Uma decisão proferida no último dia 23 de outubro pela 34ª Câmara do Tribunal Judiciaire de Paris, no processo nº RG 22/02955, representa um importante passo em direção à compatibilização entre as estratégias comunicacionais empresariais relativas ao clima e o regime de proteção do consumidor contra práticas comerciais enganosas.

No caso concreto, as associações Greenpeace France, Notre Affaire à Tous e Les Amis de la Terre France acionaram TotalEnergies SE e TotalEnergies Électricité et Gaz France, alegando que mensagens veiculadas pelo grupo no sentido de que seria “um ator maior da transição” e apontando para uma “ambição de neutralidade carbônica até 2050”, bem como declarações acerca do gás fóssil e dos agrocombustíveis, configurariam práticas comerciais enganosas, nos termos dos artigos L. 121-1 e seguintes do Code de la Consommation francês.
Na decisão, o juízo fundamentou sua análise na Diretiva 2005/29/CE sobre Práticas Comerciais Desleais e, de forma prospectiva, na Diretiva 2024/825, que veda alegações ambientais futuras sem comprovação pública e verificável. Observou que expressões como “neutralidade carbônica 2050” remetem ao Acordo de Paris (2015) e aos relatórios do IPCC (2021), que pressupõem equilíbrio entre emissões e remoções e reduções rápidas e profundas de gases de efeito estufa. Distinguiu comunicações institucionais (informativas) das comerciais (promocionais), aplicando o regime do Code de la Consommation apenas às últimas. Três mensagens publicadas no site da subsidiária francesa foram consideradas promocionais e, portanto, sujeitas ao controle judicial.
As peças publicitárias, ao anunciarem a “ambição de neutralidade” e a liderança da empresa na transição energética, foram interpretadas sob a ótica do consumidor médio, que tende a perceber tais enunciados como compromisso efetivo e contribuição concreta à descarbonização.
Por essa razão, o Tribunal concluiu que as mensagens configuraram práticas comerciais enganosas [1] tanto por ação — ao veicular alegações ambientais suscetíveis de induzir em erro — quanto por omissão, pela falta de informações substanciais que permitissem ao consumidor avaliar a veracidade da promessa. A decisão aplicou assim, rigorosamente, os arts. L. 121-2 e L. 121-3 do Code de la Consommation, que tratam, respectivamente, das práticas enganosas por ato e por omissão.
Em relação às alegações sobre gás e agrocombustíveis, o juízo afastou a infração por falta de vínculo direto com oferta comercial e ausência de prova do impacto sobre decisões de consumo, não se aplicando a Diretiva 2005/29/CE. Também rejeitou as medidas preventivas fundadas no artigo 1.252 do Code civil [2], considerando não estar demonstrado o nexo causal entre a comunicação enganosa e eventual dano ao clima.
Quanto às práticas enganosas reconhecidas, o tribunal condenou as rés à cessação das divulgações, fixando multa de €10.000 por dia de atraso (astreintes) por até 180 dias, publicação do dispositivo da decisão na página principal do site da companhia por igual período e indenização de € 8.000 a cada associação autora, além de € 15.000 de custas e honorários (artigo 700 do Code de Procédure Civile). Rejeitou, porém, os pedidos mais amplos de proibição genérica de alegações ambientais, por desproporcionalidade.
Como salienta Amor Bem SAD [3], o julgamento insere-se numa tendência global mais rigorosa contra o greenwashing [4], lembrando que TotalEnergies já havia sido condenada pela justiça alemã (2023) e pelo Conselho de Regulação da Publicidade da África do Sul (2022) por motivos semelhantes. A fundamentação parisiense, contudo, alia rigor protetivo ao consumidor a prudência institucional, aplicando interpretação teleológica e sistemática em conformidade com as diretivas europeias.
O precedente aponta para duas tendências: (i) intensificação da responsabilização de práticas comunicacionais comerciais sem transparência e (ii) limitação da intervenção judicial sobre comunicações meramente institucionais, cuja finalidade comercial deve ser comprovada.
Sob a ótica da conformidade empresarial, a decisão oferece orientações operacionais. Alegações de neutralidade devem indicar, de modo acessível, metas quantificadas até 2030 e marcos intermediários, distinção entre escopos de emissões e mecanismos de compensação, bem como planos de implementação e verificação independente.
Empresas que mantêm atividades fósseis devem evitar enquadrar-se genericamente como compatíveis com “emissões zero até 2050” sem documentação pública que comprove a razoabilidade da afirmação. Além disso, comunicação deve distinguir materiais institucionais de mensagens comerciais, garantindo que conteúdos institucionais apenas remetam a documentos de apoio e não sejam usados como argumento de venda sem as informações exigidas.
A exigência judicial de “cenários verificáveis” e “verificação por terceiro independente” inaugura um novo patamar técnico de controle das alegações climáticas corporativas, levantando desafios metodológicos: quais padrões serão aceitos, que instituições terão legitimidade pericial e quais elementos mínimos um plano de neutralidade deve conter. A multiplicidade de instrumentos — redução direta, captura e armazenamento de carbono, compra de créditos, investimentos em energias renováveis — impõe o desenvolvimento de parâmetros técnicos acessíveis ao Poder Judiciário e diretrizes uniformes para garantir coerência e transparência nas futuras decisões envolvendo greenwashing.
No plano probatório, o caso evidencia a exigência de diligência por parte das associações autoras: a distinção entre comunicação institucional e comercial torna imprescindível a demonstração casuística da finalidade promocional e do efeito sobre o comportamento de consumo. As associações obtiveram êxito ao demonstrar que determinadas páginas comerciais continham argumentos de venda, mas não lograram êxito quanto às comunicações institucionais sobre gás e agrocombustíveis por não comprovar o nexo causal necessário para medidas inibitórias de alcance ecológico. Assim, o precedente acentua a relevância de provas técnicas e empíricas robustas — pesquisas de opinião, análise de alcance e interatividade digital, evidências de vínculo entre campanhas e escolhas de consumo — para a tutela judicial efetiva contra o greenwashing.
Embora situado no contexto francês, o julgamento dialoga com o direito brasileiro. O artigo 37 do Código de Defesa do Consumidor proíbe publicidade enganosa ou abusiva, entendida como qualquer informação, inclusive por omissão, capaz de induzir em erro; o artigo 36 impõe ao fornecedor o dever de manter “dados fáticos, técnicos e científicos” que sustentem suas mensagens. Assim, o precedente europeu antecipa debate iminente no Brasil: alegações corporativas de “neutralidade climática” e “energia limpa” devem ser avaliadas sob critérios de verificabilidade técnica e responsabilidade informacional [5].
Em síntese, o julgamento do Tribunal Judiciaire de Paris marca ponto de inflexão: alegações ambientais genéricas deixam de ser expressão de boa vontade corporativa e passam a constituir potenciais ilícitos de consumo e ambientais. Mensagens comerciais sobre compromissos climáticos estão sujeitas ao escrutínio jurídico e podem configurar práticas enganosas quando desprovidas de transparência e verificabilidade.
Decisão funciona como alerta regulatório
Empresas devem articular comunicação e compliance ambiental com clareza, mensurabilidade e comprovação técnica. O Judiciário, por sua vez, precisa de instrumentos técnicos e cooperação internacional para enfrentar alegações climáticas em ambiente digital transnacional. Encerra-se, assim, a era da retórica verde impune e inaugura-se a fase do compromisso jurídico verificável — base da nova responsabilidade climática corporativa.
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[1] No sistema francês, é considerada publicidade qualquer mensagem que, ainda que apresentada sob a forma de mera informação, seja capaz de induzir o consumidor em erro ao colocar um produto ou serviço sob uma aparência favorável — abrangendo, assim, uma ampla variedade de comunicações (CALAIS-AULOY, Jean; STEINMETZ, Frank. Droit de la consommation. 7. éd. Paris: Dalloz, 2006, p. 143).
[2] Em tradução livre: “Independentemente da reparação do prejuízo ecológico, o juiz, quando acionado para tanto por uma das pessoas mencionadas no artigo 1248, pode determinar as medidas razoáveis destinadas a prevenir ou fazer cessar o dano.” O artigo 1248, por sua vez, trata dos legitimados a demandar a reparação do prejuízo ecológico.
[3] Total Energies condamné pour greenwashing, publicada em Dalloz Actualité (aqui, acesso restrito a assinantes).
[4] O greenwashing é definido pela Autoridade Europeia dos Mercados Financeiros como “uma prática em que as declarações, ações ou comunicações relacionadas à sustentabilidade não refletem de forma clara e fiel o perfil de sustentabilidade subjacente de uma entidade, de um produto financeiro ou de um serviço financeiro [e que] pode induzir em erro os consumidores, os investidores ou outros participantes do mercado” (AEMF, Final report on greenwashing. Response to the European Commission’s request for input on greenwashing risks and the supervision of sustainable finance policies, 4 de junho de 2024, disponível aqui).
[5] Neste sentido, Alfredo Rangel RIBEIRO, admite a ocorrência de publicidade enganosa envolvendo dados ambientais, afirma por exemplo que “informações inexatas sobre a ecoeficiência de produtos e serviços, desde que veiculados pela via publicitária, podem, em perspectiva helicoidal, caracterizar publicidade enganosa”. Direito do consumo sustentável, 1ª ed.- São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, p. 265.
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