidades

A dimensão institucional do DNU é, talvez, a mais interessante sob a perspectiva do direito administrativo. O marco regulatório argentino desenha um sistema de autoridades públicas com competências bem distribuídas: o Concedente, representado pelo Poder Executivo Nacional e pelo Ministério da Economia, exerce a titularidade e outorga da concessão; a Agencia de Planificación (Apla) é incumbida do planejamento estratégico e da formulação do Plano Diretor de Melhora Estratégica, elemento central para a expansão da infraestrutura; o Ente Regulador de Agua y Saneamiento (Eras) desempenha o papel de autoridade reguladora autárquica, com poderes de polícia administrativa, definição tarifária, fiscalização operacional e resolução de reclamações de usuários; a Subsecretaría de Recursos Hídricos responde pela proteção dos recursos hídricos; e a Subsecretaría de Ambiente atua como autoridade ambiental competente para fins de licenciamento e padrões de emissão. A Concessionária, por sua vez, assume obrigações operacionais, financeiras e de investimento, devendo manter uma contabilidade regulatória própria e transparente.
A separação institucional entre planejamento (Apla) e regulação (Eras) é uma característica marcante do modelo. No Brasil, parte significativa das críticas regulatórias decorre da superposição de funções técnicas, econômicas e decisórias em um mesmo órgão ou entidade. A Argentina, ao criar uma autarquia dedicada exclusivamente ao planejamento, reconhece a necessidade de separar a função estratégica de expansão de longo prazo da função fiscalizatória e tarifária.
A Apla tem função para definir obras estruturais, acompanhar a execução técnica e atualizar o planejamento de infraestrutura em função de demandas demográficas e ambientais. Já o Eras, com diretores dotados de mandatos fixos, concentra a disciplina econômica da concessão e a fiscalização da prestação, reforçando sua independência e reduzindo riscos de captura, grande crítica feita ao modelo brasileiro.
Inovação regulatória
O ponto mais inovador do DNU, entretanto, diz respeito ao controle social reforçado. Enquanto a legislação brasileira prevê participação social principalmente por meio de audiências e consultas públicas, o marco argentino institucionaliza a participação dos usuários dentro da própria estrutura regulatória. O Eras incorpora, de maneira permanente e orgânica, a Sindicatura de Usuários, composta por entidades representativas dos consumidores, e o Defensor do Usuário, figura institucional investida de legitimidade para atuar em defesa dos interesses coletivos no âmbito do serviço regulado, uma espécie de instituição secundária de garantias de direitos. Essa engenharia institucional confere densidade democrática ao processo regulatório, garantindo que a perspectiva dos usuários não seja episódica, mas cotidiana e dotada de prerrogativas formais. Do ponto de vista teórico, trata-se de uma evolução em direção à regulação participativa, que supera o modelo consultivo e adota uma participação vinculada e institucionalizada, com uma instituição própria para tal fim.
Sob o prisma da privatização, o marco regulatório cumpre uma função preparatória semelhante àquela desempenhada no passado pelo PND no Brasil. A cláusula transitória do DNU prevê que a implementação integral das disposições ocorrerá após a formalização da privatização, com a possibilidade de um período de transição de até cinco anos. Essa técnica jurídica demonstra maturidade regulatória: privatizações bem-sucedidas dependem de marcos normativos prévios, claros e estáveis. A Argentina optou por fixar a moldura regulatória antes de atrair o operador privado.
Por fim, a comparação com o Novo Marco do Saneamento brasileiro revela paralelos importantes. Ambos os regimes adotam metas de universalização, fortalecimento do planejamento, regionalização dos serviços e necessidade de sustentabilidade tarifária. A principal diferença é que o modelo argentino atribui papel central a órgãos autárquicos. Além disso, a institucionalização do controle social no Eras representa um ponto a ser observado.
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