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Diário de Classe

Tema 1.329: notificação por edital e garantias no processo ambiental

15 de novembro de 2025, 08h00

O STJ (Superior Tribunal de Justiça) decidiu recentemente, através do Tema nº 1329 [1], que no procedimento administrativo que apura infração ambiental a intimação por edital somente acarretará nulidade dos atos posteriores caso a parte demonstre a existência de efetivo prejuízo. A leitura do acórdão publicado revela aquilo que Streck e Berti [2] chamaram de “um ‘harmless error’ à brasileira”.

Não há como admitir que o processo sancionador se consolide despido de garantias processuais, cujas fontes emanam da Constituição e das leis, adotando-se um “mínimo é” dogmático. É claro que essas garantias não se limitam a esses postulados, mas vamos localizar, epistemológica e didaticamente, o tema neste campo.

O processo administrativo sancionador tem elevada severidade com multas em patamares significativos. Admitir o risco de um processamento esvaziado, sem garantia da contraposição de fundamentos defensivos nas fases processuais, é estampar um descaso com a processualística, a forma, o dever, e a garantia fundamental à plenitude de defesa.

Nulidades, ônus da prova e comunicação dos atos processuais

Violações às garantias estruturantes do artigo 5º, LV, da CF e artigoo 26, da Lei nº 9.784/99 atraem nulidades, cujo prejuízo não depende de qualquer esforço da defesa, sua consequência é presumida. Exigir que a defesa prove, a posteriori, o que teria acontecido se a garantia tivesse sido respeitada é inverter o ônus, naturalizar assimetrias e transformar o devido processo em prova diabólica [3].

As formas traduzidas pela Lei nº 9.784/99, acerca de como a comunicação dos atos processuais deve ser efetivada para assegurar a ciência do administrado, não são adornos protocolares que podem ser dispensados para justificar o arbítrio, de modo que não pode ser extirpada ou mitigada por comandos normativos inferiores. Sendo assim, é evidente que a alegada previsão de possibilidades de notificação por edital previstas no Decreto nº 6.514/08 é natimorta. Subverter a garantia para convalidar inovações procedimentais por instrumento infralegal não pode ser sustentada, ainda mais se for feita sob o manto do “princípio” pas de nullité sans grief, apenas para servir de utilitarismo processual. É inaceitável que se admita um caminho indiferente à Constituição.

Quando a formalidade violada tutela direito fundamental, o prejuízo é, por definição, in re ipsa. A violação não se mede por impactos contingentes no resultado, mas por sua aptidão para deslegitimar o procedimento. É exatamente por isso que a exigência de “prejuízo concreto” é, nesse campo, um erro de categoria. Pedir que a defesa demonstre como o mundo teria sido “se” a forma tivesse sido respeitada é impor-lhe uma prova negativa, especulativa e inatingível. Ao mesmo tempo, o Estado colhe vantagens da própria irregularidade, o que subverte o papel contramajoritário das formas-garantia e instala incentivos perversos [4].

Coerência, integridade e decisão judicial

Não inventamos o Direito e seus sentidos, eles são encontrados em um a priori compartilhado e intersubjetivo e, por isso, há um controle de legalidade e juridicidade. E aqui se destaca, sobremaneira, o risco procedimental, pois o Tema nº 1329 decide uma controvérsia jurídica multitudinária, cujos efeitos, além de serem erga omnes, reverberam consequências processuais e jurídicas que definem a maneira de decidir de acordo com o precedente. Ou seja, a gravidade das escolhas utilitaristas, em detrimento da processualística e das garantias fundamentais, são de efeitos deletérios.

O julgado revela que o STJ reconhece a afronta direta da regra do artigo 122, parágrafo único, do Decreto nº 6.514/2008 ao disposto no artigo 26, §3º, da Lei nº 9.784/1999, mas destaca que a tradição do sistema processual nacional e de sua jurisprudência se sustenta na adoção do dito “princípio” pas de nullité sans grief, expressando que não há nulidade processual sem demonstração de prejuízo. Salta aos olhos, no entanto, que o STJ empregou valoração à regra do decreto, sem atentar que nenhum dos dispositivos citados na decisão (artigo 80, da Lei nº 9.605/98; artigo 55 e 69, da Lei nº 9.784/99) deram à regulamentação a liberdade de mitigar direitos fundamentais ou excluir formas procedimentais. Aliás, se pensado com cautela, eles nem poderiam dar essa liberdade, pois confrontaria com a estruturação da normatividade. O Direito deve ter coerência e integridade.

Antes da vigência do regulamento em 2008, a Lei nº 9.784/99 já traduzia o modo como se deveria efetivar a intimação para a ciência de decisão ou efetivação de diligências, entre as quais a apresentação de alegações finais, por meios que assegurassem a ciência do interessado. É irrazoável admitir que alguém devidamente identificado, e por vezes representado por advogado, seja tolhido de ser intimado dos atos processuais, com uma mera notificação ficta publicada em edital de notificação na rede mundial de computadores ou na sede do órgão ambiental, impondo o ônus de acesso indefinidamente, para conferir se o seu processo estaria em pauta de julgamento.

No trecho da decisão que segue abaixo o ‘harmless error’ à brasileira é gritante:

Além disso, não há como negar que essa previsão contida no art. 122, parágrafo único, do Decreto 6.514/2008 contraria o disposto na Lei 9.784/1999, que assim estabelece a forma de comunicação dos atos nos processos administrativos no âmbito da Administração Pública Federal:
Art. 26. O órgão competente perante o qual tramita o processo administrativo determinará a intimação do interessado para ciência de decisão ou a efetivação de diligências.
1º A intimação deverá conter:
I – identificação do intimado e nome do órgão ou entidade administrativa;
II – finalidade da intimação;
III – data, hora e local em que deve comparecer;
IV – se o intimado deve comparecer pessoalmente, ou fazer-se representar;
V – informação da continuidade do processo independentemente do seu comparecimento;
VI – indicação dos fatos e fundamentos legais pertinentes.
2º A intimação observará a antecedência mínima de três dias úteis quanto à data de comparecimento.
3º A intimação pode ser efetuada por ciência no processo, por via postal com aviso de recebimento, por telegrama ou outro meio que assegure a certeza da ciência do interessado.
4º No caso de interessados indeterminados, desconhecidos ou com domicílio indefinido, a intimação deve ser efetuada por meio de publicação oficial.
5º As intimações serão nulas quando feitas sem observância das prescrições legais, mas o comparecimento do administrado supre sua falta ou irregularidade.
Art. 28. Devem ser objeto de intimação os atos do processo que resultem para o interessado em imposição de deveres, ônus, sanções ou restrição ao exercício de direitos e atividades e os atos de outra natureza, de seu interesse.

Ora, se essa é a regra, por que o Decreto pode suplantá-la? E por que ele ainda pode vencer a tutela de direito fundamental como garantia indisponível e essencial à plenitude de defesa? Não há fundamento que justifique essa escolha. Aliás, parece que estamos diante de simples escolha, pois escolher é diferente de decidir.

Decidir é ato de responsabilidade política e não mera opção por uma ou mais teses. A democracia, segundo Dworkin, sempre corre perigo se a aplicação do Direito é feita sem uma adequada teoria da decisão, enfim, de uma criteriologia e, finalmente, sem mirar em uma resposta adequada que atenda aos primados constitucionais [5]. A imputação condenatória de alguém por infração ambiental deve ser um ato de decisão, não de escolha.

A necessidade de um constrangimento epistemológico é central neste cenário e, para isso, cito uma metáfora de amigos juízes, contada no Dicionário de Hermenêutica [6], do professor Lenio Streck, em que o grupo se reuniu para discutir seus casos e chegou à conclusão de que cada um decidia de uma forma e que, no final das contas, acabavam sendo arbitrários e injustos. Do mesmo modo que na metáfora dos amigos juízes (e na realidade dos tribunais), também no seio da ideologia dogmática é difícil perceber seu próprio equívoco de dentro do mesmo sistema, isto é, o modo como todos erram igualmente.

Um sistema jurídico que tem na coerência e integridade o seu vetor de racionalidade, nem precisaria ter mecanismos formais de vinculação jurisprudencial. Se o Judiciário julga por princípio, o corolário é a manutenção da coerência e, consequentemente, da integridade. Isso significa que, quaisquer que sejam seus pontos de vista sobre a Justiça e o direito a um tratamento igualitário, os juízes também devem aceitar uma restrição independente e superior nas decisões que proferem, que decorre da integridade [7].

O problema do Tema nº 1329 se agrava na medida em que o próprio STJ reconhece que houve vício na forma entabulada pelo artigo 122, do Decreto nº 6.514/2008, até que após 2019 e 2023 fosse reajustado. Ora, o vício não se convalida, se extirpa; e a forma não é mera alegoria, é instrumento. Dizer que cabe ponderar o vício é autorizar escolhas arbitrárias que neguem a garantia fundamental de defesa. Qual angústia sentiria Alexy ao ouvir que a ponderação de princípios deu lugar a interpretações de ponderação de vícios? Mesmo tendo em vista que suas teses vêm sendo mal aplicadas por percepções equivocadas, aqui o equívoco é gritante.

Pois bem, as reformas incorporadas ao Decreto em 2023, não trazem inovações ou novas garantias, apenas reproduzem as já estabelecidas pela Lei nº 9.784/99 e pela Constituição, e que jamais deveriam ter sido inobservadas, seus efeitos são, assim, ex tunc, atingindo todos os atos que não atenderam a essa sistemática.

Ao se recorrer ao artigo 282, § 1º, do CPC, ao artigo 55, da Lei nº 9.784/99, ou mesmo ao artigo 563, do CPP, para justificar a desnecessidade de algum ato ou a supressão da sua forma de realização, ainda que sob o pretexto de utilização do “princípio” pas de nullité sans grief, termina-se por admitir excluir a força normativa da Constituição e os direitos fundamentais nela consignados.

Isso reforça a tese de que as decisões superiores também podem — e devem — ser objeto de críticas, e não meramente acatadas a partir de um discurso de autoridade, exatamente porque, sob a perspectiva hermenêutica, há um comprometimento com a verdade [8]. É necessário atender a operabilidade do comando normativo, a linguagem e aos princípios constitucionais, para que a interpretação não seja mero ato de vontade, mas exercício responsável de construção de sentido do Direito.

Constranger epistemologicamente quer dizer colocar em xeque decisões que se mostram equivocadas. O princípio da não contradição não pode ser violado por artifícios pretensamente neutro-descritivos. Integridade é a exigência de que os juízes construam seus argumentos de forma integrada ao conjunto do Direito, numa perspectiva de ajuste de substância. A integridade traz em si um aspecto mais valorativo/moral, enquanto a coerência seria um modus operandi, a forma de alcançá-la [9].

De algum modo, a integridade refere-se a um freio ao estabelecimento de dois pesos e duas medidas nas decisões judiciais, constituindo-se em uma garantia contra arbitrariedades interpretativas, vale dizer, coloca efetivos freios às atitudes solipsistas-voluntaristas, pois aponta um caminho. A igualdade política exige que coerência e integridade sejam faces de uma mesma moeda. Decisões judiciais voluntaristas devem ser constrangidas, como também devem ser constrangidas decisões meramente subsuntivas, que deixam de lado um conjunto de soluções presentes no ordenamento jurídico [10].

O Direito não é aquilo que o intérprete quer que ele seja, e, portanto, não é aquilo que o tribunal, no seu conjunto ou na individualidade de seus componentes, diz que é. A ideia nuclear da coerência e da integridade é a concretização da igualdade. A melhor interpretação do valor igualdade deverá levar em conta a convivência com um valor igualmente relevante e que deve ser expresso em sua melhor interpretação: a liberdade [11].

A decisão proferida no Tema nº 1329 releva, assim, um problema sistêmico, não uma solução adequada alinhada aos direitos fundamentais que visam regular ou ajustar o exercício do poder. Violações às garantias estruturantes geram nulidade com prejuízo presumido, o que torna desnecessária qualquer providência defensiva. Aliás, se já afastado o prejuízo in re ipsa quando a norma já define a forma, qual medida será utilizada, objetivamente, para aferir o prejuízo? Estará a defesa sujeita novamente ao subjetivismo do julgador.

Conclusão

Rememoro o que o texto de Streck e Berti traduziram: O tangenciamento não é se “houve prejuízo?”, e sim: (i) se a forma tutela garantia? (ii) e se o vício é estrutural/irrecuperável/indisponível? [12]

A forma de notificação para apresentação de alegações finais no processo sancionador ambiental tutela a garantia constitucional do artigo 5º, LV, e o vício é estrutural e perpassa por esvaziamento do conteúdo da lei para dar lugar a regra regulamentar adotada extra-legem, o que subjaz pura nulidade com a necessidade de exclusão dos atos processuais subsequentes.

A decisão em discussão revela que todas as perguntas de critérios dogmáticos para distinguir vício estrutural de irregularidade sanável são positivas, de modo que o prejuízo é presumido e a nulidade gera efeitos ex tunc, sem e necessidade de qualquer compromisso hercúleo da defesa.

_______________________

[1] BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Repetitivo n. 1329. Disponível aqui.

[2] STRECK, L. L; BERTI, M. Nulidade sem prejuízo? Um ‘harmless error’ à brasileira. Disponível aqui.

[3] STRECK, L. L; BERTI, M. Nulidade sem prejuízo? Um ‘harmless error’ à brasileira. Disponível aqui.

[4] Ob. Cit. iii.

[5] DWORKIN, R. Levando os direitos a sério. Tradução e notas de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

[6] STRECK, L. L. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2ª ed. Belo Horizonte: Coleção Lênio Streck de Dicionários Jurídicos; Letramento; Casa do Direito, 2020, pag. 61-66.

[7] Ob. Cit. vi.

[8] Ob. Cit. vi.

[9] Ob. Cit. vi.

[10] Ob. Cit. vi.

[11] STRECK, L. L. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2ª ed. Belo Horizonte: Coleção Lênio Streck de Dicionários Jurídicos; Letramento; Casa do Direito, 2020, pag. 43-46.

[12] Ob. Cit. iii.

Edimax Gomes Gonçalves

é advogado, engenheiro e mestrando em Direito Público pela Unisinos, com bolsa do Programa de Excelência Acadêmica da Capes.

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