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Opinião

Direito regulatório: o desafio de regular o futuro

18 de novembro de 2025, 13h20

Incerteza é obviamente o elemento dominante da tomada de decisões em relação a qualquer assunto no que diz respeito ao futuro. Se empresas decidem investir sem qualquer garantia de que o faturamento ou o lucro esperado vá se confirmar, por sua vez, o Estado tem que regular a atividade econômica e social sem poder errar sobre o que condicionará à frente. Tal desafio cresce muito em momentos de transformações econômicas e sociais profundas em curso.

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Da revolução digital até a emergência climática, o mundo já mudou, e muito, e é certo que será preciso revisitar as diferentes formas de intervenção reguladora estatal. Agrava nesse cenário a perda de referência externa quando a própria potência dominante rompeu com a outrora ordem econômica mundial, inclusive com o governo norte-americano se posicionando contra qualquer regulação de muito do que seja novo na emergente economia nas nuvens.

No afã de estimular o debate, apontamos e comentamos algumas questões a serem enfrentadas no futuro próximo da regulação, procurando cotejar o cenário brasileiro às melhores práticas internacionais.

Da intervenção direta à regulação: a transformação do papel do Estado brasileiro na ordem econômica

A redemocratização brasileira coincidiu com uma profunda reconfiguração do papel do Estado na economia. O capítulo constitucional da ordem econômica, embora inicialmente concebido em um contexto ainda marcado pela lógica intervencionista e pela forte atuação direta do Estado como agente econômico, foi rapidamente reformado ao longo dos anos 1990, [1] o que viabilizou o Programa Nacional de Desestatização — PND (Lei nº 9.491/1997). Essas reformas constitucionais, seguidas de reformulações institucionais no nível infraconstitucional, deram fim a um longo ciclo de intervencionismo direto — sem eliminar essa via —, mas não representaram um mero afastamento do Estado do campo econômico, e sim um novo modelo de atuação, baseado na intervenção indireta.

Nesse contexto, foram criadas as primeiras agências reguladoras brasileiras, concebidas como entidades dotadas de autonomia administrativa, decisória e funcional, capazes de regular setores estratégicos com independência em relação aos ciclos políticos e às pressões conjunturais. O desenho institucional buscava simultaneamente conferir previsibilidade aos agentes econômicos e assegurar o atendimento do interesse público — equilíbrio nem sempre fácil de alcançar, mas fundamental para a legitimidade do sistema.

A criação progressiva das agências ao longo das últimas décadas, embora tenha gerado desenvolvimento relativamente assimétrico entre as diferentes entidades, permitiu valioso aprendizado institucional. Cada agência, ao enfrentar os desafios específicos de seu campo de atuação — telecomunicações, energia, transportes, saúde, saneamento —, desenvolveu competências próprias e testou instrumentos regulatórios diferenciados. Essas experiências, gradualmente, passaram a circular e a influenciar mutuamente o conjunto do sistema, promovendo convergências em relação a boas práticas e elevação dos padrões de qualidade regulatória.

Inovações institucionais e a emergência do Direito Regulatório

A consolidação do sistema regulatório brasileiro caracterizou-se pela crescente sofisticação dos instrumentos e procedimentos interventivos. Influenciado pelo debate internacional — como as boas práticas disseminadas por instituições como a OCDE — e pela evolução do pensamento jurídico e econômico, o Brasil passou a incorporar as melhores práticas regulatórias globais, adaptando-as ao contexto institucional e às necessidades nacionais.

Esse processo de amadurecimento encontrou expressão normativa na Lei nº 13.848/2019, que estabeleceu um marco legal comum para as agências reguladoras federais. A lei consolidou mecanismos essenciais para a qualidade da regulação, muitos deles já previstos e praticados nas leis específicas de criação das agências: a participação estruturada da sociedade no processo regulatório, por meio de consultas e audiências públicas; a análise de impacto regulatório (AIR) como instrumento de racionalização das decisões; e a avaliação de resultado regulatório (ARR), que permite aferir a efetividade das normas implementadas.

Mais recentemente, foram adotados instrumentos ainda mais inovadores, como os ambientes regulatórios experimentais (sandboxes regulatórios), que permitem testar novas tecnologias e modelos de negócio em condições controladas. Essas iniciativas evidenciam a capacidade do sistema regulatório de equilibrar segurança jurídica com abertura à inovação — tensão permanente, mas produtiva, da regulação contemporânea.

Também merece destaque a adoção de modelos responsivos de regulação, que superam a visão jurídica tradicional, baseada estritamente nas ideias de prescrição e sanção, em direção a um ambiente favorável ao diálogo e à colaboração, com intervenções pautadas pela proporcionalidade.

Junto a tudo isso, colocam-se os novos mecanismos de resolução de disputas, antes restritos à via do sistema judicial, com a consolidação da mediação e arbitragem para dirimir conflitos no setor de infraestrutura, sob uma nova ótica, fundada na cooperação e consensualidade.

Todas essas inovações evidenciam a emergência do Direito Regulatório como um campo jurídico com características específicas e inovadoras, em que os fundamentos das decisões públicas estão ancorados em análise técnica rigorosa e embasada em evidências, na ponderação entre custos e benefícios, na ampla participação social e na avaliação permanente de resultados, em um diálogo intenso entre o direito, a economia, as ciências sociais e o conhecimento técnico setorial.

Regulação e compromissos constitucionais

As transformações do modelo regulatório inserem-se no processo mais amplo de concretização da Constituição de 1988. A intervenção reguladora ganha seu melhor sentido quando associada à realização de políticas públicas essenciais: a prevenção e o enfrentamento de crises sanitárias, a universalização do acesso a serviços como saneamento, energia e comunicações, a promoção da inclusão digital e social, a proteção ambiental. Em todos esses domínios, a regulação não constitui fim em si mesma, mas instrumento para a efetivação de direitos fundamentais e valores constitucionais.

Além disso, os procedimentos regulatórios inovadores aproximam as dimensões procedimentais e substantivas da democracia. A participação efetiva de interessados nos processos decisórios, a transparência das decisões, a prestação de contas e o controle social e a melhoria contínua das decisões estatais configuram elementos essenciais da democracia participativa e deliberativa. A regulação bem exercida deixa de ser mera imposição unilateral de comandos estatais para se tornar espaço de diálogo, negociação e construção compartilhada de soluções.

O amadurecimento do modelo regulatório brasileiro reflete o amadurecimento do sistema democrático trazido pela Carta de 1988, ao ampliar os espaços de participação e ao fortalecer os mecanismos de prestação de contas à sociedade. Nesse novo estágio, a qualidade da regulação não se mede apenas pela eficiência econômica ou pela adequação técnica das decisões, mas também pela legitimidade democrática dos processos e pela efetividade das políticas públicas e dos direitos fundamentais.

Desafios nacionais para melhoria regulatória

O futuro da regulação no Brasil, sem desconsiderar o contexto global e os imperativos de convergência regulatória, envolve desafios que refletem as particularidades da realidade brasileira e exigem soluções adaptadas às nossas necessidades institucionais, econômicas e sociais.

O primeiro grande desafio diz respeito ao aperfeiçoamento dos mecanismos de participação social. É preciso assegurar que consultas e audiências públicas não se tornem rituais formais, mas constituam espaços efetivos de construção das decisões regulatórias. A qualidade da participação importa tanto quanto sua existência formal. Isso requer a simplificação de linguagem técnica, a ampliação de canais de participação e a efetiva consideração das contribuições recebidas.

O segundo desafio envolve o fortalecimento contínuo da independência e da capacidade técnica das agências reguladoras. A autonomia das agências não constitui privilégio institucional, mas condição essencial para a credibilidade do sistema. É necessário protegê-las de ingerências indevidas, garantir-lhes recursos adequados para o cumprimento de suas missões e assegurar processos transparentes de escolha de dirigentes. A capacitação permanente dos quadros técnicos, essencial em contexto de rápidas transformações tecnológicas e econômicas, constitui outro aspecto fundamental desse desafio.

Obviamente, o atributo da autonomia só faz sentido se acompanhado de mecanismos de transparência e controle, para evitar distorções e abusos. Por isso, o terceiro desafio refere-se à ampliação da transparência e da prestação de contas. A sociedade precisa dispor de informações acessíveis e compreensíveis sobre a atuação regulatória, seus custos e seus resultados. Accountability efetiva pressupõe não apenas a disponibilização de dados, mas também mecanismos reais que permitam a correção de rumos quando os resultados não correspondem aos objetivos estabelecidos.

O quarto desafio diz respeito à necessidade de equilibrar estabilidade regulatória com capacidade de adaptação. Por um lado, a previsibilidade é fundamental para decisões de investimento de longo prazo. Por outro, a velocidade das transformações tecnológicas e sociais exige que o sistema regulatório seja capaz de se adaptar rapidamente a novos cenários. Encontrar esse equilíbrio constitui tarefa delicada, que demanda instrumentos flexíveis e processos ágeis sem comprometer a segurança jurídica.

Assim, destaca-se o desafio de manter o compromisso com a promoção de direitos fundamentais e com os objetivos constitucionais mais amplos. A eficiência econômica não pode se dissociar de metas como redução de desigualdades, inclusão social, proteção ambiental e desenvolvimento sustentável.

Convergência global: oportunidades e exigências

Os desafios nacionais inserem-se em um contexto global marcado por questões que transcendem fronteiras: emergência climática, crises sanitárias, movimentos extremistas e antidemocráticos e os diversos riscos associados ao ambiente digital. Esses assuntos demandam cooperação e, em grande medida, respostas coordenadas entre diferentes países e sistemas regulatórios.

A convergência regulatória internacional, já em curso, tende a se aprofundar. Temas como a proteção de dados pessoais, regulação de inteligência artificial e governança de plataformas digitais exigem padrões compartilhados e cooperação entre autoridades reguladoras. Nesse cenário, o Brasil tem oportunidade de contribuir ativamente com suas próprias experiências e inovações, posicionando-se como interlocutor relevante no debate regulatório global.

A cooperação regulatória internacional não implica mera importação acrítica de modelos estrangeiros, mas sim participação ativa na construção de soluções compartilhadas, com respeito às especificidades nacionais e com foco no aprendizado mútuo. O Direito Regulatório pode funcionar como a linguagem comum que aproxima sociedades e promove colaboração — com padrões compartilhados, procedimentos transparentes e mecanismos de cooperação que superam desconfianças e viabilizam soluções para problemas comuns em bases democráticas.

Observações finais

O compromisso com a melhoria contínua das organizações e dos processos interventivos será decisivo para que a regulação continue cumprindo papel transformador. Em um mundo cada vez mais interdependente, acadêmicos e agentes públicos e privados de diferentes nações podem contribuir significativamente para a construção de soluções compartilhadas, baseadas no conhecimento e no diálogo.

As principais questões da regulação contemporânea serão objeto de reflexão e debate no II Fórum Futuro da Regulação (aqui), promovido pelo Fórum de Integração Brasil Europa, que, entre 26 e 28 de novembro próximos, em Lisboa, reunirá acadêmicos, especialistas, reguladores e representantes do setor privado para debater desafios e tendências. Será uma oportunidade valiosa para aprofundar essas reflexões, ao reunir diferentes perspectivas e experiências em torno dos desafios e possibilidades que se apresentam.

Enfim, compreender os desafios contemporâneos da regulação, identificar oportunidades de aperfeiçoamento e promover o debate entre diferentes atores constituem passos essenciais para o futuro da regulação.

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[1] Em especial as Emendas Constitucionais nº 6, 7, 8 e 9, de 1995.

Gilmar Mendes

é professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), doutor em Direito pela Universidade de Münster (Alemanha) e ministro do STF.

Cleso Fonseca

é professor de Direito Regulatório no IDP.  Sócio no Fenelon Barretto Rost Advogados.

José Roberto Afonso

é economista, professor do IDP e do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa (ISCSP/Univ.Lisboa), pós-doutor em Administração Pública e doutor e mestre em Economia.

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