O Habeas Corpus nas cortes superiores precisa ser usado de maneira estratégica. A petição deve focar nos fatos e essencialmente responder a uma questão: qual é o constrangimento ilegal sofrido pelo paciente? Após a distribuição, é possível complementar a argumentação em memoriais, de acordo com os entendimentos do ministro sorteado como relator. E, no caso do Superior Tribunal de Justiça, não se deve ignorar a possibilidade do recurso especial (REsp): para temas que não envolvem diretamente a liberdade do réu, ele é mais efetivo do que o HC.

O advogado e pesquisador David Metzker
Esse roteiro é recomendado pelo advogado e pesquisador David Metzker, autor do mais impressionante levantamento sobre a concessão de Habeas Corpus no STJ e no Supremo Tribunal Federal. Em junho, ele alcançou a marca de 50 mil decisões compiladas. Desde janeiro, inclui dados de recursos especiais (REsp) e agravos em recurso especial (AREsp, o recurso contra a decisão de inadmissão do recurso pelo tribunal de apelação) do STJ. As estatísticas mostram quem concede a ordem, em qual situação e por qual motivo.
Foi por meio desse trabalho que a revista eletrônica Consultor Jurídico já mostrou, por exemplo, que a quantidade de HCs indica uma baixa adesão aos precedentes pelas instâncias ordinárias; que ele é mais eficiente do que o recurso em Habeas Corpus (RHC); e que pedidos de dosimetria da pena, revogação da prisão preventiva e aplicação do redutor do tráfico privilegiado são os que mais sensibilizam os ministros do STJ, em meio à explosão de processos na 3ª Seção.
A pesquisa foi iniciada pelas decisões do STF, em 2019, e ampliada em 2020, durante a crise sanitária da Covid-19, época em que a Justiça do Espírito Santo, estado onde atua o advogado, ainda trabalhava com processos criminais físicos. Sem ter o que fazer durante o fechamento do Judiciário, ele buscou entender quais motivos levavam à concessão de Habeas Corpus colegiados até perceber que, no STJ, a grande maioria — 98% — das concessões é feita de maneira monocrática. A partir daí, começou a elencá-las por diferentes parâmetros e apresentá-las em gráficos.
Todas as decisões são lidas manualmente por uma equipe de colaboradores e checadas pelo próprio advogado. Aos poucos, Metzker percebeu que descobria coisas que ninguém sabia — magistrados e advogados não tinham comprovação sobre as tendências que mais levam a decisões favoráveis pela via do HC. O trabalho hoje é tema de um mestrado no Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), que resultará em uma dissertação sobre o padrão decisório das concessões em Habeas Corpus e recursos em HC no STJ e no STF.
“Percebi que há um padrão de decisão. Há probabilidades para cada tema. Existe ministro que concede mais em determinado tema, existem temas que são mais concedidos que outros e existe um padrão de decisão. Tanto é que 98% das concessões são monocráticas. E são monocráticas porque existe exatamente esse padrão”, explica. Esses padrões são a base para a fórmula do HC mais eficiente e para as demais percepções sobre o funcionamento do sistema de Justiça brasileiro.
Leia a seguir a entrevista:
ConJur — Tendo em vista os dados da sua pesquisa, qual é a melhor forma de preparar um Habeas Corpus?
David Metzker — O Habeas Corpus realmente precisa ser usado de maneira estratégica e os dados da minha pesquisa contribuem para isso. O primeiro ponto é dar atenção aos fatos. Como eu não sei com quem vai cair esse Habeas Corpus, o foco tem de ser nos fatos, não nas teses. A partir do momento em que foi distribuído para o ministro, aí eu vou preparar um memorial bem objetivo, focando no pensamento daquele ministro: o que ele observa, o que ele fala, quais expressões ele utiliza. Ou seja, estudar o ministro para, após ser distribuído, preparar talvez um adendo com esse foco. Os ministros já sabem as teses e o direito. Eles não sabem os fatos. Às vezes a pessoa fica falando de artigo e doutrinas, mas esquece os fatos. Qual é o constrangimento legal? Distribuiu, aí se faz um memorial focando no pensamento daquele ministro, porque a probabilidade de a análise ser monocrática é altíssima.
ConJur — É comum mandar memorial antes da decisão monocrática?
David Metzker — Sim. O memorial hoje é a arma mais poderosa para trabalhar no STJ. Como as decisões são em maioria monocráticas, é melhor fazer a inicial focando nos fatos e depois um memorial focando em alguns pontos que eu sei que o relator observa.
ConJur — Sua pesquisa mostra um dado talvez inesperado, que é a efetividade do recurso especial no STJ em temas criminais. Como escolher entre o REsp e o HC?
David Metzker — Os dados mostram que há determinados temas que os ministros analisam mais em REsp, como dosimetria. Eu descobri, por exemplo, que o ministro Ribeiro Dantas gosta de tratar a desclassificação de tráfico para consumo, do artigo 28 da Lei de Drogas, em REsp. Então é um tema em que é melhor recorrer do que entrar com Habeas Corpus substitutivo. Em resumo: quando é desclassificação, dosimetria ou algum tema que atinge remotamente a liberdade da pessoa, eu prefiro tratar com REsp. E eu deixo para o HC aquilo que vai atingir diretamente a liberdade ou que, se for concedido, vai repercutir na liberdade.
ConJur — Qual percepção você tinha dos Habeas Corpus nas cortes superiores e o que mudou com a sua pesquisa?
David Metzker — Eu achava que o STJ concedia muito pouco ou quase nada em Habeas Corpus. Assim como, até o ano passado, eu achava isto do REsp: que não tinha provimento nenhum. A pesquisa me trouxe esse olhar. De REsp eu achava que não tinha nem 3%, mas, dos REsps admitidos, o provimento é de 20%. É bastante considerável. O AREsp tem pouco provimento por dois motivos. Primeiro porque a pessoa não sabe fazer AREsp. Na petição do agravo, ela trata sobre os mesmos temas do recurso em si e não ataca a decisão que não o admitiu. Se o advogado fizer o básico, o agravo será analisado. E segundo porque, quando o AREsp é analisado pela presidência e ela não conhece ou nega provimento, o advogado não recorre com agravo regimental. Por esses dois motivos, há uma infinidade de AREsps com pouco provimento. Se o advogado soubesse fazer o agravo ou interpusesse o agravo regimental para jogar para a turma criminal, aumentaria o número de provimentos. Os ministros avaliam muito o conteúdo: “Esse tema é um tema que normalmente eu concedo? Então eu vou conceder. Pode ser em HC, em RHC, em REsp ou AREsp, eu vou conceder”. Por quê? Porque ele vai verificar se esse é o entendimento do STJ.
ConJur — Existe um debate sobre uma crise do uso do Habeas Corpus. A forma de concessão reforça essa ideia de que há uma amplitude do seu uso?
David Metzker — Na minha opinião, não há uma amplitude do uso do Habeas Corpus porque ele tem de combater uma ilegalidade que afeta diretamente ou indiretamente a liberdade. E quando se trata de processo penal, a maioria dos temas vai tratar disso. Ele vai ter uma amplitude indevida se começar a tratar de temas que não atingem nem indiretamente a liberdade. Por exemplo: pena de multa. O que faz surgir muito Habeas Corpus é a demora processual em razão da segregação da liberdade da pessoa. Se ela está presa, não pode aguardar 200 dias ou quase dois anos para ter seu recurso especial analisado. E a inobservância dos precedentes pelo tribunal de origem. Se o tribunal de origem observa o precedente do STJ, não há por que buscar o Habeas Corpus.
ConJur — A 3ª Seção do STJ é hoje muito mais consciente do uso do recurso especial para firmar teses vinculantes. Houve um tempo não muito distante em que as principais teses jurídicas eram tratadas e estabelecidas em Habeas Corpus. Isso valoriza o HC, em sua opinião?
David Metzker — Os temas repetitivos antigamente eram aqueles que o STJ negava muito. Na minha opinião, teses ou temas que o STJ normalmente nega, os tribunais de origem vão seguir de imediato. Não precisa ser vinculante. Cito o exemplo do HC 126.292, da execução imediata da pena após condenação em segundo grau (julgado pelo STF em 2016). Dias depois, o Brasil inteiro estava seguindo aquele entendimento. Se é um tema que não é favorável ao réu, ele vai ser seguido imediatamente pelos tribunais de origem e juízes de primeira instância, sem precisar ser vinculante. Os repetitivos têm de estar voltados para aqueles temas que o STJ concede ou dá provimento, porque são os que os tribunais de origem não aplicam.
E é necessário, na minha opinião, aumentar o número de repetitivos. O Habeas Corpus não é vinculante, mas é muito importante para iniciar o debate do tema na corte. Dá para observar: se estão concedendo tantos HCs sobre esse tema, melhor transformar em repetitivo. E eu acho que, até a minha pesquisa, eles não tinham muita noção do que era concedido em Habeas Corpus. Talvez a minha pesquisa tenha mostrado exatamente isso. E o STJ precisa, sim, criar um mecanismo, como uma reclamação que existe no STF, para ser instado a se manifestar sobre o não cumprimento de um repetitivo.
ConJur — Essa é uma discussão vigente porque, no fim das contas, o STJ não controla a aplicação das teses vinculantes que ele fixa. Você acredita que isso seria importante na seara criminal?
David Metzker — Se alguém descumpre o repetitivo, eu tenho de esperar a cadeia recursal toda para me valer dele. De que vai adiantar? Aí passam-se dois, três anos para uma decisão vinculante ser aplicada. E então, se o juiz de primeiro grau não aplica o entendimento vinculante do STJ e o tribunal de origem confirma a decisão, ele vai continuar não aplicando. Principalmente em estados pequenos, como é o Espírito Santo. O juiz está vinculado, ele está ali todo dia com o desembargador. Então isso precisa ser trabalhado melhor. Pode-se pensar talvez em uma reclamação a partir da segunda instância — não como acontece no STF, em que se pode pegar uma decisão de primeira instância e já entrar com uma reclamação. Pode-se pensar em uma reclamação que vai ter uma tramitação mais rápida do que o REsp contra temas vinculantes que não foram aplicados pelo tribunal de origem.
ConJur — Como você analisa o uso concomitante do recurso especial e do Habeas Corpus?
David Metzker — O entendimento hoje é que o Habeas Corpus concomitante ao recurso tem de tratar de tema que afete diretamente a liberdade do paciente. Eu concordo com o STF, que vem decidindo que Habeas Corpus concomitante a recurso especial pode, independentemente do tema, ser tratado, porque isso não é requisito de admissibilidade. Na minha opinião, o STJ também tem de observar o entendimento do STF. Se o STF tem decidido diariamente que é possível Habeas Corpus concomitante, o STJ tem de aceitar. Agora há uma discussão quanto a Habeas Corpus substitutivo do recurso, que o STF não aceita e nem o STJ. Mas se você trouxer um tema que é normalmente concedido, os ministros vão avaliar.
ConJur — E o recurso em Habeas Corpus (RHC), por que ele não cai no gosto dos criminalistas?
David Metzker — O RHC representa 10% de todas as concessões no STJ. Tem muito mais Habeas Corpus, então é natural que a maioria das concessões ocorra em HC. Mas, analisando proporcionalmente, em RHC você tem 9% de taxa de concessão e, em HC, em torno de 15%. O RHC não é tão usado principalmente por causa dessa probabilidade. E ele demora muito. Se estamos lidando com a liberdade de alguém diretamente, eu não posso aguardar as contrarrazões do Ministério Público local, o encaminhamento para a câmara criminal ou para a vice-presidência, para depois encaminhar para o STJ. Isso vai demorar de um a dois meses, ou um pouco mais, a depender da quantidade de processos do tribunal de origem. Se a pessoa não está presa e é um tema que não afeta diretamente a liberdade, alguns usam o RHC, como em casos de nulidade em cadeia de custódia ou de interceptação telefônica. Mas quando se está lidando com a liberdade, não há como aguardar essa tramitação burocrática e, na minha opinião, desnecessária.
ConJur — Como as sessões virtuais de julgamento afetam a concessão de Habeas Corpus?
David Metzker — Eu penso que, se a concessão é monocrática, ela não deixa de ser virtual. É o ministro analisando o caso sem estar presencialmente com o advogado. Isto que vou falar é oposto a tudo o que os advogados pregam, mas não estou vendo tanta diferença para o virtual, se a maioria das concessões é monocrática. Essa resistência vai ser quebrada quando os ministros começarem a conceder mais no virtual. Hoje as pessoas acreditam que há muitas concessões no colegiado. E não há. São 2% a 3% das concessões. E as concessões no colegiado já estão chegando a ficar iguais no virtual e no presencial. Cito como exemplo o ministro Sebastião Reis Júnior (do STJ): 70% das suas concessões no colegiado são no virtual. Hoje, se ele manda para o virtual, eu já não tenho tanto medo. Não estou dizendo que o virtual é o melhor dos mundos, não. Eu ainda prefiro o presencial. Mas eu também sei que, com base na minha pesquisa, a quantidade de processos no STJ é enorme, às vezes desumana. Então o virtual veio para poder desafogar isso. E acho pouco provável que se retroceda e voltemos lá para o tempo anterior. Não dá mais.
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