Tratando sobre o regime legal de comunhão parcial de bens, o legislador foi claríssimo quando estabeleceu quais bens entrariam na comunhão, mencionando, expressamente, no artigo 1.660 do Código Civil, “os frutos dos bens comuns, ou dos particulares de cada cônjuge, percebidos na constância do casamento, ou pendentes ao tempo de cessar a comunhão”.

Portanto, no regime da comunhão parcial, os frutos dos bens particulares, que são os bens fora da comunhão, a exemplo daqueles havidos por sucessão ou doação, se submeteriam à partilha, quando recebidos na constância do vínculo conjugal e existentes na data de sua dissolução, desde que não estejam clausulados com a cláusula de incomunicabilidade que, por sua vez, tem o condão de excepcionar a regra geral do inciso V, do artigo 1.660.
Ou seja, pode-se afastar a comunicabilidade dos frutos (de primeira geração) dos bens particulares, desde que haja disposição expressa nesse sentido [1]. Tal previsão, por sua natureza excepcional, deve ser interpretada restritivamente, aplicando-se tanto às disposições testamentárias quanto, por analogia, aos atos inter vivos.
O problema sobre o qual me proponho a refletir, contudo, vai além: se um bem é doado com cláusula de incomunicabilidade extensível a seus frutos, qual o destino dos rendimentos originados do reinvestimento desses frutos? Também estariam abrangidos pela cláusula restritiva?
A jurisprudência aponta para uma resposta negativa. A incomunicabilidade não cria uma blindagem patrimonial perpétua; sua eficácia se exaure no primeiro grau de rendimentos. Os chamados “frutos dos frutos” são considerados patrimônio novo, produzido na constância da união a partir de bens particulares, e, portanto, comunicável. Esse entendimento foi consolidado pela 7ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, no julgamento do Agravo de Instrumento nº 2195388-40.2019.8.26.0000 (Rel. Des. Rômolo Russo, j. 12/06/2020), em que ficou assentado:
Incomunicabilidade restrita às quotas sociais doadas e aos lucros e rendimentos por ela distribuídos. Frutos civis posteriormente originados dos lucros auferidos pelo agravante que estão sujeitos à regra do art. 1.660, V, do Código Civil (comunicabilidade dos frutos dos bens particulares percebidos na vigência do regime de bens). Incomunicabilidade que não se estende indefinidamente, estando limitada aos rendimentos que provenham diretamente das quotas sociais doadas. Aplicação financeira dos lucros e dividendos recebidos que produz frutos comunicáveis.
O voto condutor reforça a tese de inaplicabilidade da incomunicabilidade clausular aos eventuais rendimentos dos frutos incomunicáveis:
[…] a participação societária doada e os frutos dela percebidos diretamente são incomunicáveis por força da cláusula de incomunicabilidade com a qual foram gravados; no entanto, os eventuais rendimentos que tais frutos possam produzir sujeitam-se ao alcance do art. 1.660, V, do Código Civil. Nessa quadra, os rendimentos dos frutos incomunicáveis percebidos na constância da união estável são partilháveis.
Consolida-se, assim, a diferenciação entre: (i) frutos de primeira geração (lucros, dividendos ou rendimentos diretamente produzidos pelo bem gravado) — incomunicáveis, se assim expressamente previsto; e (ii) frutos de segunda geração (v.g., rendimentos das aplicações financeiras realizadas com os lucros ou rendimentos originalmente clausulados com a incomunicabilidade), os quais serão comunicáveis, por força da regra geral do artigo 1.660, V, do Código Civil.
As regras de incomunicabilidade são exceções ao princípio da comunhão de esforços (presumido no regime parcial). Como exceções, devem ser interpretadas de forma restritiva. Estender a incomunicabilidade aos “frutos dos frutos” seria criar uma exceção à exceção, o que não encontra amparo legal e contraria a própria lógica do regime de bens.
Os frutos de um bem particular, ainda que gravados com cláusula de incomunicabilidade, ao serem percebidos e reinvestidos, podem gerar novos frutos — os chamados “frutos dos frutos” — que se tornam comunicáveis. Isso porque, a incomunicabilidade protege apenas o direito ao recebimento do primeiro fruto; uma vez destacado do bem originário e reinvestido, seus rendimentos subsequentes (como os juros de um CDB adquirido com lucros de quotas sociais gravadas) passam a ser considerados novos bens (frutos de bens particulares), vinculados à regra geral.
Admitir a incomunicabilidade perpétua de todos os frutos, de segunda, terceira gerações, ad aeternum, significaria prestigiar o enriquecimento sem causa. Isso porque os frutos reinvestidos pressupõem gestão, tempo e esforço, ainda que indiretos, do casal. Não reconhecer a comunicabilidade dos “frutos dos frutos” equivaleria a permitir que apenas um cônjuge se locupletasse dos frutos multiplicados por esforços comuns presumidos, em violação ao princípio da solidariedade familiar. O direito das famílias não pode chancelar o enriquecimento de um em detrimento do outro, sob pena de esvaziar a razão de ser do regime de comunhão parcial.
Em conclusão, a cláusula de incomunicabilidade, quando estendida aos frutos de forma genérica, limita-se aos frutos de primeira geração. Uma vez percebidos, destacados do bem principal e reinvestidos em novas fontes de riqueza, os rendimentos subsequentes — os chamados “frutos dos frutos” — adquirem a natureza de patrimônio novo, submetido à regra da comunicabilidade dos frutos de bens particulares, nos termos do artigo 1.660, I e V, do Código Civil.
Trata-se de interpretação que preserva a função da incomunicabilidade como exceção restrita e impede que se converta em mecanismo de blindagem patrimonial absoluta, incompatível com a ordem pública e com a lógica do regime da comunhão parcial de bens.
Por fim, a indagação central da nossa reflexão: seria juridicamente possível estipular cláusula que vinculasse não apenas os frutos de primeira geração, mas também todos os frutos sucessivos — de segunda, terceira ou ulterior geração — ad aeternum? A resposta deve ser negativa.
A incomunicabilidade pode alcançar os frutos imediatos e seus sub-rogados, mas não pode se prolongar indefinidamente sobre frutos sucessivos. O ordenamento jurídico pátrio prestigia a autonomia privada na fixação de regras patrimoniais (artigo 1.639, CC), mas essa liberdade não é absoluta: encontra limites em normas de ordem pública, na função social da propriedade e no próprio regime de bens, que busca assegurar equilíbrio e solidariedade na vida conjugal.
Uma cláusula de incomunicabilidade perpétua colide com a estrutura do regime da comunhão parcial e universal. Além disso, a incomunicabilidade indefinida violaria a função social da propriedade (art. 5º, XXIII, da CF), na medida em que criaria um “patrimônio estanque”, em constante expansão, mas alheio ao patrimônio familiar. O direito brasileiro, historicamente, repele vinculações perpétuas de bens, justamente porque restringem a circulação de riqueza e o tráfego jurídico. Uma incomunicabilidade ad aeternum sobre os frutos e seus subprodutos teria efeito semelhante, criando uma casta de bens imune às contingências da vida familiar e econômica.
Ao se reinvestirem os frutos percebidos, rompe-se o vínculo de acessoriedade que justificava a proteção inicial. O novo rendimento é fruto de uma nova relação jurídica (aplicação financeira, aquisição de bens, novos negócios), de modo que tentar perpetuar artificialmente a incomunicabilidade representaria criar uma ficção jurídica insustentável.
Em suma, a autonomia privada permite ao doador ou testador a proteger o patrimônio transmitido, mas não lhe confere o poder de reescrever, para sempre, as regras do regime de bens de terceiros, criando uma linhagem de riqueza impermeável à comunhão de vidas que caracteriza o casamento e a união estável.
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[1] […] 5. Comunicam-se os frutos dos bens particulares de cada cônjuge ou companheiro percebidos durante a constância da união ou pendentes ao tempo de cessar a comunhão (inteligência do art. 1.660, V, do CC). 6. A comunicabilidade ou não dos frutos deve levar em conta a data da ocorrência do fato que dá ensejo à sua percepção, isto é, o momento em que o titular adquire o direito a seu recebimento. Precedente da Segunda Seção. 7. A data da celebração do contrato de locação ou o termo final de sua vigência em nada influenciam no desate da questão, pois os aluguéis somente podem ser considerados pendentes se deveriam ter sido recebidos na constância da união e não o foram. 8. A partir da data do falecimento do locador – momento em que houve a transmissão dos direitos e deveres decorrentes do contrato aos herdeiros, por força do art. 10 da Lei 8.245/91 -, todo e qualquer vínculo apto a autorizar a recorrente a partilhar dos aluguéis foi rompido. 9. No particular, portanto, a meação da recorrente, quanto aos valores reclamados, cinge-se aos aluguéis relativos ao período aquisitivo compreendido no curso da união estável, conforme decidido pelo Tribunal de origem […] (STJ – REsp: 1795215 PR 2019/0028526-2, Relator.: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 23/03/2021, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 26/03/2021).
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