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Contas à Vista

Conceito constitucional de escola é essencial ao direito à educação (parte 2)

11 de novembro de 2025, 11h15

Para extrair consequências do quanto proposto na primeira parte deste artigo (a qual foi publicada nesta coluna Contas à Vista em 28 de outubro), faz-se necessário aplicar diuturnamente o conceito constitucional de escola como:

(1) eixo semântico superior que atribui legitimidade e demanda conformidade em relação às normas infraconstitucionais que lhe devem deferência;

(2) filtro hermenêutico do que seja oferta irregular do ensino (artigo 208, §2º da CF/1988) e

(3) parâmetro de determinação de irregularidade das despesas empreendidas com os recursos vinculados à política pública de educação (na forma dos artigos 212 e 212-A, também da CF).

Essas repercussões decorrem da dimensão ético-civilizatória do direito à educação, o qual pressupõe uma leitura substantiva do conceito de escola. Uma compreensão, de fato, estrutural do que seja escola é comprometida com o atingimento do seu fim teleológico: a formação do cidadão constitucional-substancial, entendido como o sujeito ético, político e livre, capaz de converter os princípios constitucionais em prática social e de dar substância à cidadania como experiência de liberdade e responsabilidade. Se o duplo pertencimento descreve como a escola se insere na realidade social e institucional, o cidadão substancial traduz para que ela existe no projeto constitucional.

O cidadão constitucional-substancial é o produto imediato da ação escolar, o resultado humano e ético do processo educativo concebido como prática de emancipação. Diferentemente do cidadão meramente formal – titular abstrato de direitos reconhecidos pelo ordenamento jurídico – ou do cidadão equiparado a um passivo cliente – porquanto receptor de prestações fragmentadas –, o cidadão substancial vive a cidadania como experiência concreta de liberdade, convertendo os princípios constitucionais em atitudes, escolhas e responsabilidades cotidianas.

O elemento político, na construção desse conceito, não se confunde com partidarismo, ideologia ou militância. Seu sentido é ontológico e republicano: o político é a dimensão da vida humana voltada ao conviver, deliberar e construir o comum. É nesse espaço simbólico e institucional que a liberdade individual se transforma em responsabilidade coletiva, fazendo do sujeito não apenas beneficiário, mas coautor da ordem democrática.

O “político” confere, assim, densidade à ideia de substancialidade, que repousa na capacidade de agir com autonomia, compreender racionalmente o mundo e participar ativamente da vida pública, orientando-se por valores de justiça, solidariedade e dignidade humana. A liberdade, nesse contexto, não é mera faculdade individual, mas processo de formação moral e política.

Indissociabilidade entre os conceitos de escola e de cidadão

Nesse trilhar, o cidadão constitucional-substancial é fruto da formação democrática proporcionada pela escola. Eis, pois, a razão da indissociabilidade entre os conceitos de escola e de cidadão constitucional-substancial: a escola é o instrumento civilizatório que converte o cidadão formal em cidadão substancial, promovendo a passagem da cidadania declarada (ou reconhecida no texto constitucional) à cidadania vivida.

O cidadão constitucional-substancial é, portanto, pressuposto e fim da ordem democrática, expressão máxima da dignidade humana e guardião dos valores que sustentam a República. A escola, nesse sentido, revela-se instrumento indissociável da democracia, ponto de convergência entre a norma constitucional e a vida social. A escola é fator constitucional necessário.

Toda interpretação constitucional deve partir da tensão originária que estrutura o próprio texto da Constituição: a coexistência entre uma realidade social marcada por desigualdades profundas e a vontade jurídica de superação que anima o seu projeto normativo. Essa dialética entre fato e norma, entre o ser e o dever-ser, constitui a força criadora da Constituição, sua vocação transformadora. A Constituição não ignora a desigualdade; ela a reconhece para enfrentá-la. Por isso, seus institutos devem ser interpretados como instrumentos de transição, mecanismos voltados a converter a desigualdade histórica em igualdade progressiva.

Entre esses institutos, a escola ocupa posição central. Nenhum outro espaço institucional concentra, de modo tão direto, o potencial de mediar essa passagem entre o mundo real e o ideal constitucional. A escola é o locus em que a promessa de igualdade se transforma em processo educativo e formador, em que a liberdade se aprende pela convivência e a dignidade se traduz em acesso ao saber. Interpretar a escola à luz dessa tensão fundante significa compreendê-la como instituição de transformação social e de realização da justiça constitucional, e não como mero serviço público de instrução.

É nesse contexto hermenêutico que ganham densidade os conceitos formadores do conceito de escola anteriormente apresentados, a saber: o duplo pertencimento dialético e o cidadão constitucional-substancial. O primeiro explicita a natureza relacional da escola, pertencente à comunidade e à rede, simultaneamente reflexo e motor de sua superação. O segundo traduz o resultado humano dessa dinâmica – o sujeito ético, livre e político que dá substância à cidadania constitucional. Ambos fornecem as categorias conceituais capazes de iluminar a função da escola no enfrentamento das desigualdades estruturais, transformando dinamicamente o texto constitucional em prática social. Pela ótica desses conceitos, a escola deixa de ser uma abstração jurídica para tornar-se o principal instrumento de concretização da tensão criadora da Constituição: a passagem da desigualdade histórica à igualdade democrática.

Nessa trilha, veja-se que Constituição consagra a educação como direito de todos no artigo 205; assim como estabelece a igualdade de condições para o acesso e a permanência na escola como primeiro princípio do artigo 206. Esses dispositivos conferem à educação caráter universal e inclusivo, afastando qualquer concepção de escola que selecione, segmente ou condicione o direito de aprender. O ideal constitucional de universalidade é, portanto, o fundamento jurídico da cidadania substancial: todos têm o direito de desenvolver plenamente suas potencialidades humanas e de participar, em condições equitativas, da vida social, política e cultural.

Sob essa ótica, o conceito de cidadão constitucional-substancial não é apenas o resultado do processo educativo, mas também parâmetro de validade das políticas que o regulam. Um modelo escolar que exclui determinados grupos, por exemplo, ao não prever educação especial sob perspectiva inclusiva, ao deixar de ofertar ensino noturno (constitucionalmente obrigatório – CF, artigo 208, inciso VI) ou ao negligenciar a Educação de Jovens e Adultos (EJA) – compromete a própria teleologia constitucional da escola. Ao restringir o acesso ao processo formador que transforma o cidadão formal em cidadão substancial, viola a universalidade do direito e nega, materialmente, a dignidade humana.

Note-se, contudo, e aí a importância e atualidade do que se está a debater, que há, na realidade educacional brasileira contemporânea, modelos que se pretendem ser de escolas que têm por regramento a negativa da oferta do ensino noturno, a Educação de Jovens, Adultos e Idosos (instrumento nuclear do enfrentamento do analfabetismo) e também excluem a educação rural, indígena e quilombola, em afronta ao princípio da universalidade do direito à educação (vide, ex vi, artigo 9º, incisos I, II e IV da LC 1.398/2024, do estado de São Paulo).

Exclusão educacional

A exclusão educacional, ainda que travestida de eficiência organizacional ou de especialização pedagógica, expressa uma contradição constitucional: a escola deixa de ser espaço de emancipação para converter-se em instrumento de reprodução das desigualdades que a Constituição busca superar. Sob a lente do duplo pertencimento dialético, tais modelos rompem o vínculo essencial entre a escola e a comunidade – deixam de refletir a diversidade social e cultural do meio e de atuar como vetor de sua transformação. A escola que não pertence a todos, nem faz todos pertencerem a ela, trai seu fundamento republicano e compromete o próprio ideal democrático de sociedade livre, justa e solidária.

Desse modo, tanto o duplo pertencimento dialético quanto o cidadão constitucional-substancial assumem função normativa: são critérios hermenêuticos para a aferição da constitucionalidade das políticas educacionais e dos próprios modelos de escola. O primeiro assegura a inserção da escola em uma lógica de solidariedade comunitária e sistêmica; o segundo garante que essa inserção tenha por fim a emancipação de todos os sujeitos, sem distinção. Juntos, constituem o núcleo ético-jurídico do conceito de escola constitucionalmente adequada – aquela que inclui, transforma e emancipa, concretizando o dever-ser da Constituição na vida real.

Extraindo leitura consequente que assegure o conceito constitucional de escola

Ao fim e ao cabo, uma leitura consequente do conceito constitucional de escola clama pelo controle de qualquer hipótese cotidiana que implique o seu falseamento ou esvaziamento. O exame de conformidade constitucional – seja pela via concentrada, seja pela via difusa – é ponto de partida, mas, sozinho, não assegura seu alcance. É preciso também responsabilizar os gestores que o afrontam tanto na seara da oferta irregular de ensino, quanto no manejo indevido dos recursos vinculados à educação.

Aliás, o baixo nível de cumprimento das metas e estratégias do Plano Nacional de Educação e a falta de plena regulamentação do custo aluno qualidade (em afronta, respectivamente, ao artigo 214 e ao §7º do artigo 211, ambos da CF) revelam uma rota objetiva de distanciamento (quiçá deliberado amesquinhamento) do que foi constitucionalmente projetado em sua implementação concreta. Indutiva e dedutivamente, há que se tensionar e controlar o processo decisório governamental para que seja, de fato e de direito, aderente ao arranjo constitucional de 1988, em prol do papel emancipatório da escola.

Afinal, em um país em que, mesmo após já transcorridos 37 anos desde o estabelecimento fundante do seu pacto civilizatório, cerca de 1/3 da sua população ainda sofre com analfabetismo funcional, vale resgatar a síntese irretocável de Ulysses Guimarães:

A Constituição mudou […] quando quer mudar o homem cidadão. E é só cidadão quem […] lê e escreve […]. Num país de afrontosos 25 por cento da população [completamente analfabeta por ocasião da promulgação da CF], cabe advertir a cidadania começa com o alfabeto.

[…] Tem significado de diagnóstico a Constituição ter alargado o exercício da democracia. É o clarim da soberania popular […] tocando no umbral da Constituição para ordenar o avanço no campo das necessidades sociais.”

Para refutar o esvaziamento e a fragmentação do que seja o conceito de escola, impõe-se uma mirada mais comprometida com a forte mudança propugnada em 1988 como a essência da Constituição Cidadã. Até porque, como já dito, mais do que apenas serviço público de instrução, a escola é, sobretudo, o grande espaço institucional de transformação social e de realização da justiça constitucional.

Lucas Sachsida Junqueira Carneiro

é promotor de Justiça e coordenador do Núcleo de Defesa da Educação do Ministério Público do Estado de Alagoas, membro da Comissão Permanente de Educação e do Grupo Nacional de Trabalho Interinstitucional Fundef/Fundeb da 1ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal (1ª CCR).

Élida Graziane Pinto

é livre-docente em Direito Financeiro (USP), doutora em Direito Administrativo (UFMG), com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ), procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

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