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FIM DO CICLO DE ATRASO

STF é raro caso de Suprema Corte que resistiu ao populismo autoritário, diz Barroso

15 de outubro de 2025, 10h30

A condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e de aliados por golpe de Estado é um “marco divisor na história republicana brasileira”. Com a decisão, o Supremo Tribunal Federal afirmou-se como um dos raros casos no mundo em que uma corte constitucional resistiu ao populismo autoritário. A análise é do ministro do STF Luís Roberto Barroso, que se aposentará no próximo sábado (18/10).

Spacca

O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal

Para Barroso — que transferiu a Presidência do Supremo ao ministro Edson Fachin em 29 de setembro —, a sentença de Bolsonaro é muito importante devido ao histórico de golpes e contragolpes que ficaram impunes. “Meu sentimento é que isso (condenação) encerra um ciclo de atraso na história brasileira e consolida a institucionalidade que nós conquistamos desde a redemocratização.”

O ministro destaca que, nos países onde há ascensão do “populismo autoritário”, inevitavelmente ocorrem confrontos entre o líder e a Suprema Corte. Isso porque o populismo autoritário supervaloriza o poder das maiorias políticas, e as cortes constitucionais têm a função de interpretar a Carta Magna, limitar abusos e garantir os direitos fundamentais de todos.

“Na maior parte dos países, quando há essa tensão, o populismo autoritário prevalece, e a corte é capturada. Aconteceu na Hungria, aconteceu na Turquia, aconteceu na Polônia. O Brasil é um dos raros casos em que isso não aconteceu”, ressalta Barroso.

O ministro concedeu entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico na última quarta-feira (8/10) — um dia antes de anunciar, na sessão do Plenário, que vai se aposentar antecipadamente. No STF há 12 anos, ele poderia permanecer até 2033, quando completará 75 anos, idade da aposentadoria compulsória.

Questionado sobre o que lhe motivava após deixar a Presidência, Barroso desconversou sobre a permanência no tribunal.

A minha maior motivação na vida pública é pensar o Brasil e tentar contribuir para fazer um país melhor e maior, com menos pobreza e melhor distribuição de renda. São coisas que eu posso fazer a partir do Supremo ou fora do Supremo.”

Os planos do ministro depois de deixar a corte incluem temporadas em universidades fora do Brasil. Ele passará uma temporada no Instituto Max Planck, na Alemanha, e dará um curso em 2026 na Universidade de Sorbonne, na França. Barroso também é professor titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

Na entrevista, o ministro ainda comentou julgamentos e medidas de suas gestões como presidente do STF e do Conselho Nacional de Justiça. Embora não tenha pautado a descriminalização do aborto devido à tensão do Supremo com o Congresso e a sociedade pelos julgamentos da trama golpista, Barroso diz que esse é um dos casos mais urgentes em tramitação.

“Eu continuo pensando que é preciso esclarecer à sociedade que ser contra o aborto, não praticar o aborto e pregar contra o aborto são coisas totalmente diferentes de prender a mulher que passa por esse infortúnio. É um debate que precisamos continuar a fazer, porque a descriminalização se impõe como uma medida de justiça para as mulheres pobres, que não podem utilizar a rede pública de saúde para isso. Porque quem tem recursos pode fazer em qualquer país vizinho onde isso é possível, ou mesmo em clínicas que todo mundo sabe que existem por aí”, declarou. Barroso ainda pode votar na ação antes de deixar o Supremo.

Leia a seguir a entrevista:

ConJur — Como foi presidir o Supremo no período em que a corte foi mais visada e atacada em sua história?
Luís Roberto Barroso — Foi uma fase venturosa da minha vida. Foi um período muito tenso e complexo. Mas tudo se resolveu da melhor maneira possível. Com alguns pequenos acidentes, como esse choque com os EUA. Fora isso, conseguimos atravessar um mar revolto com segurança e chegarmos a um bom porto.

ConJur — Governos de tendência autoritária costumam atacar o Judiciário. O segundo governo de Donald Trump é o mais novo exemplo desse movimento, e isso também vem ocorrendo muito no Brasil, especialmente com o STF. A independência judicial está em risco no mundo?
Luís Roberto Barroso — Talvez essa tenha sido a primeira vez, que eu saiba, que a independência judicial sofreu um ataque não interno, mas externo. No Brasil, ela nunca esteve ameaçada. Se tem algo positivo no Brasil no pós-1988 é a total independência do Poder Judiciário.

ConJur — O que significa, para a democracia brasileira, a condenação de Jair Bolsonaro e aliados pela tentativa de golpe de Estado?
Luís Roberto Barroso — Não vou dizer que foi um julgamento como qualquer outro, pelas implicações políticas evidentes que há no julgamento de um ex-presidente da República. Mas foi um processo que seguiu o devido processo legal e a aplicação da lei penal tal como ela existe, de modo que, simbolicamente, penso que tenha sido um marco divisor na história republicana brasileira. Porque pela primeira vez, em um país que sempre teve um histórico de golpes e de contragolpes, (quem tentou dar um golpe) foi efetivamente punido nos termos da Constituição e das leis. Meu sentimento é que isso encerra um ciclo de atraso na história brasileira e consolida a institucionalidade que nós conquistamos desde a redemocratização.

ConJur — O que o julgamento da trama golpista significa no mundo para o Supremo como corte constitucional — embora seja um exercício de suas competências penais?
Luís Roberto Barroso — Nos países onde floresceu o populismo autoritário, houve confronto quase inevitável entre líderes populistas e as Supremas Cortes. Porque o populismo autoritário supervaloriza o poder das maiorias políticas, e as Supremas Cortes, cortes constitucionais, têm como papel interpretar a Constituição, e a Constituição precisamente coloca limites ao poder das maiorias. Vale dizer: as maiorias têm que respeitar as regras do jogo e os direitos fundamentais de todos. Claro que frequentemente há uma tensão entre governos populistas e Supremas Cortes. Na maior parte dos países, quando há essa tensão, o populismo autoritário prevalece, e a corte é capturada. Aconteceu na Hungria, aconteceu na Turquia, aconteceu na Polônia. O Brasil é um dos raros casos em que isso não aconteceu.

ConJur — O senhor defende, há anos, que, em situações excepcionais, as cortes constitucionais devem ter uma atuação “iluminista” e “empurrar a roda da história”. Algum julgamento ocorrido em sua gestão “empurrou a roda da história”?
Luís Roberto Barroso — Não sei se eu diria que esse julgamento do golpe empurrou a história, mas ele divide a história em antes e depois, claramente. Nós tivemos, na minha presidência, alguns julgamentos que eu considero muito importantes, mas talvez não os categorizasse como julgamentos que, em situações excepcionais e atípicas, empurram a história.

Mas julgamos questões importantes e delicadas, como distinção entre porte e tráfico de drogas; a decisão sobre plataformas digitais; a decisão sobre transporte gratuito em dia das eleições; execução imediata da decisão pós-condenação pelo Júri; correção dos depósitos do FGTS mais favorável aos trabalhadores; decisões de desintrusão de terras indígenas. Conseguimos soluções consensuais em casos como o acidente de Mariana (MG); o caso da linha Amarela, no Rio; o caso das câmeras nas fardas da Polícia Militar em São Paulo; decisões importantes de proteção da Amazônia, de proteção do Pantanal, de reestruturação do Ibama e da Funai. O Supremo, em um ano, julga mais casos emblemáticos que a maioria dos tribunais julga em sua história.

ConJur — Como mencionou, o STF descriminalizou o porte de maconha para uso pessoal. A Lei de Drogas não discrimina os entorpecentes. Sendo assim, o Supremo não deveria ter descriminalizado o porte de todas as drogas para uso pessoal? A corte pode descriminalizar apenas um tipo de drogas – e ainda fixar as quantidades que são consideradas uso pessoal? Não é uma atuação ativista?
Luís Roberto Barroso — Não. O Supremo decidiu um caso concreto que envolvia maconha. Como o caso concreto envolvia apenas maconha, o Supremo firmou uma tese apenas relativa à maconha e deixou para tratar de outras drogas em outro momento. Na vida, não basta a gente estar certo, é preciso saber levar na velocidade possível.

ConJur — O senhor sempre defendeu descriminalização mais ampla das drogas. Como enxerga essa questão atualmente?
Luís Roberto Barroso — A questão de drogas exigiria um debate mais aprofundado e complexo do que é possível fazer numa entrevista breve. Porém, há duas coisas que a política de drogas no Brasil precisa enfrentar. A primeira é o poder do tráfico e o controle que exerce sobre as comunidades pobres do Brasil. A segunda é o hiperencarceramento inútil de jovens primários e de bons antecedentes. Um debate profundo com especialistas, interdisciplinar, sobre eventual descriminalização é desejável. E pode-se pensar em algum projeto-piloto nesse sentido, tudo com muita cautela e muito monitoramento. Eu não tenho certeza que isso vá funcionar, mas posso garantir que a política de drogas que estamos praticando não está funcionando.

ConJur — O senhor afirmou, em mais de uma ocasião, que não era hora de pautar o julgamento da descriminalização do aborto. Em um país conservador e religioso como o Brasil, vai chegar algum momento em que será possível discutir aborto?
Luís Roberto Barroso — Eu penso que sim. É que nós já tínhamos uma quantidade suficiente de situações que, de alguma forma, criavam algum grau de tensão com a sociedade e mesmo com o Congresso. Como, por exemplo, os julgamentos do 8 de janeiro e os julgamentos da tentativa de golpe. A isso se somou alguma tensão com o Congresso na questão do Orçamento. Portanto, já havia um conjunto suficiente de fatores que criava algum grau de turbulência e que não recomendava acrescentar esse elemento, que é igualmente complexo e divisivo da sociedade brasileira.

Eu continuo pensando que é preciso esclarecer à sociedade que ser contra o aborto, não praticar o aborto e pregar contra o aborto são coisas totalmente diferentes de prender a mulher que passa por esse infortúnio. É um debate que precisamos continuar a fazer, porque a descriminalização se impõe como uma medida de justiça para as mulheres pobres, que não podem utilizar a rede pública de saúde para isso. Porque quem tem recursos pode fazer em qualquer país vizinho onde isso é possível ou mesmo em clínicas que todo mundo sabe que existem por aí.

ConJur — A decisão do Supremo na ADPF 635, conhecida como a ADPF das Favelas, foi a primeira per curiam da corte. O que isso significa para o Supremo?
Luís Roberto Barroso — Significa que, mesmo sendo um tribunal plural, com juízes que têm diferentes visões de mundo, nós conseguimos construir alguns consensos básicos, como a vida deve ser. Um conceito famoso de um autor chamado John Rawls, que chama de “consensos sobrepostos”. Às vezes, em ambientes em que há muita divergência, é preciso sobrepor todas as posições e ver o que se consegue produzir de resultado comum. Foi isso que nós fizemos, ninguém ficou totalmente satisfeito nem totalmente frustrado. Nós conseguimos produzir um meio-termo possível. Mas nessa decisão acrescentou-se um componente que eu considero muito importante, que é a determinação de um plano para a reocupação das áreas dominadas pela criminalidade.

ConJur — A decisão do STF na ADPF 635 se encaixa nos parâmetros fixados pela corte para o Poder Judiciário intervir em políticas públicas, seguindo o seu voto no RE 684.612. Isso não viola o princípio da separação dos poderes?
Luís Roberto Barroso — Segurança pública é um tema constitucionalizado no Brasil. Uma característica da Constituição brasileira, em contraste com constituições de outros países, é que ela trouxe para o seu texto matérias que, em muitos países, são puramente políticas. No Brasil, a segurança pública tem uma dimensão constitucional também. Na medida em que ocorria no Rio de Janeiro uma elevadíssima letalidade policial, sobretudo com a morte de inocentes em batidas mal organizadas em comunidade pobres, fez todo sentido o Supremo intervir não para impedir a atuação da polícia, mas para fazer com que ela se desse com planejamento e proporcionalidade.

ConJur — O senhor ressaltou que a ADPF 635 é uma “ação estrutural”. Quais são os limites do STF em ações estruturais?
Luís Roberto Barroso — Nós tivemos algumas ações estruturais relativas à letalidade policial, ao sistema prisional, à proteção ambiental e à desintrusão de terras indígenas. Ao contrário dos processos normais, que terminam em uma sentença, os processos estruturais têm um fluxo diferente. O processo estrutural é dividido em três fases. Na primeira fase, faz-se o diagnóstico de que há um problema, uma violação massiva de direitos humanos ou descumprimento crônico da Constituição. Uma vez feito o diagnóstico, o Judiciário, em vez de produzir uma solução, determina que o Executivo elabore um plano ou uma estratégia para enfrentar o problema que foi diagnosticado. Ainda nessa fase, o Judiciário aprova o plano proposto pelo Executivo. E depois tem a terceira fase, que é o monitoramento do cumprimento desse plano. Então existem algumas situações impostas pela Constituição em que o papel do Judiciário não se limita a produzir uma decisão, mas sim a produzir um resultado final. Esse é o processo estrutural.

ConJur — Como está o acompanhamento do cumprimento das obrigações impostas na ADPF 635 a diversos órgãos públicos?
Luís Roberto Barroso — Todos os órgãos já apresentaram as suas propostas, seus planos. Nesse momento, estão comigo aqui no gabinete para rever e submeter à homologação. E o acompanhamento será feito pelo Conselho Nacional de Justiça.

ConJur — Outro julgamento amplamente debatido na sociedade foi o da responsabilização das plataformas digitais. Setores da sociedade vêm classificando a regulamentação das plataformas de “censura”. Como o senhor avalia essa crítica?
Luís Roberto Barroso — A liberdade de expressão assegura o direito de as pessoas falarem bobagem. Não há nenhum tipo de censura. Pelo contrário, nós estabelecemos um modelo, até o Congresso legislar, extremamente equilibrado, com três regras básicas. A primeira é que, se o conteúdo postado for crime ou ato ilícito, uma simples notificação privada deve levar à remoção. Para tudo o mais, inclusive crime contra a honra, é necessário ordem judicial, como já estava previsto no Marco Civil da Internet. E nós criamos uma terceira categoria, chamada “dever de cuidado”, pela qual a plataforma deve evitar, por intermédio do algoritmo, que alguns conteúdos cheguem ao espaço público. Conteúdos esses explicitados taxativamente na decisão, como abuso sexual infantil, terrorismo, instigação ao suicídio e ataques à democracia, tal como descritos no Código Penal. Ponto. Só pode considerar censura o que nós decidimos quem acha que pornografia infantil é liberdade de expressão.

ConJur — Desde que o senhor entrou no STF, a corte passou por um processo de estar cada vez mais sob os holofotes, e assumindo maiores responsabilidades na definição dos rumos políticos do país. Como imagina que será a atuação do Supremo nos próximos anos?
Luís Roberto Barroso — De fato, o Supremo tem um papel um pouco diferenciado em relação às Supremas Cortes de outros países. Por algumas razões. A primeira por termos uma Constituição abrangente, que cuida de muitos temas que em outros países são deixados para a política, e no Brasil eles são temas jurídicos e judicializados. A segunda razão é que no Brasil é relativamente fácil chegar ao Supremo por meio de diferentes ações diretas. A terceira razão é a grande quantidade de atores públicos e privados que pode propor essas ações. Em quarto lugar, com muita frequência, é a política que procura Supremo. Portanto, o Supremo é provocado a atuar por partidos políticos ou por parlamentares. Em quinto lugar, nós temos uma competência criminal muito vasta, que nenhuma corte constitucional tem e que atrai grande cobertura midiática.

Por fim, nós julgamos na frente da televisão. Os julgamentos são acessíveis a todo o público, que de alguma forma participa, opinando, discordando, concordando. De modo que há um papel diferenciado que a Constituição reservou para o Supremo. Esse papel dá um certo protagonismo ao Supremo e grande exposição pública aos seus ministros. É possível em alguma medida repensar esse tipo de protagonismo. Mas agora apenas gostaria de lembrar que foi com esse modelo que nós conseguimos 37 anos de estabilidade institucional. Antes desse modelo, a história da República brasileira sempre fora a história de golpes e de contragolpes.

ConJur — Que casos que já tramitam no Supremo são mais urgentes?
Luís Roberto Barroso — A questão da interrupção de gestação em algum momento terá que ser apreciada. O monitoramento do cumprimento dos planos do sistema prisional vai fazer muita diferença no impacto sobre a segurança pública. A segurança pública vai continuar a ser um problema, ainda não totalmente bem equacionado pelos poderes políticos majoritários. A questão climática vai continuar no radar. O uso da tecnologia e da inteligência artificial no Judiciário vai se expandir e exigir definições éticas muito claras. Esses são alguns temas que me ocorrem.

ConJur — Quais foram os principais feitos de sua gestão como presidente do CNJ?
Luís Roberto Barroso — O presidente do Supremo desempenha duas funções de tempo integral, ser presidente da corte e ser presidente do Conselho Nacional de Justiça. Embora o Supremo tenha uma visibilidade muito maior, as políticas públicas que verdadeiramente marcam o Sistema de Justiça são feitas no CNJ. No CNJ, eu penso que consegui implementar algumas políticas públicas que mudaram de uma maneira muito transformadora o Poder Judiciário.

A primeira, e uma das mais importantes, foi ter criado Exame Nacional da Magistratura (Enam). Os tribunais continuam a realizar os seus concursos, mas para se inscrever neles é preciso passar em um exame nacional. Qual a consequência disso? Vamos criar uma magistratura de padrão nacional. E acabamos com os rumores de coisas erradas que aconteciam em alguns concursos Brasil afora. A segunda medida muito importante foi implementar uma resolução que pregava paridade de gênero nas promoções por merecimento para o segundo grau de jurisdição. A ministra Rosa Weber aprovou a resolução no último dia do seu mandato, mas eu consegui vencer todas as resistências administrativas e judiciais para implementar essa paridade. Isso significa que se um homem tiver sido promovido para o tribunal, a vaga seguinte necessariamente tem que ser de uma mulher.

Em terceiro lugar, criei um grande programa de ação afirmativa para candidatos negros à magistratura, com três providências. A primeira, no Enam. Tradicionalmente a nota de aprovação no provão era 5, eu elevei para 7 na livre competição, mas mantive 5 para os candidatos negros. Ou seja, não diminuí o nível, eu aumentei o nível de competição. Criei um programa de bolsas, com pagamento de R$ 3 mil para os 124 primeiros colocados do Enam e 750 vagas gratuitas em cursos preparatórios. Com essas práticas, nós já aprovamos no Enam um total de 15 mil candidatos, dos quais 4.500 são negros, quase um terço. Com essas políticas de qualificação, candidatos negros se tornaram muito mais competitivos. De modo que eu penso que a transformação que eu vou produzir vai gerar um Judiciário de mais qualidade, com mais paridade de gênero e mais equidade racial.

ConJur — Como o senhor enfrentou a excessiva judicialização, um dos grandes problemas da Justiça brasileira?
Luís Roberto Barroso — Eu consegui enfrentar a judicialização no Brasil e extinguir 13 milhões de execuções fiscais com providências que adotei no CNJ. Consegui, pela primeira vez na série histórica, diminuir o número de processos pendentes — caiu de 83.800.000 para 80.600.000. Os dois grandes gargalos da Justiça brasileira são execução fiscal e ações previdenciárias. Consegui reduzir as execuções fiscais com duas medidas, principalmente a exigência do prévio protesto da certidão de dívida ativa, e estabeleci um conjunto de regras aplicáveis às ações previdenciárias.

Uma das medidas mais importantes que eu introduzi no âmbito do pacto da linguagem simples foram as ementas padronizadas, com quatro capítulos, que facilita a qualquer pessoa entender o que foi decidido. A ementa, que é o resumo que vem antes da decisão, deve ter primeiro parágrafo explicando o caso em exame, segundo parágrafo dizendo a questão jurídica em discussão, terceiro parágrafo apontando o fundamento da decisão e o quarto parágrafo com a conclusão. Qualquer pessoa agora entende uma decisão. E se o relator não quiser fazer isso, o programa de inteligência artificial o faz. Isso criou uma imensa facilidade na comunicação com a sociedade. A própria imprensa hoje em dia noticia as decisões com muito mais precisão do que fazia anteriormente.

Usando a tecnologia, consegui criar o portal de serviços do Judiciário, uma plataforma única que une todos os tribunais do país e permite que qualquer advogado faça o peticionamento inicial e o peticionamento intercorrente online. Todas as notificações a pessoas jurídicas são feitas por domicílio judicial eletrônico. Nós conseguimos fazer mudanças que passaram abaixo do radar, mas que foram muito transformadoras do Judiciário, tanto na sua composição quanto no seu funcionamento.

ConJur — Como o senhor enxerga a inteligência artificial sendo usada pelo Judiciário nos próximos anos?
Luís Roberto Barroso — A inteligência artificial é uma necessidade, uma inevitabilidade, e nós vamos chegar lá. O juiz não pode abdicar de ele decidir a matéria. Porém, nós vamos ter amplo auxílio da inteligência artificial na fundamentação. Sempre lembrando que o juiz pode até delegar atribuições — como pode delegar a assessores, pode delegar à inteligência artificial. Mas nunca a responsabilidade. Portanto, o juiz continua a ser responsável pela decisão. Mas eu penso que nós vamos chegar a um momento em que a inteligência artificial vai produzir a primeira decisão, e se o juiz quiser decidir de forma diferente, ele é que vai ter o ônus argumentativo de dizer o porquê.

ConJur — O senhor está há 12 anos no STF, foi advogado de sucesso, procurador do estado, um dos constitucionalistas mais importantes do país. O que ainda motiva o senhor? E isso está no STF ou fora dele?
Luís Roberto Barroso — A minha maior motivação na vida pública é pensar o Brasil e tentar contribuir para fazer um país melhor e maior, com menos pobreza e melhor distribuição de renda. São coisas que eu posso fazer a partir do Supremo ou fora do Supremo.

Sérgio Rodas

é editor da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro.

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