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DEMONIZAÇÃO DA POLÍTICA

Não houve autocrítica do MP por abusos da ‘lava jato’, diz cientista político

21 de julho de 2025, 08h53

Ao contrário do que foi imaginado pela Assembleia Constituinte, o Ministério Público, dentro do seu escopo de atuação, priorizou a investigação criminal e o combate à corrupção. E não houve uma autocrítica dos integrantes do órgão sobre os abusos da “lava jato”, segundo Fábio Kerche, pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa e professor do programa de pós-graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).

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O cientista político Fábio Kerche

Na avaliação de Kerche, os membros do MP têm uma visão estereotipada da política, que eles enxergam como “uma coisa corrupta, algo negativo”. E eles entendem que a forma de combater os desvios é pela atuação da instituição, por meio da via judicial.

Kerche coordenou, com os professores Ludmila Ribeiro (UFMG) e Oswaldo E. do Amaral (Unicamp), a pesquisa “Quem são os(as) membros(as) do Ministério Público?”, conduzida pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pela Unirio, com a colaboração da Corregedoria Nacional do Ministério Público.

Entre 15 de agosto e 6 de outubro de 2024, os pesquisadores enviaram um questionário ao e-mail institucional de todos os membros do Ministério Público da União e dos estados devidamente registrados no Conselho Nacional do Ministério Público.

Foram 2.054 questionários respondidos em um universo de 12.859 integrantes do MP, ou seja, cerca de 16% do total de promotores e procuradores.

As perguntas visavam traçar o perfil dos integrantes do MP. Além disso, o estudo buscava entender como promotores e procuradores se posicionam sobre temas como cotas raciais, descriminalização das drogas e do aborto, pena de morte, privatizações e corrupção.

A pesquisa também tinha por objetivo entender como os profissionais avaliam a atuação do MP a que pertencem em diversas áreas, como controle externo da atividade policial, defesa do patrimônio público, proteção do meio ambiente e investigação e promoção de ações criminais.

Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, Kerche explicou quem são os integrantes do MP, como eles enxergam a sua atuação e que áreas priorizam.

Leia a seguir a entrevista:

ConJur — Quem é o integrante típico do Ministério Público?
Fábio Kerche — O integrante típico do Ministério Público é um homem branco, com idade de 41 a 60 anos e que ingressou no órgão depois da Constituição de 1988. Ele é heterossexual, casado ou com união estável e vindo de uma família com alta escolaridade. O integrante típico do Ministério Público difere bastante do brasileiro típico.

ConJur — Como a diferença entre o integrante típico do Ministério Público e o brasileiro típico impacta a atuação do órgão?
Fábio Kerche — Essa é uma questão que se pode discutir muito. Tem uma linha de pesquisa na Ciência Política e na Sociologia que discute a representatividade das burocracias. No movimento negro, muita gente defende a ocupação de cargos públicos por pessoas negras. Há uma ideia de que o burocrata representa e é um igual a parcelas da sociedade, sendo capaz de ser uma voz desses grupos.

O integrante típico do Ministério Público difere muito disso, do ponto de vista da representatividade. Ele é muito diferente do brasileiro típico. Então há uma perda. Talvez isso fosse um pouco esperado. Como o concurso é muito difícil, quem ingressa é quem teve condições escolares melhores, às vezes até a possibilidade de parar de trabalhar para só estudar. Dá para dizer que são os mais ricos que entram no MP. Hoje há muito mais acesso de pobres, negros, minorias no serviço público, mas ainda tem uma defasagem, tem um longo caminho a percorrer. A pesquisa mostra que, no Ministério Público, que o caminho é bem longo.

ConJur — O que mais te surpreendeu na pesquisa?
Fábio Kerche — Me surpreendeu o seguinte: quando se analisam os valores, eu diria que, na média, os integrantes do Ministério Público são bastante progressistas. Nós vamos inclusive começar uma segunda fase da pesquisa, que é justamente para comparar o que pensa a sociedade e o que pensam os integrantes do MP. Mas eu diria intuitivamente (minha primeira hipótese) que eles são mais progressistas do que a média dos brasileiros, em temas como casamento homoafetivo, por exemplo.

Agora, do ponto de vista de como eles veem a política — como é o Congresso Nacional, a questão da corrupção, a questão do papel do STF com a política —, aí eles não diferem muito de um certo senso comum. Isso são mais hipóteses do que resultados, porque ainda vamos fazer essa segunda etapa da pesquisa.

ConJur — O senhor afirmou à ConJur que os dados da pesquisa revelam que há um espírito de corpo bem forte no Ministério Público. Como isso impacta a instituição?
Fábio Kerche — O terceiro bloco de perguntas da pesquisa trata de uma avaliação dos integrantes sobre o próprio MP. As respostas são extremamente positivas. Eles se veem com uma atuação, na média, acima da crítica. Eles são muito pouco críticos com a atuação deles próprios e dos colegas. Poucos problematizam a atuação do MP. E, como qualquer instituição, o MP têm falhas. Talvez “espírito de corpo” faça com que eles vejam e identifiquem menos falhas do que realmente existem.

ConJur — Isso também impacta a atuação da Corregedoria Nacional ou do Conselho Nacional do Ministério Público?
Fábio Kerche — O trabalho foi feito com apoio da Corregedoria, então eles ficaram sensibilizados em entender que, para poder desempenhar bem a função de corregedoria, seria importante conhecer o funcionamento do Ministério Público.

Eu estudo o MP desde os anos 1990. Eu sempre disse que a Corregedoria é um avanço, é importante, mas ainda é insuficiente. O Ministério Público ainda é um órgão muito pouco accountable; eles prestam muito pouco contas da sua atuação. E a sociedade tem muito poucos instrumentos para punir ou premiar os promotores por sua atuação. O reforço da Corregedoria Nacional, via Conselho Nacional do Ministério Público, é um avanço importante, é preciso avançar mais.

ConJur — Qual é o impacto de se ter familiares da área jurídica para ingressar no Ministério Público?
Fábio Kerche — Há um peso, sim. Existem muitas famílias com tradição jurídica. Diversos integrantes do MP, antes de ingressarem no órgão, tiveram outros trabalhos na área jurídica, principalmente como advogados. Então há uma certa reprodução, uma questão familiar que reforça a entrada desses integrantes do Ministério Público. Não é algo ilegal, longe disso. O que estamos querendo falar é que há essa espécie de tradição que às vezes se reproduz em outras carreiras, como a de médicos.

ConJur — Mesmo com diversos processos anulados por irregularidades ou abusos, como os da “lava jato”, a atuação do Ministério Público em investigações criminais e ações penais é considerada positiva por mais de dois terços dos integrantes do MP. O que isso significa? Também é a questão de falta de autocrítica?
Fábio Kerche — Nós tivemos duas outras grandes pesquisas sobre o MP no Brasil. Uma da década de 1990, coordenada pela professora Maria Tereza Sadek; outra das professoras Julita Lemgruber, Ludmila Ribeiro, Leonarda Musumeci e Thais Duarte, por volta de 2015; e agora essa. Nas três pesquisas, as prioridades dos integrantes são as mesmas. Quando o Ministério Público foi pensado e ganhou autonomia em 1988, havia dois aspectos desse ponto da atuação em investigações e ações penais.

Primeiro que a Assembleia Constituinte não desejava que os integrantes do Ministério Público conduzissem inquéritos penais. Claramente a intenção era que a polícia fizesse isso, e o MP desse continuidade ao processo ao receber o inquérito. Isso depois foi revisto por decisão do STF, que legislou na decisão, porque não era a intenção da Assembleia Constituinte.

O outro ponto é que a Assembleia Constituinte quis um Ministério Público autônomo e muito poderoso porque ele seria um fiscal forte da lei. Teria promotor no interior pegando no pé do prefeito, cuidando da escola, da saúde, do patrimônio histórico. Corrupção foi um tema que quase não apareceu nos debates da Assembleia Constituinte. Era um tema secundário.

Mas, quando perguntado, o Ministério Público sempre priorizou a investigação e a corrupção, dois pontos que não eram prioridade dos constituintes. Como fenômeno político, é um caso de mudança institucional. O Ministério Público foi reforçado, ganhou autonomia por uma razão, mas com o tempo conseguiu transformar sua atuação para algo diferente. Essa agenda, que várias pesquisas perceberam, conseguiu ser colocada em prática. O Ministério Público (pelo menos na sua face mais visível) ficou muito concentrado no combate à corrupção, nessa questão da investigação, do criminal para além da ação penal.

Agora, como pesquisador, eu imaginava que isso poderia ter diminuído, principalmente depois da “lava jato”. Isso não se confirmou. A questão da corrupção ainda continua prioritária. É possível fazer uma ligação com a questão dos valores, porque os integrantes do Ministério Público, quando perguntados sobre questões de política e corrupção, têm uma certa visão mais senso comum, que vê a política como uma coisa corrupta, algo negativo. Quando perguntados “o que vocês querem, quais são suas prioridades?”, eles apontam que é combater a corrupção com base nessa visão que têm da política. Embora eu pense que isso não deveria ser a prioridade do Ministério Público, que o órgão não foi pensado para isso, eu diria que eles são coerentes. Eles veem a política de um jeito e acham que, para resolver isso, tem que ser pela via da atuação do MP, pela via judicial.

ConJur — Houve uma autocrítica dos membros do Ministério Público com relação aos abusos da “lava jato”?
Fábio Kerche — Eu não sei se a pesquisa mostra isso. Não temos uma pergunta específica sobre isso. Mas olhando alguns dados, é possível identificar que não houve uma autocrítica. A visão sobre a política continua muito negativa. Há um questionamento deles em relação à atuação do STF. Eles acham que o STF tem que ser estritamente técnico. E o combate à corrupção continua sendo uma das prioridades. O que vamos observar na segunda fase é se tem alguma mudança geracional. Se a nova geração entende que há outras prioridades além da corrupção, se esses novos integrantes têm uma visão menos negativa da política.

ConJur — O estudo também aponta que a atuação no combate à criminalidade é um dos principais fatores apontados pela escolha pela carreira do Ministério Público. Esse desejo pode gerar uma atuação punitivista e pouco crítica?
Fábio Kerche — Esse tipo de pergunta às vezes pode não refletir exatamente o que mobilizou o integrante do Ministério Público. Ela deve ser lida em conjunto com outras questões. Na questão da maioridade penal, os promotores se mostraram bastante progressistas. Pode-se aí especular uma postura menos punitivista e mais associada a uma visão mais legalista e conservadora do Direito. Mesmo aqueles contrários ao aborto, quando se pergunta se uma mulher que comete o aborto deveria ser presa, a maioria é contra. A pergunta sobre a motivação não é suficiente para indicar se eles são punitivistas ou não — é preciso olhar um pouco mais para o conjunto. E olhando um pouco mais para o conjunto, a maioria dos integrantes do MP parece ter um perfil progressista, contra punitivismo e encarceramento a qualquer preço.

ConJur — A atuação penal ainda é vista como a principal do Ministério Público pelos seus integrantes ou é algo que está sendo superado pela atuação em defesa dos direitos coletivos?
Fábio Kerche — Na atuação penal, o Ministério Público não tem substituto. É um monopólio: se o Ministério Público deixar de fazer, não tem ninguém para fazer no lugar dele. Forçosamente, o MP tem que se ocupar nisso. O que a gente pode discutir é se os promotores e procuradores dedicam o mesmo tempo para crimes dos mais pobres ou para os dos mais ricos, que têm mais visibilidade. Mas essa é outra discussão.

Em relação aos outros temas, têm atores que poderiam desempenhar esse papel. Até a ação civil pública, hoje a Defensoria Pública a propõe. A Defensoria parece o Ministério Público dos anos 1990. Eles estão preocupados com a ação civil pública, com os direitos, justamente porque o Ministério Público migrou muito para a questão da corrupção. A questão penal ainda é uma prioridade deles. Isso foi reforçado pela regularização do papel de investigação que o Supremo conferiu em 2015 para o MP, e é uma atribuição da qual eles não podem fugir.

Claro, quando um promotor que acumula várias funções e diz que a prioridade dele é o combate à corrupção ou outra coisa, ele pode na sua discricionariedade, na sua priorização do seu dia a dia, dedicar mais energia e mais entusiasmo a um tema que não seja o criminal. Agora, o criminal tem que ser cumprido. Todo Estado tem um órgão encarregado da ação penal — no Brasil é o Ministério Público, eles não têm como fugir dessa responsabilidade.

ConJur — Há uma divisão considerável entre integrantes do MP quanto à posição em relação à presunção de legítima defesa do policial militar em casos de letalidade. Pouquíssimos policiais são responsabilizados por mortes em serviço. Isso impacta a atuação do MP no controle externo da atividade policial?
Fábio Kerche — Impacta. Eu orientei uma tese de doutorado na Universidade Federal Fluminense recentemente que mostrava que, na maior parte das ações penais ajuizadas pelo MP, a única testemunha era o próprio policial militar. Ou seja, como se vai fiscalizar alguém de quem o MP depende para o sucesso da sua ação? Tem um problema aí. Essa é umas das tarefas que o Ministério Público cumpre muito mal. Eles não fiscalizam de maneira efetiva, não exercem essa atribuição constitucional do controle externo da atividade policial.

E quando perguntamos para eles sobre a presunção de legítima defesa para policiais, embora a maioria seja contrária, o número de posições favoráveis é expressivo. Afinal, 55,6% são contrários, mas quase 30% são favoráveis. Trinta por cento dos integrantes do MP acham que é razoável a presunção de legítima defesa para policiais em caso de letalidade. Essa é uma questão que o MP e a sociedade têm que discutir. A expectativa de que o Ministério Público fosse ser um órgão de controle da atividade policial não foi plenamente atingida, mesmo depois de quase 37 anos da nossa Constituição.

ConJur — Os membros do Ministério Público defendem que o Supremo Tribunal Federal tenha uma atuação estritamente técnica. A atuação do MP é estritamente técnica?
Fábio Kerche — A atuação do MP não é estritamente técnica. E eu não acredito em uma distinção tão rigorosa de técnica e política. Cada integrante do MP é muito discricionário, tem muita autonomia em relação à instituição, ao controle da instituição e ao controle da sociedade. Isso dá muita margem quando se fala em discricionariedade. Técnica associa um pouco até a uma resposta inequívoca, e não há resposta inequívoca.

Assim como achar que o STF pode ter uma atuação extremamente técnica é uma certa ingenuidade, porque as Supremas Cortes são cortes políticas. Ou seja, têm questões políticas, decidem estrategicamente, têm que levar em consideração os outros poderes, a opinião pública. Então essa distinção entre o jurídico, o técnico e o político é um pouco inocente. É inocente em relação ao Supremo e inocente em relação ao próprio MP. O Ministério Público também tem uma atuação política — não político-partidária. O Supremo não tem uma atuação político-partidária, mas tem uma atuação política. Isso foi especialmente evidente nos últimos anos no Brasil. Assim como o MP também foi muito evidente nos últimos anos, embora vários pesquisadores — nos quais eu me incluo — já estivessem alertando para essa atuação política sem controle desde os anos 1990.

Sérgio Rodas

é editor da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro.

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